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Direitos humanos - uma longa história da teoria à prática

Autor original: Marcelo Medeiros

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Os avanços na área de direitos humanos no mundo ao longo da História sempre foram obtidos como resultado de pressões exercidas pela sociedade. É o que diz procurador da República José Damião de Lima Trindade,  autor do livro "A história social dos direitos humanos", nesta entrevista à Rets. Na obra, lançada em maio, Trindade faz um apanhado da história dos direitos humanos ao longo do tempo, desde a Grécia antiga até a atualidade. Para ele, que é também presidente da Associação dos Procuradores da República do Estado de São Paulo, os direitos humanos ganham espaço no Brasil apenas depois de encerrado o regime militar (1985). Trindade destaca que o avanço brasileiro no setor acontece depois de 1988. Desde então, o país vem ratificando os principais tratados internacionais sobre direitos humanos, levando, inclusive, a avanços práticos (Programa Nacional de Direitos Humanos, Delegacias de Defesa da Mulher, Estatuto da Criança e do Adolescente). "Mas prevalece o abismo entre leis generosas e sua falta de aplicação", alerta.



Rets -
O conceito de Direitos Humanos tem se ampliado desde a Declaração Universal de 1948. Como o senhor enxerga essa evolução ?


José Damião - A Declaração Universal de 1948 deu esse salto histórico: passou a considerar como direitos humanos, independentemente da origem nacional dos indivíduos, tanto os antigos direitos civis e políticos, como os direitos econômicos, sociais e culturais, enriquecendo extraordinariamente o conceito. Desde então, mais de cem novos tratados e declarações internacionais vêm, não só detalhando esse conjunto unificado de direitos, como também acrescentaram a eles o que vem sendo conhecido como "direitos coletivos e difusos da humanidade", tais como o direito ao meio-ambiente sadio e equilibrado, direito à paz, direito ao desenvolvimento social etc.


Mas essa ampliação e alargamento dos direitos humanos no plano jurídico não vem sendo acompanhada por sua efetiva aplicação no terreno da prática. Há até situações em que se verificam retrocessos, como o testemunham os recentes episódios de genocídio na Bósnia e na Croácia, ou o encolhimento dos direitos sociais em número crescente de países, ou a tragédia da miséria massiva que engolfa todo o continente africano.   


Rets - Sua pesquisa é focada na defesa de direitos (civis, trabalhistas etc.) a partir do século XVIII. O que este século representou para o desenvolvimento e a prática dos direitos humanos?


José Damião - Ao longo do séc. VXIII, fortaleceu-se imensamente na Europa ocidental a burguesia, força social que tinha óbvio interesse, tanto na conquista da liberdade de comércio e da liberdade individual (necessária à contratação de trabalhadores assalariados), como na obtenção da igualdade perante a lei, indispensável à sua ascenção ao poder político. Essa classe social logo percebeu a conveniência de adotar, como arma de combate ideológico, as antigas idéias de direitos "humanos", atualizadas pelos filósofos iluministas. Seu triunfo revolucionário na Inglaterra (1688) e na França (1789) deu origem ao ciclo de revoluções burguesas que deitaram por terra o feudalismo econômico e o absolutismo político. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Assembléia Constituinte francesa em agosto de 1789, foi o documento-símbolo daquela etapa.       



Rets - No seu livro, o Sr. relata alguns movimentos que começaram a partir de reivindicações do povo -  com intensa participação popular. Entretanto, depois que os objetivos foram alcançados, o povo perde espaço na luta e os movimentos que reivindicam direitos se institucionalizam. Por que isso vem acontecendo ?


José Damião - Isso é terrivelmente verdadeiro: em quase todos os processos de mudança social ocorridos, o povo constituiu a vanguarda das lutas, inclusive combatendo e morrendo, mas quase sempre forças sociais conservadoras terminaram por hegemonizar esses processos e frear as transformações, fazendo letra morta dos textos legais mais avançados. A luta pela universalização e ampliação dos direitos humanos nunca foi um processo harmônico ou continuado, sempre esteve permeada por marchas e contra-marchas.  Inclusive nos dias de hoje, é chocante o verdadeiro fosso existente entre textos legais grandiloqüentes e sua precária efetividade prática para milhões de seres humanos. Mas não há fórmulas prontas para evitar esse problema: a história tem reiteradamente demonstrado que só a luta social permite o avanço dos direitos humanos, malgrado retrocessos periódicos. 


Rets - Quais são os avanços na legislação brasileira em relação aos direitos humanos desde o fim do regime militar ?


José Damião - Eu já tive a curiosidade de fazer esse levantamento: cerca de oitenta por cento das leis brasileiras que garantem os direitos humanos são posteriores a 1988, quando se consumou a redemocratização. Desde então, o Brasil subscreveu todos os mais importantes tratados internacionais desse setor, bem como vem adotando leis internas que os incorporam. Na esfera dos direitos civis, há, inclusive, alguns avanços práticos na esfera governamental, tais como o Programa Nacional de Direitos Humanos, adotado em 1998, vários programas estaduais semelhantes, a criação de delegacias de defesa da mulher, alguns programas (tímidos, ainda) de proteção de testemunhas, algum empenho em coibir a prática de tortura policial (com escassos resultados), alguma atenção para os direitos dos portadores de deficiências.


