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Chacina denunciada

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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No dia 18 de junho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) emitiu uma resolução acatando solicitação feita pelo Centro de Justiça Global contra o Brasil. A denúncia que desencadeou o processo se deu a partir da chacina ocorrida nos dias 1º e 2 de janeiro, no presídio Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, quando 27 presos foram mortos por outros internos. Depois disso, mais 11 mortes aconteceram naquele centro de detenção. Acompanhando todo o desenrolar dos fatos, junto com a Comissão de Justiça e Paz de Porto Velho, o Centro de Justiça Global denunciou a situação à Comissão Interamericana (com sede em Washington, EUA), no dia 5 de março. Em 14 de março, o órgão exigiu medidas cautelares ao governo brasileiro, determinando, entre outras coisas, a garantia de vida de todos os detentos.


Como quase nenhuma das medidas foi adotada pelo governo brasileiro e, após a determinação, mais 10 presos foram executados, o Centro de Justiça Global encaminhou solicitação à Comissão pedindo que esta requeresse junto à Corte Interamericana, instância máxima do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, sentença ordenando a adoção de medidas provisórias. Isto se concretizou em 18 de junho, numa resolução que determinava ao governo brasileiro que adotasse as medidas necessárias para proteger a vida e a integridade física de todos os detentos do presídio Urso Branco. As sentenças da Corte são obrigatórias e devem ser cumpridas fielmente pelos países membros da OEA.


James Cavallaro, diretor-executivo do Centro de Justiça Global, conta, em entrevista exclusiva concedida à Rets, os detalhes do que ocorreu na chacina, fala sobre as mortes que aconteceram no presídio depois dela, comenta sobre a administração penitenciária e explica o processo que levou a uma decisão inédita da Corte Interamericana em relação ao Brasil.


Rets - Oficialmente o que aconteceu no presídio?


James Cavallaro - A situação lá é muito complicada. Há tempos que existe um sentimento de insegurança generalizada. Isso se deve a vários fatores, mas o que mais preocupa é a natureza da administração dos conflitos dentro do presídio Urso Branco, mais especificamente as formas com que as autoridades têm lidado com esses conflitos, não só para não diminuir, mas para tensionar e provocar situações de violência previsíveis, que levaram a resultados terríveis e também previsíveis.


Deixa eu contextualizar primeiro: em qualquer instituição de detenção no Brasil, você tem determinadas brigas entre grupos de presos. Aqui no Rio - é bom usar o exemplo, pois há divisões bem radicais - ninguém pensa em juntar em uma mesma área ou cela dez presos do Comando Vermelho com dez do Terceiro Comando, porque isso é sentença de morte para alguns deles, vai dar briga. Muito menos, pensa-se em juntar cinquenta do Comando Vermelho com dois do Terceiro Comando, pois isso é sentença de morte para os dois últimos. Sabe-se o que vai acontecer.


Então, a administração penitenciária, entre outras coisas, trata da capacidade de gerenciar estas tensões. O que estava acontecendo em Urso Branco? Havia alguns presos conhecidos como os "matadores", que são os mais perigosos, que têm muitos homicídios nas costas - são os matadores de aluguel. Outra parte é a população carcerária em geral, que fica mais ou menos na sua e tal. Existem também os presos do "seguro"...


Rets - O que é o "seguro"?


James Cavallaro - O "seguro" são os que têm medo dos matadores. São os caras que se sentem ameaçados por algum motivo. Eles vão para a direção e solicitam o "seguro", espécie de medida de prevenção, e são separados do resto do grupo. Lá em Urso Branco eles até tentaram separar os matadores do resto da população. É uma técnica que eles estavam aplicando, porém muito mal pensada e implementada. A regra é separar quem corre risco, não quem é violento. Até porque é muito difícil identificar quem produz o risco. Como é que você vai saber que fulano, beltrano ou cicrano é matador, perigoso e apresenta risco para os outros? Quem vai entregar esse cara? Quem vai ter coragem para dizer "fulano é que mata", entende? Isso é uma sentença de morte auto-declarada. O que, sim, dá pra fazer é identificar os presos que correm riscos.


Rets - E por que estes correm riscos?


