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Proposta de Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável no Brasil?

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original:

* Jean Marc von der Weid


1- Diagnóstico do mundo rural brasileiro


Historicamente, o desenvolvimento rural brasileiro foi sempre subordinado aos interesses dos grandes proprietários que faziam da exploração extensiva das terras e da exploração intensiva da mão de obra a essência do seu processo de acumulação de riquezas. Esta elite rural foi obrigada a modernizar-se nos anos 60 e 70 sob pressão e estímulo dos governos militares. Créditos altamente subsidiados e condicionados ao uso de insumos químicos (fertilizantes, pesticidas, herbicidas, etc), mecanização e sementes de variedades melhoradas pela Embrapa para melhor reagirem à estes insumos provocaram o que se chamou de modernização dolorosa da agricultura brasileira. Ao mesmo tempo, este processo gerou um imenso mercado para as indústrias de insumos, a maioria delas multinacionais.


O lado doloroso desta modernização não foi, é claro, sofrido pela elite rural mas pelos agricultores familiares e pelos assalariados agrícolas. Os tradicionais sistemas de exploração agrícola, baseados em parcerias entre grandes proprietários e agricultores familiares sem terra, moradores nas grandes propriedades foi substituído por grandes explorações continuas de monoculturas mecanizadas. As atividades agrícolas que não podiam ser mecanizadas, como as colheitas de certos cultivos, passaram a ser executadas por assalariados temporários, conhecidos como “bóias frias”, que trabalhavam sem qualquer direito trabalhista reconhecido pelos proprietários. Um enorme processo de transferência de população retirou agricultores familiares que viviam nas grandes propriedades levando-os para as “pontas de rua” das cidades interioranas onde ficavam na dependência dos “gatos” para serem empregados precariamente em momentos específicos do ano agrícola ou para as grandes cidades em busca de outras fontes de renda fora da agricultura.


Os pequenos proprietários também sofreram neste processo. A “fome de terras” provocada pelo crédito subsidiado dirigido aos grandes proprietários os levou a pressionar os agricultores familiares através de falcatruas “legais” ou simples emprego da violência, levando à uma concentração ainda mais brutal da propriedade das terras no país.


Em grandes números, a modernização dolorosa provocou a migração de cerca de 40 milhões de pessoas no espaço curto de 40 anos. Neste período a proporção entre a população urbana e rural alterou-se radicalmente, de uma maioria de rurais em 1960 para menos de 20% em 2000. É verdade que estes números contém uma forte distorção da realidade pois, pela definição do IBGE do que é rural e do que é urbano, todo assalariado agrícola ou pequeno produtor familiar que reside em vilarejos de mais de 10 000 habitantes é considerado urbano. Usando a definição vigente em quase todo o mundo em lugar daquela do IBGE o número de rurais aumenta em 60% e alcança cerca de 54 milhões, 30% da população do país.


Nos anos 70, anos do milagre econômico brasileiro, as grandes obras de infra-estrutura e a acelerada ampliação da indústria e serviços e do setor imobiliário permitiram absorver parcialmente este contingente de migrantes, mesmo vivendo em condições precárias e com baixa remuneração do seu trabalho. As cidades “incharam” e a prolongada recessão dos anos 80 levou os migrantes, recentes ou antigos, a somarem-se ao forte contingente de subempregados e desempregados estruturais. A modernização dos serviços e da indústria verificada nos anos 90 ampliou este fenômeno, pois provocou uma crescente liberação de mão de obra mesmo nos momentos de crescimento da economia e aumento dos investimentos produtivos.


A crise urbana que explode nas últimas duas décadas se espelha na ocupação desordenada e perigosa do espaço, na destruição ambiental, na pressão constante sobre os serviços de saneamento, saúde e educação e, sobretudo, na violência endêmica e incontrolável. Esta crise tem suas raízes no modelo de desenvolvimento agrícola e no abandono total das populações rurais pelos serviços básicos que o estado deve garantir. É evidente que a solução desta crise urbana passa pela resolução da crise do mundo rural que permita a desconcentração da população através da desconcentração dos investimentos, dos recursos produtivos e da riqueza.