Rets - Mas esses direitos são aplicados?


José Damião - Prevalece o abismo entre leis generosas e sua falta de aplicação, os poucos avanços efetivos deram-se por pressão da sociedade civil. Quanto aos direitos sociais, nem se fale! O Brasil continua sendo um dos países de maior desigualdade social do planeta: temos 30 milhões de miseráveis à beira da fome, 11 milhões de desempregados, dezenas de milhões de desnutridos, outras dezenas de milhões são privados do direito humano à habitação, a qualidade dos serviços públicos de saúde e  educação deterioraram-se horrivelmente nas últimas duas décadas, sequer uma reforma agrária moderada conseguimos realizar, tamanhas são as resistências do conservadorismo. 


Rets - O senhor cita em seu livro alguns documentos que considera revolucionários para a história dos direitos humanos. Que documentos são esses e por que eles são tão importantes ?


José Damião - Há, de fato, textos que podem ser considerados verdadeiros marcos na luta pelos direitos humanos, ao menos nos tempos modernos. Primeiro, a "Declaração de Direitos" (Bill of Rights), produzida pela Revolução Inglesa de 1688, que firmou os direitos individuais e aboliu o absolutismo na Inglaterra. Na mesma linha de consagrar direitos civis, foi concebida a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de julho de 1776, cujo célebre artigo segundo adotou a concepção de igualdade essencial entre os seres humanos - embora a escravidão só viesse a ser abolida naquele país em 1865, e assim mesmo, à custa de uma sangrenta guerra civil que ceifou a vida de 600 mil pessoas (o próprio Tomas Jefferson, redator daquela "Declaração", era proprietário de quase 200 escravos). Em seguida, veio a "Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão", proclamada em 1789 pela Revolução Francesa. Esclareço, apenas, que o "homem" do título dessa Declaração era mesmo somente os indivíduos do gênero masculino.


Rets - E quanto às mulheres?


José Damião - As mulheres teriam de esperar até o início do século 20, com a luta das "sufragistas" européias e norte-americanas, para serem admitidas como cidadãs, e assim mesmo, muito aos poucos... Só bem mais tarde, surgiriam os textos que trouxeram à luz os direitos econômicos, sociais e culturais: a Constituição Mexicana de janeiro de 1917, a "Declaração Universal dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado", proclamada pelo Congresso Pan-russo de Sovietes em janeiro de 1918, e a Constituição da República de Weimar, promulgada em 1919. Após a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela ONU em 1948, a comunidade internacional produziu, em 1966, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Vale a pena ressaltar que o primeiro desses Pactos (o dos Direitos Civis e Políticos) é considerado de aplicação obrigatória pelos governantes (embora frequentemente o desrespeitem), ao passo que o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem o status de meramente "programático", isto é, constitui uma diretriz, uma recomendação a ser aplicada aos poucos... Nas décadas recentes, inúmeros outros textos vêm sendo adotados na esfera internacional, ampliando ou detalhando esses documentos pioneiros.  


Rets - Quais são os temas "emergenciais" na luta por Direitos Humanos no mundo, neste início de milênio ?


José Damião - Em primeiríssimo lugar, o combate à miséria e a seu desfile de horrores: fome crônica, desnutrição, falta de acesso a água tratada e à coleta de esgotos, falta de atendimento minimamente adequado à saúde de bilhões de seres humanos, carência de uma educação formal capacitante para o trabalho e para o acesso ao conhecimento produzido pela humanidade, falta de habitação popular digna, por aí vai... Entre desempregados e subempregados, há no planeta 1 bilhão de adultos; se a jornada de trabalho fosse universalmente reduzida, mesmo que de modo gradativo, esse problema tenderia ao desaparecimento. Se as potências ocidentais não assumirem de fato sua responsabilidade histórica por quatrocentos anos de escravidão e colonialismo na África, que espoliaram economicamente, destruíram culturalmente e humanamente, esse continente estará fadado ao mergulho cada vez mais dantesco na dissolução social da miséria ascendente e brutalizante.


Rets - Como está a situação dos direitos humanos na América Latina?


José Damião - A América Latina equilibra-se para não escorregar ao mesmo cenário de pesadelo, temos muito a temer quanto ao futuro. Além disso, a própria ONU reconheceu recentemente que a degradação desenfreada do meio-ambiente, emulada antes de mais pela ganância por lucro imediato, aponta para uma tragédia planetária de dimensões catastróficas em apenas mais duas décadas. O respeito efetivo e engajado aos direitos humanos, em toda a sua atual plenitude conceitual, começa a se tornar uma URGÊNCIA para a sobrevivência digna da humanidade. Mas isso pressupõe ampliar dramaticamente, e em prazo relativamente rápido, o imperativo da igualdade, tanto entre os Estados, como no plano das relações sociais de cada país. O que, por sua vez, demanda conter interesses poderosos, fundados no egoísmo e no anti-humanismo. A humanidade já desenvolveu os recursos científicos e tecnológicos que, se apropriados socialmente, poderiam acabar com os males que a infelicitam. A humanidade também já produziu os textos e leis de reconhecimento do primado da dignidade humana universal. Fora deles, desmoronaremos desgraçadamente para a barbárie que já mostra suas garras. Este é o grande desafio contemporâneo da humanidade.  


Viviane Gomes

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