James Cavallaro - Por vários motivos e depende da prisão. Mas geralmente correm riscos porque cometeram determinados crimes que são rechaçados, como estupro, às vezes, em alguns lugares, quando são assassinos de aluguel, quando são policiais (que normalmente nem entram, vão para outros lugares), quando têm dívida, ou briga, os que já eram inimigos antes de entrar, por qualquer motivo. Mas isso o que quer dizer? A administração do caos, por assim dizer, exige um pouco de conhecimento.


Mais um detalhe: em todos os centros de detenção - não conheço um que não tenha e nesse presídio são conhecidos como os "celas livres" - existem aqueles internos que têm uma relação mais próxima com a direção. Portanto, são odiados pelos outros, porque são vistos como os bonzinhos, os puxa-sacos, os caras que estão lá para entregar. Porque, para ter essa relação com a direção, eles geralmente passam informações para as autoridades. 'Vai ter uma fuga aqui', 'fulano é perigoso'... essas informações de alguma forma chegam à direção. Normalmente são eles. O nome mais comum, aqui no Sudeste, é "faxina", porque são os caras que fazem a faxina e, para fazer isso, eles têm certos privilégios, não precisam ficar trancados todo o tempo, têm mais possibilidades de andar pelo pátio etc. Por isso é que o nome lá é "cela livre", porque não ficam confinados como os outros, ficam em outra área e podem tramitar em horários que os outros não podem.


Rets - Voltando à rebelião em si, nos dias 1 e 2 de janeiro...


James Cavallaro - O que provocou a rebelião - que foi a segunda pior chacina da história nos presídios brasileiros, perdendo para Carandiru - foi uma determinação judicial, de juntar os "celas livres" e os "seguros" com a população geral. Foram mortos 27 naqueles dias. Destes, 25 eram presos do "seguro". Eles foram colocados em grupos de cinco junto a mais 40, 50 outros presos. Houve um outro grupo, de 20 presos do "seguro", que foram colocados todos juntos em um lugar só. Os 20 conseguiram arrombar a grade, sair da área onde estavam e procurar refúgio. E não morreram.


Mas, os cinco grupos de cinco que foram colocados junto ao resto da população, todos foram massacrados, todos morreram. Foram 20 horas de conflitos. Eles gritavam, imploravam, pedindo socorro e os policias militares que estavam lá, ouvindo, falavam: "vocês que se entendam, não é problema da gente". E deixaram rolar a chacina.


O gravíssimo nesse caso foi juntar grupos que, sabidamente, não se pode juntar. Ainda mais fazer desse jeito, em cinco, um número reduzido que não tem como responder frente ao grupo inteiro, contra os 40, 50. Dá no que deu, coisas horríveis: decapitados vários deles, esmagados, destruídos.


Rets - Como se deu o processo perante a OEA?


James Cavallaro - Tem dois tipos de processos perante a Comissão e a Corte Interamericana. Um tipo de processo que chamamos de "caso" e o outro quando tem gente correndo risco de vida ou de sofrer dano irreparável (não precisa ser dano físico, mas costuma ser). Então, pede-se à Comissão que, vendo a documentação, as provas, a existência da situação, solicite junto aos governos que eles garantam a integridade, a vida dessas pessoas em ameaça. Chama-se Medida Cautelar. É como se fosse uma liminar, existente na justiça brasileira. Ou seja, não é uma decisão final, ainda vai haver uma, mas se vai a juízo para dizer: "Temos esse caso que está andamento. Nós sentimos que vamos ganhar. Aqui estão as provas disso. O que queremos agora é que a justiça faça alguma coisa para parar essa situação e depois vamos chegar a uma decisão detalhada sobre o mérito do caso". Mas, por ora, vamos estancar a situação. Essa situação [da chacina] não começou como caso. No meio do processo, nós também abrimos um caso.


Depois da chacina, no início de janeiro, a Sandra Carvalho, diretora de Comunicação do Centro de Justiça Global, foi lá pela primeira vez, com o pessoal da Comissão de Justiça e Paz de Porto Velho, apurou e documentou o caso e pressionou para que houvesse medidas. O governo fez várias promessas. Porém, mais cinco presos foram mortos no período até 14 de março, data em que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos autorizou as medidas cautelares que havíamos solicitado no dia 5 de março e reforçado no dia 12 do mesmo mês.