O modelo de desenvolvimento agrícola do Brasil é considerado por muitos um grande sucesso. Com efeito, a produção de grãos (tomada como o único indicador deste sucesso por seus defensores) ampliou-se em 70% na última década, praticamente sem aumento da área cultivada o que indica um aumento muito significativo na produtividade das culturas. Estes números impressionantes escondem, no entanto, uma realidade bem menos alvissareira.


Se tomamos em conta apenas a sustentabilidade econômica desta expansão verificamos que ela está ancorada em fortes subsídios oferecidos pelo estado. Por duas vezes, em 98 e em 2001, os grandes produtores agrícolas foram beneficiados por verdadeiras anistias de dívidas aos bancos públicos, da ordem de 33 bilhões de reais em 2001. Esta última crise de inadimplência ocorreu exatamente no período em que as exportações brasileiras de grãos davam um enorme salto em volume e valor, garantindo inclusive a primeira balança comercial positiva durante o governo FHC, demonstrando a fragilidade econômica do sistema.


Avaliando-se a sustentabilidade ambiental o quadro é ainda mais sombrio. O modelo agroquímico e motomecanizado provocou danos catastróficos nos recursos naturais com perdas de solo cultivável equivalentes a 600 mil hectares por ano (dados de pesquisa de 1983 que já devem ter piorado sensivelmente desde então). Continuamos procedendo da mesma maneira que fazíamos desde que os portugueses aqui aportaram para cultivar cana de açúcar e, mais tarde, café. Maltrata-se a terra até que ela não renda mais nada e vai-se adiante, abrindo novas fronteiras agrícolas através de desmatamentos predatórios. Para exemplificar, apenas nos solos de boa qualidade do Estado do Paraná, a produtividade da soja caiu para quase a metade em 20 anos, de 60 para 35 sacas por hectare, uma perda de 55 milhões de sacas, devido ao uso predatório dos recursos naturais.


A grande expansão da agricultura brasileira em anos recentes se fez por uma forte relocalização das culturas que vem se expandindo sobretudo nas novas regiões do oeste, nos cerrados. Ficam para traz áreas esgotadas que são transformadas em pastagens de baixo rendimento. Este processo tem seus limites históricos pois a disponibilidade de terras vai se exaurindo e aponta para o momento em que teremos um território devastado. A aceleração deste processo é ainda maior devido à fragilidade dos ecossistemas por onde vem se expandindo a produção, muito maior que naqueles biomas, com terras de melhor qualidade, das antigas fronteiras agrícolas.
Além do esgotamento dos solos a contaminação destes e dos recursos hídricos pelo uso intensivo e indiscriminado de adubos químicos e agrotóxicos, o assoreamento de rios, lagos e barragens pela terra carreada pela erosão hídrica, os desequilíbrios ambientais provocados pelos desmatamentos e pelos mesmos produtos tóxicos apontam para perdas econômicas que não são incluídas nos custos da produção agrícola mas assumidas pela sociedade como um todo.


A expansão deste modelo perverso levou à uma diminuição relativa do papel da agricultura familiar e do número absoluto de agricultores familiares. Calcula-se que hoje existam cerca de 3,7 milhões de agricultores familiares, uma redução de quase 40% desde 1985. Outros 500 mil agricultores empresariais, médios e grandes, concentram a produção feita em grande escala, com monoculturas mecanizadas e a criação extensiva de gado, sobretudo de corte.


O impacto sobre a oferta de alimentos foi sensível. Os produtos típicos da agricultura familiar eram e são, sobretudo, os alimentos da dieta tradicional dos brasileiros. Estes produtos foram deslocados no processo de modernização da produção e acabaram sendo também deslocados da dieta. Esta última empobreceu-se, adotando, sobretudo nos meios urbanos, o modelo de consumo dos países desenvolvidos, centrado nos derivados do trigo e em produtos industrializados com notório impacto sobre o nível da nutrição dos brasileiros, hoje pobre em legumes e frutas.


Entre os efeitos provocados pelo deslocamento da população rural para os meios urbanos e a crise estrutural do desemprego estão a fome endêmica que afeta entre 18 e 52 milhões de brasileiros segundo diferentes pesquisas realizadas e a subnutrição específica, chamada de “fome oculta”, derivada do empobrecimento da dieta e da menor oferta de micronutrientes essenciais oriunda dos sistemas produtivos agroquímicos e do excessivo consumo de alimentos industrializados com menor teor de nutrientes. A subnutrição específica afeta um número não identificado pelas pesquisas mas, se mantidas as proporções encontradas a nível mundial ela pode afetar entre 45 e 130 milhões de brasileiros.


