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Cidadania em cena

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Cena 1. Take 1. Ação. Ano de 1984, surge em Recife a TV Viva, projeto de TV comunitária ligado ao Centro Cultural Luiz Freire. Tratava-se da primeira TV de rua do Brasil, um método que consiste na exibição de programas em telões instalados em praças ou outros lugares públicos. Cena 2. Dois anos depois, em dezembro de 1986, toma forma no Rio de Janeiro o Centro de Criação de Imagem Popular - Cecip, com proposta semelhante. Sua primeira expressão foi a TV Maxambomba, televisão comunitária e de rua realizada em toda a Baixada Fluminense. Cena 3. Em 1996, a mesma TV Maxambomba orienta e capacita pacientes e funcionários do Instituto Philippe Pinel no manejo de câmeras de vídeo, edição, decupagem e outras técnicas audiovisuais. Estréia, assim, a TV Pinel.


Corta. Rebobina. Cena 4. Em 1993, Belo Horizonte é o cenário onde a Associação Imagem Comunitária - AIC grava as primeiras cenas da TV Sala de Espera, exibida nas ante-salas dos postos de saúde de dois bairros da região nordeste da capital mineira. Corta. Avança. Cena 5. Ano 2000. Para rodar o filme Cidade de Deus (baseado em livro homônimo de Paulo Lins), o diretor Fernando Meirelles e a co-diretora Kátia Lund começam a fazer testes com atores não-profissionais, para compor o elenco de aproximadamente 110 jovens. A divulgação dos testes é feita principalmente nas comunidades de Cidade de Deus e Vidigal, Rio de Janeiro. Parte dos meninos que compuseram o elenco formam, após as filmagens, o grupo Nós do Cinema, cuja proposta é se constituir em uma produtora completa, com diretores, editores, atores, produtores etc.


Esses são alguns exemplos que utilizam os meios audiovisuais - mais especificamente o vídeo e o cinema - como instrumentos multifacetários para formar cidadãos. Seja conscientizando e educando através dos temas abordados nas produções, seja fazendo uma programação retratando a vida das pessoas da comunidade onde os projetos se inserem, seja capacitando pessoas a utilizarem mais de uma forma para se expressarem e trabalharem.


Um dos métodos que se revela mais eficiente pelo deslumbre e identificação que provoca é a TV de Rua, ainda mais quando executada com câmera aberta (transmissão instantânea no telão). É a opção até hoje da TV Viva, que funcionou até 1994, parou, teve programas na TV educativa pernambucana e voltou às origens em março de 2001, com o início do projeto TV Matraca.


Kombi, telão e Giramundo na TV Matraca


Às 7h30 da noite, a Kombi do projeto chega a um dos 34 bairros visitados mensalmente pela equipe de nove pessoas. Arma-se um telão na praça do lugar. Rapidamente, as pessoas se aglomeram para ver a produção daquele mês, apresentada através dos blocos “Recife está no ar”, que fala de projetos sociais da Prefeitura nos bairros, porém com a visão dos moradores; “Giramundo”, uma reportagem temática escolhida; “Se ligue”, quadro de dicas e vinhetas de serviço; “Meu bairro é o maior”, que retrata em reportagens aprofundadas a cada edição um bairro específico de Recife; “Ciranda cultural”, apresentando matérias de cultura, e o bloco infantil. A exibição dos programas é seguida de apresentações de grupos culturais de cada bairro.


