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Novo código civil: mudanças que afetam o terceiro setor

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

Já imaginaram se não existissem a Fundação Gaia, a Fundação Getúlio Vargas, a Fundação SOS Mata Atlântica, a Fundação Boticário, as fundações de amparo à pesquisa, entre tantas outras? E se as associações civis fossem proibidas de prestar serviços e vender produtos como forma de obter recursos? Pois, se o novo Código Civil, que entra em vigor em janeiro de 2003 para substituir o elaborado em 1916, não tiver seu texto alterado, instituições como estas não poderão mais ser constituídas ou terão suas atividades dificultadas. Isso porque o novo código, em seus artigos 53 e 62, determina que associações podem apenas ser constituídas para "fins não-econômicos" (o que dificultará a captação de recursos) e restringe a criação de fundações a apenas quatro áreas (para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência). Escrito em 1975 e votado, com quase três décadas de atraso, no início deste ano pelo Congresso, o novo código é considerado anacrônico por entidades como o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), que estão pressionando os deputados a alterarem a redação dos artigos polêmicos.

Para entender melhor do que se tratam as duas alterações, é importante detalhar as diferenças entre fundações e associações civis. Segundo o consultor de legislação da Rits, Paulo Haus Martins, as associações civis são formadas a partir da reunião de indivíduos, que se unem para um fim comum. As fundações, por sua vez, têm as seguintes características: nascem de uma doação inicial, por parte de uma pessoa física ou jurídica e podem ser públicas (como Fapesp ou Faperj) ou privadas (caso da Fundação Gaia). "Além disso, a partir do momento em que é instituída, o doador (instituidor) perde o controle sobre o patrimônio, que passa a ser genericamente considerado como de toda a socidade civil", esclarece o advogado. Fundações carregam ainda a particularidade de serem fiscalizadas pelo Ministério Público. Compete ao MP, por exemplo, através da Curadoria de Fundações, aprovar a criação, fiscalizar o balanço patrimonial, a gestão financeira e supervisionar todo o trabalho e as decisões importantes de diretorias ou conselhos das fundações.

Artigo 53 prejudica atividades econômicas de associações

As alterações significativas que o novo código traz em relação a esses dois tipos de organização são reveladas nos artigos 53 e 62. O primeiro diz: "Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não-econômicos. Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos." Já o artigo 62 tem a seguinte redação: "Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la. Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência."

No artigo 53, a expressão "fins não-econômicos" é o 'problema' identificado pelas organizações do terceiro setor. "Este artigo coloca em dúvida a finalidade das associações e afeta diretamente atividades econômicas que a instituição possa realizar, assim como a captação de recursos", afirma o consultor jurídico do Gife, Eduardo Szazi. Na avaliação dele, assim como na de Paulo Haus, essa expressão poderá gerar interpretações que prejudicarão atividades como venda de camisetas, capacitações e prestações de serviços. Essas atividades não geram lucros, mas receitas, que, por sua vez, são re-investidas nas próprias associações. A sugestão do Gife e de outras instituições é que a expressão "fins não-econômicos" seja trocada por "fins não-lucrativos", o que não impediria atividades econômicas que garantam a sustentabilidade da entidade.

Para Abong, artigo 62 é um "retrocesso"

A polêmica causada pelo artigo 62 é um pouco mais extensa. Ao dizer, "A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência", o parágrafo único do artigo restringe a criação de novas fundações a quatro áreas - classificadas, aliás, de modo genérico. "Cultural é tudo. Uma boa justificativa encaixa qualquer projeto na classificação cultural", defende Paulo Haus. "O que vem a ser fim moral?", questiona Judi Cavalcante, diretor-executivo adjunto do Gife. Para ele, o artigo do modo como está não beneficia ninguém: "Não tem sentido. Não vejo benefício nem para a sociedade, nem para a fiscalização das fundações, que já são fiscalizadas pelo Ministério Público". Alexandre Ciconello, advogado da Abong - Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, classifica o artigo como "um retrocesso".

De fato, ao invés de trazer benefícios, o artigo 62 impõe uma restrição que será, no mínimo, um desestímulo à formação de novas fundações. Indivíduos e empresas poderão enxergar uma burocracia a mais, quando não a impossibilidade, de criarem uma instituição com os propósitos que gostariam. "Pessoas que gostariam que sua herança fosse destinada a uma instituição de proteção ao meio ambiente, por exemplo, podem desistir de expresar esse desejo no testamento, por não terem certeza se a fundação poderá ser criada ou se será com feita com os propósitos que gostariam", explica Ciconello. A advogada da Fundação SOS Mata Atlântica, Erika Bechara concorda: "Muitos fundadores que gostariam de fazer doações com outros objetivos que não os previstos na nova lei não vão ter condições de realizar esse intento". Eduardo Szazi, do GIFE, é mais incisivo: "Se essa lei quer restringir alguma coisa, não consegue. Não se restringe deixando uma porta escancarada como ela faz: instituições mal intencionadas poderão camuflar suas reais finalidades."

Atribui-se o anacronismo da nova legislação ao fato de a redação do Projeto-de-Lei (PL) que institui o novo código datar da década de 1970. "Naquela época, a força e a discussão em torno do terceiro setor não eram tão intensos quanto são hoje em dia", lembra Ciconello. Judi Cavalcante, do GIFE, acredita que a redação pode ter sofrido de um "problema de técnica jurídica". Sua opinião é compartilhada por Erika Bechara: "Não existe uma razão clara para aquela limitação. Provavelmente foi descuido do legislador, um equívoco, má técnica", opina a advogada. De fato, o PL para criação do novo código foi apresentado em 1975. No entanto, a sua aprovação só se deu de fato em 10 de janeiro deste ano, tendo sido debatido no Congresso Nacional antes de sua aprovação final. Por que essas pequenas falhas ou limitações não foram modificadas? Não se consegue explicar.

As ONGs querem, agora, que os deputados modifiquem a redação dos artigos antes que o código entre em vigor. Com essa intenção, o Gife, representando diversas instituições, encaminhou um pedido de alteração ao deputado federal Ricardo Fiúza (PPB/PE). Fiúza foi relator do PL que instituiu o novo código e agora está reunindo diversos pedidos de alteração nos artigos da nova lei e juntará todos em um único projeto-de-lei. O documento enviado pelo Gife inclui a solicitação de que a expressão "fins não-econômicos", no artigo 53, seja trocada por "fins não-lucrativos" e que se reavalie a restrição imposta pelo parágrafo único do artigo 62, para que a criação de novas fundações se estenda a atividades de outras naturezas.

Segundo o consultor Szazi, se o deputado não incluir esta solicitação no projeto-de-lei que está elaborando, "ou vamos encaminhar a outro deputado, ou vamos encaminhar a uma comissão recém-criada na Câmara, que recebe projetos de iniciativa popular", esclarece.

E se mesmo assim as alterações não forem concretizadas antes que o código entre em vigor? Muitos apostam que a interpretação da lei na Justiça será flexível: "É tão absurdo que, se a lei não for mudada, haverá interpretações extensivas (diferentes) pelo judiciário", afirma Ciconello, da Abong.


Maria Eduarda Mattar

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