O mais recente fator de desestabilização da agricultura familiar (e da agricultura brasileira como um todo) foi a abertura do mercado interno brasileiro às importações. Produtos como o trigo, feijão e arroz foram fortemente prejudicados por importações a baixíssimos preços que deprimiram o mercado nacional e inviabilizaram muitos produtores, em particular os familiares. Embora estas políticas globalizantes tenham permitido manter os preços ao consumidor baixos durante vários anos (ficaram conhecidas como “âncora verde” do plano real) elas tornam mais insegura a oferta de alimentos já que dependente das disponibilidades e preços internacionais, notoriamente instáveis e manipuláveis por grandes empresas multinacionais do comércio de alimentos.


O mais recente acontecimento na área do chamado “agronegócio” foi a tentativa de introduzir no Brasil os cultivos transgênicos. Embora a legislação exija a realização de estudos de impacto ambiental destes produtos o governo FHC vem tentando, na justiça e no legislativo, derrubar as presentes exigências e atender às pressões das empresas multinacionais como a Monsanto e a Novartis. Além dos riscos ambientais e para a saúde que estes produtos representam o Brasil perderia, se liberados os transgênicos, a grande vantagem competitiva que adquiriu nos últimos anos no mercado internacional devido à demanda de produtos não contaminados pelos mercados europeu e asiático. A posição pró transgênicos do governo FHC chega ao nível de complacência criminosa pois o Ministério da Agricultura recusa-se a fazer o seu papel de vigilância impedindo o plantio clandestino que arrisca de provocar contaminação ambiental e das culturas de forma irreversível, comprometendo o futuro da nossa agricultura e as presentes vantagens nas nossas exportações.


2- Estratégia para o desenvolvimento rural


Como já foi dito acima, cerca de 52 milhões de brasileiros vivem no mundo rural embora nem todos dependam da agricultura para sobreviver. Outros 13 milhões são migrantes que se estabeleceram nas zonas metropolitanas nas últimas duas décadas onde tem uma existência precária na maior parte dos casos. Destes últimos muitos mantém vínculos com seu mundo de origem e a ele voltariam se tivessem condições de sobrevivência garantidas.


Nos marcos de uma estratégia de democratização do desenvolvimento o mundo rural deverá jogar um papel crucial por poder oferecer oportunidades de emprego a custos mais baixos que os industriais, de serviços e até da construção civil. O Brasil será sustentável social e economicamente se apoiado em uma numerosa população rural e, em primeiro lugar, em uma numerosa população agrícola.
Está claro que rural não é idêntico a agrícola e que há outros empregos neste setor que o de agricultor. No entanto, para que prosperem outros empregos não agrícolas será fundamental a existência de uma próspera, dinâmica e sustentável agricultura familiar capaz de garantir demanda para outros serviços. O modelo de agricultura americano em que não mais de 2% da população ativa está vinculado às atividades agrícolas corresponde à uma geografia humana de grandes vazios ocupados por enormes fazendas mecanizadas ou pastagens empregando pouquíssima mão de obra. Isto é o oposto de um desenvolvimento social e economicamente sustentável, particularmente num país como o nosso em que a oferta de empregos urbanos está estagnada e a marginalização é a norma da existência de grandes parcelas da população.


O primeiro passo para estabilizar a população rural atual é a de garantir à mesma os direitos e serviços básicos para uma existência digna. Isto significa que o estado deve promover programas de habitação, saneamento básico, acesso à água potável, saúde, educação, eletrificação, transportes, comunicação, esportes e lazer acessíveis a todos os rurais, a começar com os 3,7 milhões de agricultores familiares e suas famílias. Estes programas podem ser realizados de imediato e darão um enorme impulso às economias locais e à diversificação das fontes de emprego e renda.