O mais interessante, porém, não é assistir, é participar. Com o recurso da câmera aberta, as pessoas presentes às apresentações podem debater sobre algum assunto apresentado no telão, fazer reivindicações, falar dos projetos desenvolvidos na comunidade ou das soluções que encontraram para demandas coletivas. Ao mesmo tempo em que falam ou escutam, aparecem no telão. “O barato é poderem se identificar com o que está acontecendo. O que aumenta a empatia é essa identificação”, explica Eduardo Homem, um dos coordenadores da TV Viva. A identificação da qual Homem fala se dá não só pelo fato de as pessoas se verem nos telões, mas também porque as reportagens apresentadas falam da realidade de quem assiste, do dia-a-dia daquelas pessoas. Para o coordenador, a TV Matraca faz uma comunicação diferenciada, pois mostra o que as pessoas produzem e as suas opiniões. “A programação é toda feita com base nas pessoas, com base nos atores externos”, completa ele.


Claudius Ceccon, secretário geral do Cecip, também é da opinião de que o envolvimento com o objeto retratado - ou o fato de ser o próprio - são o segredo do sucesso do método da TV de Rua. "Existe um valor psicológico enorme. Mostra às pessoas que elas podem ser os atores das próprias transformações", afirma ele, que pôde conhecer de perto esse fator nos anos em que a TV Maxambomba batia ponto nas comunidades da Baixada Fluminense, cada dia numa praça diferente. O percurso incluiu apresentação em bairros, depois em escolas até que a equipe concluiu que o trabalho deveria fazer parte de um projeto maior. Se isso não acontecesse, não havia sentido, na opinião deles, em continuar. Por isso, a Maxambomba parou suas atividades. Porém, não morreu. "Hoje em dia, ela se insere nos programas do Cecip. É um mecanismo acionado em alguns projetos", explica Ceccon.


Projetos como o "Botando a Mão na Mídia", realizado há cinco anos em escolas de nível médio da Baixada. O mote é capacitar jovens e professores para a utilização do vídeo como meio de expressão. "Mais importante que ensinar é procurar mostrar o que está por trás, dar instrumentos para que a pessoa possa produzir a informação. Assim, ela vê de modo mais crítico o que a grande mídia apresenta, desenvolve um olhar mais alerta, penetrante", comenta Ceccon. Paralelamente a esse trabalho de base, junto às pessoas, com as produções voltadas para discussão, o Cecip desenvolve também uma sólida linha de documentários, que tratam desde questões comportamentais até a dívida externa brasileira. Essa é a outra perna da instituição para realizar sua grande proposta inicial: informar e educar sobre os direitos e a cidadania, valorizando a cultura popular.


Pelos idos de 1996, o Cecip ajudou (com apoio técnico) na première de outra iniciativa que visa à promoção da cidadania: a TV Pinel. Inicialmente surgida como um núcleo de vídeo dentro do Instituto Philippe Pinel (IPP), a iniciativa se desenvolveu até se tornar uma ONG - a Imagem na Ação - e firmar convênio com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio. São 15 "atores" na produção: seis usuários dos serviços de saúde mental do IPP e, o restante, funcionários contratados. Em abril passado, a equipe lançou o 18º programa da TV Pinel. Na ocasião, a coordenadora da iniciativa, Cláudia Corbisier, contou que "normalmente os temas são relativos à vida cotidiana das pessoas. Tudo que é proposto nas reuniões de pauta é levado em conta". Para ela, a melhora da auto-estima dos pacientes que trabalham na TV é o fator mais positivo. "É um processo de construção, que muda a imagem que eles têm de si próprios. Em um momento, eles eram pessoas alijadas, postas de lado, e, no outro, eles se vêem na TV, se vêem como repórteres, tornam-se produtores. Isso muda a auto-imagem deles."


Em termos de levantamento de auto-estima de comunidades, a Associação Imagem Comunitária - AIC, de Belo Horizonte, também é digna de Oscar. A AIC aposta no uso de meios audiovisuais para conscientizar e incluir. O início das atividades se deu com a TV Sala de Espera, TV comunitária realizada de 1993 a 1997 nos bairros Paulo VI e Ribeiro de Abreu, nordeste da capital mineira. A programação englobava saúde e qualidade de vida e era veiculada nas salas de espera dos postos de saúde dos dois bairros. As atividades da AIC se desenrolaram em direção à realização de capacitações e produção de vídeos educativos e comunitários. Hoje em dia, cerca de 10 jovens entre 10 e 18 anos, moradores do Alto de Vera Cruz participam de oficinas uma vez por semana, onde aprendem todo o processo para produção em vídeo.