Entre 14 de março e 18 de junho, quando foi elaborada a resolução da Corte, foram mortos mais cinco. E, depois disso, morreu mais um que soubemos na segunda-feira, 24 de junho, ou seja, depois que a Corte já havia solicitado as medidas provisórias. O total foi de 11. Além disso, para se ter uma idéia, houve 11 casos, mais ou menos em um ano, antes da chacina. Então, já era uma cadeia violenta, com muitos conflitos e sem estrutura para garantir a integridade dos presos.


Então, em linhas gerais, do que se trata? Uma questão básica do direito internacional: quando o Estado prende alguém, tira a liberdade da pessoa e a coloca sob custódia, ele tem a obrigação de garantir a integridade física da pessoa. Isso é uma questão básica. Nesse caso, é muito mais grave, porque temos a prova de que as autoridades, sabendo que essa determinação de juntar os vários grupos provocaria a morte de diversos deles, prosseguiram. E fizeram de uma forma que facilitou ainda mais o resultado: se colocassem cinquenta do mesmo grupo numa cela só, eles conseguiriam se proteger.


Rets - Por que existe essa falta de controle tão grande lá dentro? Os presos portam armas caseiras, matam quando querem matar e não se consegue parar essa situação. Existe interesse de que isso aconteça?


James Cavallaro - É difícil dizer. Não sei se tem interesse de que uns matem aos outros. Eu prefiro não especular. É uma possibilidade. Já houve casos que eu acompanhei no passado, quando era da Human Rights Watch. Também é uma forma de manter a disciplina. É como se o diretor dissesse: "Olha, você faz comigo, eu tenho como te matar. Todo mundo sabe disso." Então, é uma forma de manter o controle. Terror, terror absoluto.


Agora, o porquê pouco me importa. O que, sim, me importa é que há normas internacionais e nacionais que têm que ser respeitadas. Não estão sendo respeitadas. O resultado disso é todo esse processo contra o Brasil na OEA, para que as autoridades cumpram com as obrigações. Por que não estão cumprindo, seria especulação dizer.


Não vou lançar acusações sobre o que passou pela cabeça do juiz, em termos subjetivos, mas um juiz, da Vara de Execuções Penais, fazer uma determinação por escrito de que os presos do "seguro" tinham que ser colocados dentro do coletivo, junto aos outros presos que representavam risco de vida para eles... para isso aí dificilmente vai se encontrar explicação. Muito dificilmente. E de fato o que posso dizer: aquela sentença, seja qual for a finalidade subjetiva do juiz, foi uma sentença de morte. E foi cumprida. Esses são os fatos. Prefiro não entrar na discussão sobre o que levou o juiz a fazer isso, se ele é isso ou aquilo... não sei.


Rets - Quais são as medidas imediatas que o governo pode tomar que ajudariam a resolver essa situação?


James Cavallaro - A avaliação que nós estamos fazendo - e é uma avaliação deles também - é de que só uma intervenção federal vai poder resolver. Pois, no Brasil, são os estados que cuidam dos presos. Outra coisa que achamos fundamental é que estamos recebendo várias informações e denúncias (e vamos para o Norte pesquisar) sobre os outros centros de detenção, de que os problemas estão migrando para os outros centros. Quer dizer, eles estão tentando resolver - porque o Urso Branco é um caso complicado, a OEA está envolvida, o Ministério da Justiça vive cobrando etc - tirando os presos do Urso Branco e mandando para carceragens, delegacias, enfim, outros lugares. Só estão conseguindo exportar o problema. Temos quase certeza, mas vamos fazer esse levantamento porque, dependendo, vamos pedir intervenção no sistema penitenciário. O pensamento é: "O Urso Branco está tendo problemas? Então tá. Pega não sei quantos presos do seguro e joga para outros lugares". Vai virar caso, vai haver homicídios, mas não vai ser no Urso Branco, entende?


Rets - As medidas provisórias foram demandadas pela Corte no dia 18 de junho. O Brasil tem quanto tempo para prestar esclarecimento e apresentar algum resultado?