Experiências de ONGs de todo o Brasil mostram que estes programas podem ser realizados com a mobilização direta dos interessados e com custos baixíssimos quando comparados com programas entregues a empreiteiras. Tecnologias baratas e passíveis de serem utilizadas pelos próprios usuários já foram demonstradas, necessitando apenas serem apoiadas financeiramente para alcançar a generalização dos benefícios. Exemplo disto estão os programas de cisternas de placas no nordeste cujo custo, para beneficiar 2 milhões de famílias é de 2 bilhões de reais, nisto incluindo o custo das construções e de toda mobilização social para difundir a tecnologia. O acesso permanente à água de boa qualidade permitirá enormes economias em carros pipa e em saúde (em particular de crianças), sem falar na economia de trabalho para milhões de mulheres que hoje ainda buscam água em latas carregadas na cabeça.


Outro exemplo é o uso de tijolos compactados que dispensam o cozimento e empregam mínimas quantidades de cimento. Uma máquina de compactação custa hoje 5000,00 reais e produz, em um dia, suficientes tijolos e telhas para construir uma casa de 100 metros quadrados. Esta máquina pode ser levada ao local da construção em uma camioneta e a construção realizada por pedreiros locais com ajuda das famílias interessadas. 10 000 máquinas deste tipo permitirão a construção de mais de 10 milhões de casas de boa qualidade em quatro anos, atendendo a uma boa parte da população do campo, das aldeias e pequenas cidades a um custo de investimento de apenas 50 milhões. O custo de operação é apenas o combustível das máquinas e das camionetas e o pouco de cimento empregado.


Ainda outro exemplo é o das latrinas composteiras, feitas basicamente com latões usados ou feitos localmente com placas de alumínio em micro indústrias e com materiais de construção locais. Além de serem muito mais baratas que as fossas cépticas permitem a produção de composto que pode ser utilizado em fruteiras. [Na verdade este composto pode ser utilizado em qualquer cultivo mas há uma resistência cultural ao seu uso em plantios anuais]. Com custos unitários de menos de 200,00 reais pode-se resolver graves problemas sanitários que provocam impactos na saúde de trabalhadores(as) e crianças.


O processo de resolução destes problemas básicos é tão importante como os recursos mobilizados para resolvê-los. A mobilização das organizações populares, desde o seu nível mais local, como as comunitárias até as entidades estaduais e nacionais, passando pelas municipais, envolvendo igrejas, sindicatos e outras formas associativas com apoio de ONGs e prefeituras permitirá não só uma grande economia de recursos como a construção de capacidades organizativas nos vários níveis que terá fortes efeitos no fortalecimento da participação cidadã dos rurais que poderá ser valorizado em empreendimentos econômicos a serem estimulados.
Estes pequenos investimentos terão efeitos econômicos e sociais imediatos, freando o processo de esvaziamento do campo que se dá, muitas vezes, pela precariedade das condições de vida e pela dificuldade de acesso aos serviços básicos como educação e saúde.


3- Reforma agrária, pilar da reconstrução do mundo rural


A reforma agrária de FHC reivindica para si o mérito de ter assentado cerca de 500 mil famílias. Mesmo admitindo que o número seja exato, não podemos deixar de constatar que a forma como ela se faz não permite a sustentabilidade dos assentamentos que tem um índice de evasão admitido de 30% e um índice de rotatividade dos assentados não identificado e que pode chegar a 50%. Além disso, constata-se que para cada agricultor assentado há cerca de 3 que deixam o campo, mostrando que não basta fazer a reforma agrária mas que se deve apoiar o conjunto dos agricultores familiares, assentados ou não, para estabilizar e recuperar a importância desta categoria.


Os assentados vivem os mesmos problemas dos agricultores familiares que já tem terra mas em grau mas agudo. De modo geral estão nas piores terras e com disponibilidades insuficientes para seu sustento. Será preciso dar terras de melhor qualidade e em quantidades suficientes para todos. No Brasil há cerca de 210,5 milhões de hectares cultivados ou em pastagens e disponibilidade de outros 120 milhões se explorados de forma ecologicamente racional. Isto é suficiente para disponibilizar cerca de 30 hectares de terra, em média, por família garantindo uma agricultura familiar com 11 milhões de famílias de agricultores.


Para chegarmos a esta estrutura agrária descentralizada será preciso eliminar a grande propriedade rural, latifundiária ou empresarial. Para realizar este objetivo será necessário um processo gradual de liquidação das macro propriedades, começando com os latifúndios.