Segundo a coordenadora da AIC, Rafaela Lima, a organização passou a atuar no Alto de Vera Cruz por demanda da própria comunidade. Atualmente, depois de ensinados pela Associação e de posse do equipamento de filmagem, os jovens estão produzindo dois documentários: um sobre a comunidade e outro sobre futebol. "Acontece uma coisa muito legal de valorização das pessoas. Eles chegam para a gente e dizem: 'antes o nosso bairro era notícia só por causa de tragédias, agora ele aparece pelas coisas que fazemos'. Isso dá motivação a eles, aumenta a auto-estima, eles vêem que têm potencial e, o que é mais interessante, estimula o debate público", afirma Rafaela. Os vídeos produzidos por essa turma já foram exibidos em lugares diversos, incluindo o Centro de Cultura de Belo Horizonte e o Ciame (Centro Integrado de Atendimento ao Menor).


Nós, no cinema


No Rio, outros jovens também estão tomando as rédeas de produções próprias. Trata-se do grupo Nós do Cinema, surgido durante as filmagens do filme Cidade de Deus, a ser lançado no Brasil em 30 de agosto. Selcionado para a mostra oficial de Cannes, o longa começou a sua história na própria Cidade de Deus, comunidade pobre da capital carioca, que dá nome ao filme. Em 2000, o diretor Fernando Meirelles e a co-diretora Katia Lund optaram por utilizar atores não-profissionais para compor o elenco de 100 jovens necessários para o filme. Assim, fizeram testes na Cidade de Deus e no Vidigal. Durante as gravações, perceberam que os meninos e meninas apresentavam interesse no por trás das câmeras, além de atuar. Perceberam aí o potencial de novos diretores, produtores e editores. Era o início do Nós do Cinema.


Dos jovens que participaram do longa, hoje 30 freqüentam as reuniões semanais do grupo. Muitos deles estão estagiando em produtoras badaladas como Vídeo Filmes, dos irmãos Salles, a TV Zero e a O2 Filmes (produtora do filme Cidade de Deus). É o caso de Shirley Cruz, de 26 anos. Ela conta que o grupo está produzindo atualmente um clipe do músico Adão (morador da Cidade de Deus que também participou do filme, fazendo papel de Exú), além de participar da produção de capítulos para uma minissérie de TV. "Nossa intenção é virar uma ONG, termos uma sede própria e formar profissionais técnicos e de atuação", afirma Shirley, no estágio na O2. Ela conta também que toda a produção do Nós do Cinema é coletiva, tudo é decidido por todos, usando-se a votação quando há impasse. "Aprendemos tudo fazendo. Alguns profissionais especializados nos orientam, mas não interferem no processo produtivo". Muitas destes orientadores são chamados pela diretora "ausente" (como ela mesma se define) do grupo, Katia Lund. Ela mesma segue a linha de não interferir. Apenas comparece a algumas reuniões, joga idéias no ar e deixa que os jovens decidam como concretizar.


"Sabe-se que nesse campo de cinema ou se vem de uma família de cineastas ou se tem padrinhos. Nós não temos padrinhos, temos uma mãe. A Katia diz que não deixamos nada a dever para nenhuma produtora boa. Diz que é só abrir a porta, que podemos entrar e caminhar. E é isso que o Nós do Cinema faz pela gente", diz Shirley. E conclui: "O grupo mudou minha vida totalmente e se você perguntar para cada integrante do Nós do Cinema, todos responderão a mesma coisa. A questão é ter chance de mostrar, e é isso que acontece".


Corta.
Fim.


 


Maria Eduarda Mattar

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