James Cavallaro - 15 dias. Ou seja, seria em 3 de julho. Mas, o governo pode ganhar um dia ou dois, por conta da comunicação. Dia 18 foi uma terça-feira. Parece que o governo ficou sabendo no dia 21 de junho, sexta-feira. Portanto, o prazo termina na próxima segunda ou terça-feira, 5 ou 6 de julho, e o governo disse que vai cumprir. Inclusive há uma comitiva governamental lá agora mesmo, estes dias [a entrevista foi realizada no dia 3 de julho]. Eles estão lá no presídio, falando com as autoridades.


Rets - Se o Brasil não cumprir a decisão da Corte, tomando as medidas provisórias necessárias, quais são - se existem - as sanções legais que o país pode receber?


James Cavallaro - Primeiro, é fundamental enfatizar qual a natureza dessa resolução: é final e inapelável. Só que, tecnicamente, não é uma decisão sobre o mérito. É uma liminar, uma medida provisória. O governo está repetindo isso muito: "Não tem uma decisão final, não tem uma sentença, não tem uma condenação". Até certo ponto, isso é verdade, mas, por outro lado, não é. Porque não houve uma condenação, mas houve uma determinação, que só sai quando a solicitação de medidas provisórias é fundamentada. A solicitação foi bem fundamentada, tanto que foi emitida essa resolução, com essas medidas provisórias. O Brasil, portanto, tem a obrigação internacional de tomar essas medidas. Talvez o Brasil consiga, talvez não, temos que ver. Mas está fazendo um esforço: mandou a comitiva, está pressionando as autoridades locais (eu não confio nas autoridades locais desse caso, pois pelas informações que nós recebemos, não são de confiança). Acho que a Polícia Federal vai tomar medidas diretas, as próprias autoridades federais vão ter que tomar conta desse presídio - e talvez de outros presídios de Rondônia, se conseguirmos provar que eles estão só remanejando o caos, em vez de lidar com os problemas. Essa é a primeira parte implícita da pergunta.


Acho que há chances de haver uma mudança. Se não, vamos informar à Comissão, que vai solicitar uma audiência junto à Corte, na Costa Rica, e as autoridades brasileiras vão ter que ir até lá para se justificarem. Nesse momento, a determinação da Corte, eu acho, vai ser ainda mais absoluta, porque o governo já terá tido a chance de se defender. Antes, o governo vai ter que responder à resolução da Corte e nós vamos responder em cima da resposta do governo. Assim, a Corte terá as informações dos dois lados e poderá tomar uma decisão mais fundamentada, que tenha mais elementos do mérito. Assim, o governo não vai ter mais a desculpa de que não há uma determinação sobre o mérito. Só para concluir: quais as conseqüências? Na história da Corte, a esmagadora maioria das suas decisões tem sido respeitada. Se o Brasil não respeitar, pode sair uma resolução da Assembléia Geral da OEA condenando o país por não respeitar a determinação da Corte. Essas resoluções saem publicadas (e acabam sendo a primeira coisa que os governos avaliam para saber qual a situação dos direitos humanos no país). Então, acho que o Brasil vai querer cumprir. Não sei se vai conseguir, mas está fazendo um esforço nesse sentido.


Rets - O caráter da possível punição da Corte é muito mais moral do que prático, então?


James Cavallaro - Isso depende. Uma resolução da OEA é algo prático também. Para se ter uma idéia de até onde pode ir uma resolução da OEA: em 1991, quando o Haiti desacatou a autoridade da Comissão Interamericana sobre questões concretas na matéria de direitos humanos, foi aprovada pela OEA uma intervenção militar. Ou seja, é uma possibilidade, no sentido de que pode ser feito. Os poderes da OEA chegam até lá. Acho muito difícil que aconteça em relação ao Brasil.


Rets - O Centro de Justiça Global vai estar acompanhando tudo?


James Cavallaro - Nós estamos exigindo junto ao governo brasileiro a necessidade de o poder federal resolver esse problema de forma direta, não só pressionar as autoridades estaduais. Vamos a Rondônia no final deste mês, fazer investigação mais detalhada. Só vamos esperar para ter a resposta do governo na mão para ver o que eles disseram e avaliar até onde a resposta bate com a realidade.


 


Maria Eduarda Mattar

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