Com o fim do crédito especulativo a disponibilidade de terras para a reforma agrária não é mais um impedimento. Segundo o INCRA há mais ofertas de latifúndios a serem desapropriados que recursos do estado para pagar as benfeitorias. Apenas se eliminadas as desapropriações crapulosas que beneficiam os latifundiários com indenizações milionárias e se utilizados todos os recursos estatutários destinados à reforma agrária seria possível triplicar o número de assentados por ano realizado pelo governo FHC, atingindo a meta de 1 milhão de assentados no primeiro governo socialista.


Por outro lado, o governo socialista deverá lutar por uma legislação que estabeleça o tamanho máximo de propriedade em cada ecossistema, forçando o desmembramento das macro propriedades. Se eliminadas as grandes propriedades com mais de 1 000 hectares (cerca de 40 000) se conseguirá cerca de 150 milhões de hectares para a reforma agrária. Se considerados apenas as mega propriedades com mais de 10 000 hectares (1 724), as terras disponíveis alcançarão quase 50 milhões de hectares, suficiente para oferecer terras para 1,33 milhão de agricultores familiares com área média de 30 hectares.


O custo atual calculado pelo INCRA para assentar uma família de agricultores familiares é de 13 000,00 reais. Mesmo admitindo valores desta magnitude o custo total para assentar 1,33 milhão de agricultores será de 17,3 bilhões de reais em 4 anos, 4,32 bilhões por ano, em média.


Apenas a execução das dívidas dos grandes produtores com os bancos estatais já poderia oferecer grandes extensões de terras para a reforma agrária. Finalmente, uma legislação que puna os grandes produtores pelos seus impactos ambientais negativos (erosão, salinização, assoreamento de rios e reservatórios, poluição química, etc) poderá paulatinamente desestabilizar este setor. A base desta legislação já existe, a lei de crimes ambientais, e a aplicação de EIA-RIMA aos grandes estabelecimentos já permitiria exigir o controle do uso das tecnologias predatórias atualmente praticadas. Como veremos a seguir, as macro propriedades dificilmente conseguem produzir sem empregar estas tecnologias e a inibição do seu uso ajudará a fragmentação da propriedade.


4- Agroecologia, base da sustentabilidade da agricultura


A crise da agricultura familiar tem várias causas, como já visto anteriormente. A dívida social com os rurais é uma delas. A histórica marginalização dos pequenos produtores, confinados às piores terras e aos ecossistemas mais frágeis e instáveis é outra. A insuficiência de terras é uma terceira. A subordinação ao setor comercial é uma quarta. A mais importante, no entanto, é a ausência de uma alternativa tecnológica adequada e sustentável.


Existem duas situações extremas para os agricultores familiares: aqueles sem recursos próprios e sem acesso ao crédito que empregam tecnologias tradicionais com baixas produtividades e que, nas condições de insuficiência de terras tendem a degradar o meio ambiente e esgotar os seus recursos naturais; aqueles, mais bem aquinhoados, que tentam aplicar as tecnologias dos grandes (a agroquímica) nos seus roçados e que acabam submetidos ao mesmo tipo de problemas que os grandes produtores (poluição ambiental, desgaste dos recursos naturais, endividamento, etc).


Os esforços recentes do governo FHC para tornar o crédito rural mais acessível aos agricultores familiares vem, num aparente paradoxo, acelerando a crise destes produtores pois o mesmo vem vinculado ao uso de tecnologia agroquímica e vem levando estes produtores à falência. No governo e em setores da oposição esta crise é vista como uma fatalidade e a desaparição de grande parte da agricultura familiar uma inelutável tendência histórica.


Poucos questionam o fator maior que provoca esta crise que é a insustentabilidade da própria tecnologia escolhida como a única opção para a agricultura. No mundo inteiro, entretanto, pesquisadores e agricultores vem demonstrando que existem outras opções mais econômicas, sustentáveis e apropriadas para a agricultura familiar. Há quase 20 anos a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos comparou a performance agronômica e econômica dos agricultores orgânicos com os convencionais (agroquímicos) e verificou que os primeiros tem produtividades competitivas e custos mais baixos que os últimos. Os agricultores orgânicos americanos perdem na comparação com os convencionais apenas por não ter acesso aos subsídios que sustentam os altos custos destes últimos e porque, sendo poucos e dispersos, tem maiores custos na comercialização. Este fator e a existência de um mercado disposto a pagar mais caro por produtos de maior qualidade é o que explica os preços mais altos da agricultura orgânica nos Estados Unidos. Os mesmos fatores se aplicam na agricultura européia.


