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Questão de tato

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






A idéia de obrigar editoras e empresas de comunicação a se responsabilizarem pela publicação de 1% das tiragens de jornais, livros e revistas em formato adequado às necessidades dos portadores de deficiência visual pode ser um salto no escuro. O projeto de lei nº 3.574, de autoria do deputado federal Neuton Lima (PFL-SP), que tramita na Câmara há dois anos, cria polêmica ao pretender garantir o acesso dos deficientes às publicações. Na verdade, sua aprovação, se concretizada, virá preencher o espaço deixado pela revogação da lei federal 9.045, que determinava às editoras de todo o país a obrigatoriedade de reprodução de suas obras, em regime de proporcionalidade, em escrita braille.

A proposta ganhou mais evidência depois que a família do estudante Daniel Monteiro – cego desde bebê, quando teve deslocamento de retina nos dois olhos – decidiu difundir pela internet um abaixo-assinado protestando contra a revogação da lei 9.045 e solicitando ao poder público providências para obrigar as editoras a produzirem publicações em braille ou em meio magnético. Aos 15 anos de idade, Daniel colecionava um histórico de dificuldades para conseguir estudar, enfrentando a falta de livros e de condições adequadas em escolas, que por vezes se recusavam a recebê-lo como aluno justamente por não poderem oferecer um tratamento diferenciado.

A despeito das boas intenções, no entanto, o projeto de lei – atualmente aguardando votação na Câmara de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados – talvez venha a enfrentar os mesmos problemas da lei revogada, correndo o risco de não sair do papel. O Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) tem reunião marcada para a próxima semana justamente para analisar o projeto. Dela resultará uma posição oficial da entidade, que se recusa a adiantar qualquer tendência. Recentemente, em declaração ao jornal Correio do Povo, de Porto Alegre (RS), o editor Ivan Machado, da L&PM, ponderou que não haveria como atender uma faixa tão reduzida de mercado. Um argumento que pode ser usado pelos editores é o custo das impressões em braille, que acabaria sendo repassado ao consumidor. No entanto Antônio Laskos, gerente executivo do SNEL, esquiva-se: “Não há nada que a gente possa falar nesse momento, enquanto não houver uma decisão conjunta. Mas é claro que as editoras têm interesse em discutir o assunto”.

Exclusão visível

Cega de nascença, a jornalista Joana Belarmino, professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba, conhece bem as dificuldades por que passam os deficientes visuais para levar adiante os estudos. “No Brasil se privilegia o livro didático no ensino médio e no ensino fundamental, e o nível superior fica totalmente à margem”, ela afirma, embora reconheça o progresso obtido com o desenvolvimento das tecnologias de apoio e de softwares de síntese de voz como o Dosvox, desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro [conheça mais sobre ele em Links Relacionados, ao lado]. “Cursei a faculdade na década de 80. Se eu fosse começar hoje, as tecnologias da informática facilitariam muito. Elas tornam o acesso cada vez mais fácil”. O problema maior, acrescenta, é a falta de acesso a computadores para a população mais pobre. “Existem muitos deficientes entre as pessoas de baixa renda, e o principal obstáculo é a falta de acesso. Embora essas tecnologias estejam bastante disseminadas, elas beneficiam apenas uma minoria privilegiada”, lamenta.

Joana acredita que será difícil viabilizar o projeto de lei nº 3.574. “As editoras teriam de montar centros de produção em braille – e a gente tem de reconhecer que não é uma alternativa comercial – ou então fazer parcerias com editoras especializadas. O projeto cria um problema: o livro braille não é rentável, até porque se criou uma cultura de que ele tem de ser gratuito”.

Outra pedra no caminho é a dimensão territorial brasileira. Joana sugere que esse trabalho se realize por etapas. “Talvez se possa começar pelo ensino fundamental e por regiões”, propõe. Ela considera, de qualquer forma, que as editoras precisariam promover uma grande reformulação para atender essa demanda. E deixa no ar a pergunta que os editores certamente farão a si mesmos na tal reunião: quem pagaria por isso?

Uma alternativa seria oferecer as publicações em mídia digital e distribuí-las para bibliotecas virtuais credenciadas e para a Biblioteca Nacional, que vem tentando formar um acervo exclusivo para pessoas com deficiência visual. Dessa forma, talvez fosse cumprida a função social de fazer o conteúdo didático e literário chegar a um maior número de pessoas.

Percepções

Responsável pela edição de publicações do Programa Nacional do Livro Didático, o Instituto Benjamin Constant é um centro de referência quando se fala em apoio ao deficiente visual no Brasil. Segundo o chefe de gabinete, Antônio Menescal, hoje as crianças cegas têm acesso, nas escolas públicas, às edições em braille dos mesmos livros utilizados por seus colegas de visão normal. No ano passado, porém, o instituto passou por um período difícil, provocado pela falta de recursos humanos e materiais, o que acabou atrasando também a periodicidade das duas revistas em braille editadas pela entidade – a Revista Brasileira para Cegos, que existe há 55 anos, e a revista infantil Pontinhos. Ambas são quadrimestrais, distribuídas gratuitamente por mala direta.

Com 148 anos de vida, o IBC foi a primeira escola de deficientes visuais do país e hoje oferece treinamento, educação, consultoria, reabilitação e publicações. As publicações em braille têm uma importância especial por contribuírem para que não se perca a percepção tátil que permite a leitura pelo portador de deficiência. “Claro que hoje as pessoas cegas têm acesso à informação por outros meios, como o rádio, a TV e o computador, mas o braille tem características muito próprias. Se não for lido, ele é perdido e as pessoas ‘desaprendem’ a ler”, diz Menescal.

Outra valorosa contribuição nesse sentido tem sido dada pela Rede Anhangüera de Comunicação, que há dois anos mantém – com dificuldade, vale dizer – o jornal Diário do Braille, em Campinas (SP). A periodicidade é mensal e a tiragem atual é de 150 exemplares, enviados para o país todo. A assinatura anual custa R$ 60, pagos em quatro parcelas. Entidades que trabalham com pessoas com deficiência recebem gratuitamente dois exemplares. Professores de escolas que atendem deficientes visuais recebem uma cópia impressa, para poderem interagir com os alunos.

O jornal tem, na verdade, a aparência de um caderno com espiral, o que o torna semelhante a uma revista. É uma forma de facilitar o manuseio. A coordenadora do projeto, Cecília Pavani, explica que a publicação não se prende a temas de interesse exclusivo dos deficientes. “Abordamos assuntos gerais”, diz ela. “Temos um editor, uma colunista que é cega, um colaborador com deficiência visual e um grupo de deficientes visuais que funciona como um Conselho Editorial. Eles e os nossos leitores costumam contribuir com sugestões de pauta”.

O Diário do Braille é praticamente um trabalho de manufatura, sem nenhum apoio publicitário. Nas palavras de Cecília, é “um projeto social da empresa”, que também edita os jornais Correio Popular e Diário do Povo. A coordenadora só lamenta a carência de anunciantes: “Dificilmente conseguimos anúncios em braille. As empresas ainda têm uma noção muito rudimentar, como se o deficiente visual não se vestisse, não assistisse a filmes, não comprasse nada”.

Falta de visão, talvez.

Fausto Rêgo

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