Apesar destas limitações, que são devidas à política econômica e não à racionalidade e eficiência desta opção tecnológica, a agricultura orgânica cresce exponencialmente nos dois continentes, em particular na Europa onde o sistema convencional vive crises fatais como a da vaca louca, a da salmonela, a da aftosa, a da poluição dos lençóis freáticos com adubos químicos, etc.


A base científica da agricultura orgânica é conhecida hoje como agroecologia. Esta ciência procura compatibilizar ao máximo os sistemas produtivos com a dinâmica do meio ambiente. O uso de produtos químicos é reduzido ao mínimo ou eliminado, substituído pela ciclagem de nutrientes, equilíbrio ambiental para reduzir a incidência de pestes e doenças e a seleção de variedades para maior adaptação às condições ambientais.


Os sistemas agroecológicos procuram mimetizar a diversidade e complexidade naturais dos ambientes onde se dá a produção e são, portanto, também bastante diversificados e complexos. São sistemas trabalhando com vários produtos numa mesma área e obtém uma produtividade total (volume total de todos os produtos obtidos em um hectare) maior que qualquer monocultura produzida no sistema convencional.


Esta diversidade de produtos tem outra vantagem, de tipo comercial. Um agricultor agroecológico nunca depende de um só produto para garantir a sua renda, escapando das oscilações de mercado que permanentemente põe em risco os agricultores convencionais especializados. Em um ano de altos preços de soja, por exemplo, um agricultor convencional que só planta soja pode ter um faturamento mais alto que um agroecológico que plante uma policultura diversificada mas em um ano de baixos preços de soja este último terá outros produtos a vender, compensando os problemas dos baixos preços da soja. Por outro lado, os custos mais baixos de produção do agricultor agroecológico o tornam mais competitivo em qualquer situação.


A agroecologia já vem sendo praticada no Brasil com sucesso por agricultores de todo o país e só depende de apoio público para tornar-se uma opção generalizada para todos os agricultores familiares. Um programa de desenvolvimento sustentável deverá ter por meta iniciar a transição da agricultura brasileira no caminho da agroecologia.


Por suas características de diversidade e complexidade a agroecologia não se ajusta a grandes explorações. Ela pode ser mecanizada mas em pequena escala pois a grande moto mecanização exige monoculturas uniformes contrárias aos princípios da agroecologia. É por isso que a agroecologia se ajusta perfeitamente à agricultura familiar e é dificilmente aplicável, na sua integralidade, pelas grandes propriedades. É claro que uma grande propriedade pode se aproximar mais dos princípios e práticas da agroecologia, utilizando rotações de culturas, adubos verdes, plantio direto e controles biológicos e integrados de pragas mas não deixará de ser sempre um sistema com grandes extensões de monoculturas adaptadas à grande mecanização e, por isso mesmo, não deixará de ser vulnerável à pragas e doenças e cobrará o emprego de inúmeros agrotóxicos para garantir a sua produção.


5- Políticas para promover a transição agroecológica da agricultura brasileira


A principal dificuldade de se promover a produção agroecológica de forma maciça está no fato de que, por sua própria natureza, ela não permite o uso de pacotes tecnológicos simplificados e de fácil divulgação entre os produtores. O sistema agroquímico funciona com receitas definidas pela pesquisa agronômica e difundidas pela extensão rural para cada produto e para cada região. Zoneamentos agroecológicos realizados pela Embrapa e orientados para o uso da tecnologia da Revolução Verde indicam que culturas e pacotes tecnológicos devem ser usados pelos produtores em cada lugar.


Sistemas agroecológicos são específicos para cada propriedade pois procuram potencializar a diversidade ambiental das mesmas. Isto impede a criação de “pacotes agroecológicos” homogêneos para amplos conjuntos de agricultores, exigindo soluções particulares para cada agricultor. Este impasse aparente coloca desafios novos para as políticas de pesquisa, extensão rural e crédito. A solução encontrada pela experiência das ONGs foi a de integrar os próprios agricultores nos processos de pesquisa e de extensão.


Com o apoio de pesquisadores e de extensionistas os agricultores identificam os problemas de seus agroecossistemas e selecionam soluções adaptadas para suas situações particulares com base nos seus conhecimentos prévios e aqueles oriundos da ciência agronômica, da ecologia e da biologia. Estas soluções são então testadas por cada agricultor e comparadas entre si, corrigidas, melhoradas e, finalmente, aplicadas no conjunto de suas propriedades.


Esta abordagem implica em uma profunda modificação dos processos usuais de pesquisa e de extensão que funcionam hoje de forma unilateral e unidirecionada, dos cientistas e técnicos para os agricultores, meros recipientes de tecnologia. A eficiência desta abordagem pode ser medida por resultados obtidos por uma ONG, a AS-PTA. Atuando no sul e no nordeste do Brasil, a AS-PTA conseguiu gerar tecnologia agroecológica utilizada por milhares de agricultores (10 000 no Paraná; 3 000 na Paraíba) no espaço de 8 anos de trabalho, com uma relação técnico/agricultor 1 para 3000 no primeiro e de 1 para 500 no segundo, enquanto os sistemas de extensão promovidos pelo Banco Mundial usam uma relação de 1 para 75 até 1 para 150 segundo os casos.


O custo desta pesquisa/extensão rural participativas foi de 50,00 reais por agricultor assistido por ano no sul e de 150,00 reais no nordeste, contra 500,00 e 800,00 reais de custo da extensão rural convencional das Emater nas mesmas regiões. O custo da Paraíba no sistema participativo deverá cair muito nos próximos anos pois o programa está em processo de aumento de escala sem que seu orçamento anual tenha sido modificado.


5.1- Para garantir uma extensão rural agroecológica e participativa para o conjunto dos atuais 3,7 milhões de agricultores familiares e os 1,3 milhão de novos agricultores beneficiários da reforma agrária nos primeiros 4 anos de um programa de desenvolvimento sustentável seria preciso gastar, com base na média dos dados da AS-PTA, cerca de 375 milhões de reais por ano. Estes recursos deverão estar colocados em um Fundo Nacional de Apoio à Extensão Rural, acessível de forma competitiva por consórcios de organizações públicas e privadas de promoção do desenvolvimento e organizações de agricultores familiares. Como não existem, hoje, organizações de extensão capacitadas para a agroecologia e o emprego de abordagens participativas em número suficiente para atender ao conjunto dos agricultores familiares deve-se procurar, nos primeiros anos, usar parte destes recursos num intenso processo de reciclagem de técnicos nestes temas.


5.2- As entidades de pesquisa agropecuária, em particular a Embrapa, também não estão preparadas para produzir conhecimento agroecológico, muito embora já existam vários cientistas que, minoritariamente, vem conduzindo pesquisas nesta linha e que poderão se constituir em um núcleo irradiador da nova pesquisa agroecológica. Os cerca de 40 centros de pesquisa da Embrapa deverão ser reorientados para enfocar seus esforços na busca de soluções agroecológicas para os agroecossistemas de suas áreas de inserção, abandonando o enfoque por produtos que predomina na maioria dos atuais centros. A relação com os agricultores familiares e suas organizações nestas áreas de atuação deverá servir para redefinir a agenda de pesquisa e o enfoque da busca de soluções tecnológicas. O processo de reorientação da pesquisa deverá ser feito através de oferecimento de recursos condicionados aos critérios participativos e ao enfoque agroecológico acessados de forma competitiva por equipes de pesquisadores e seus parceiros (organizações de extensão e de agricultores familiares). Os recursos atualmente disponíveis na Embrapa (600 milhões de reais por ano) deverão ser suficientes, necessitando apenas serem reorientados no sentido acima exposto.


5.3- O crédito disponibilizado pelo Pronaf tem sido utilizado para promover o uso de agrotóxicos, sementes de variedades melhoradas e híbridas e adubos químicos. Embora a agroecologia não necessite de investimentos altos para produzir ela pode ser facilitada com a flexibilização do acesso aos financiamentos do Pronaf. Não será possível manter as normas rígidas de apresentação de projetos de financiamento, hoje vinculadas aos pacotes da revolução verde. Dada a grande variabilidade dos tipos de projetos que a agroecologia pode apresentar os bancos deverão ser orientados a aceitá-los desde que referendados por organizações credenciadas na promoção da agroecologia.


Os montantes de crédito para a transição para a agroecologia variam bastante. Na experiência das ONGs eles podem oscilar entre 500,00 e 1500,00 reais por hectare (dependendo do tipo de proposta e do agroecossistema) no primeiro ano, caindo em seguida para valores residuais. Admitindo uma média de 2 hectares por ano transformados para a agroecologia e uma área cultivada média de 10 hectares cultivados por agricultor familiar, em cinco anos e com um valor total de 2 500,00 a 4 500,00 reais um agricultor pode tornar-se completamente agroecológico. Admitindo-se que será possível converter 1 milhão de agricultores para a agroecologia em 5 anos o custo total do crédito para a agroecologia será de 2,5 a 4,5 bilhões de reais ou, em média, de 500 a 900 milhões de reais por ano.


Este é um valor bem inferior aos atuais 4 bilhões por ano oferecidos pelo Pronaf e com menos riscos de insolvência que os encontrados atualmente (cerca de 1 milhão de agricultores familiares beneficiados pelo Pronaf e empregando técnicas da revolução verde devem perto de 4 bilhões de reais aos bancos).


5.4- A verticalização da agricultura familiar, ou seja, o processo de industrialização e de comercialização de produtos agrícolas, pecuários ou extrativos sob controle de organizações de produtores deverá ser uma prioridade em um programa de desenvolvimento sustentável. Com efeito, os agricultores familiares estão hoje entregando seus produtos a intermediários ou agroindústrias que lhes ditam os preços. O Pronaf previu uma linha de financiamento com este fim mas propôs padrões tecnológicos (perfis agro-industriais) incompatíveis com as dimensões das organizações dos agricultores familiares e o programa ainda não saiu do papel. Por outro lado, a presente legislação reguladora das atividades de transformação inviabiliza as pequenas e médias indústrias agrícolas. Finalmente, a fragilidade das organizações dos agricultores familiares e sua pouca familiaridade com as questões de gestão e mercado exigem um processo de construção de capacidades e consolidação destas estruturas organizativas.


A verticalização deverá ser um programa bem menos ambicioso inicialmente que o da conversão agroecológica e exigirá um particular esforço de capacitação das organizações dos agricultores familiares em técnicas de gestão e de comercialização. Os créditos previstos para o Pronaf agroindústria atualmente (250 milhões de reais) permitirão, se dimensionados apropriadamente os projetos, a criação de cerca de 5 mil pequenas agroindústrias por ano com a participação de 300 mil agricultores, gerando não apenas um forte aumento da renda como novos empregos no campo.


5.5- Um programa de desenvolvimento sustentável deverá assegurar o mercado para os produtos da agricultura familiar. Para isto serão utilizados instrumentos como compras preferenciais destes produtos pelos organismos estatais ou financiadas com recursos públicos federais tais como a merenda escolar. Estes produtos deverão ser adquiridos em primeiro lugar a nível local, estimulando a diversificação da oferta da agricultura familiar e limitando o “passeio” dos alimentos, fator de forte encarecimento dos custos da merenda.


Ainda para proteger a agricultura familiar dos efeitos da instabilidade dos mercados um programa de desenvolvimento sustentável deverá retomar uma política de formação de estoques reguladores de produtos básicos, com compras preferenciais e a preços remuneradores junto aos produtores familiares.



Finalmente, um programa de desenvolvimento sustentável deverá defender a produção nacional de importações subsidiadas que vem arruinando agricultores, familiares ou não, garantindo tarifas protetoras dentro dos limites que permitem tanto a OMC como os acordos do Mercosul e que não vem sendo utilizados pelo atual governo. Igualmente, o programa deverá defender a abertura dos mercados europeu e norte americano aos produtos agrícolas brasileiros, esforço que será tão mais fácil se avançarmos decididamente para a produção agroecológica já que estes produtos não padecem das restrições sanitárias que vem dificultando as nossas exportações.


Artigo publicado em abril de 2002, no site do Vitae Civilis.


* Jean Marc von der Weid é diretor-executivo da ONG AS-PTA - Assessoria e Serviços a projetos em Agricultura Alternativa.






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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