Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Novidades do Terceiro Setor
Introdução ao livro "O Direito para o Brasil socioambiental", escrita por André Lima*.
"No início do artigo “Direitos Socioambientais, Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial” que integra o terceiro capítulo desta publicação, afirmo que: “Em uma abordagem panorâmica poderíamos dizer que o direito e a legislação socioambiental brasileira andam bem.” Mas o que quero dizer com “o direito e a legislação socioambiental”? O que expressa, objetivamente, o título desta publicação? O que seria o “Brasil Socioambiental”?
Ao leitor menos atento, a palavra socioambiental, deveria ser escrita com um hífen separando social de ambiental e expressaria a conexão, ou até a intersecção entre os aspectos sociais e ambientais do desenvolvimento de um povo. Mas a essência da perspectiva socioambiental não se resume à soma linear e aritmética “social + ambiental”.
Seria então uma expressão que resume em si uma equação um tanto mais complexa, ou completa, ainda em construção, tanto no plano da sistematização do(s) Direito(s), quanto no plano da implementação de políticas públicas.
Neste sentido, o meio ambiente ecologicamente equilibrado; a dignidade da pessoa humana e a cidadania; a construção de uma sociedade mais justa e solidária; a redução das desigualdades sociais; o combate a todas as formas de racismo; a autodeterminação dos povos; a supremacia dos direitos humanos; a função social das propriedades urbana e rural; a valorização e a difusão das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras; a proteção dos bens de natureza material e imaterial portadores de referência à identidade, à ação e à memória, as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, arqueológico e ecológico; os espaços territoriais especialmente protegidos, a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal e a Zona Costeira, são apenas alguns dos componentes essenciais que integram a complexa e dinâmica equação que caminha inexoravelmente para a construção da síntese socioambiental brasileira.
O conhecimento acumulado pelos povos indígenas ao longo de milênios de convivência com as florestas tropicais são fundamentais para a manutenção da diversidade biológica amazônica, assim como esta é essencial para a sobrevivência física e cultural não somente das populações indígenas, mas também das populações de castanheiros, seringueiros, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares. Por sua vez, as florestas são fundamentais para a saúde da humanidade, seja devido às substâncias por elas produzidas e utilizadas na indústria de alimentos e de fármacos, seja pela sua supostamente infindável biodiversidade, seja pela manutenção do regime hídrico ou ainda em face da absorção e armazenamento dos gases de efeito estufa. Vale destacar que uma das conclusões do seminário “Avaliação e Identificação de Ações Prioritárias para Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade na Amazônia Brasileira”, coordenado pelo Instituto Socioambiental, em Macapá, em setembro de 1999, em que participaram cerca de 250 cientistas de todo Brasil, foi a de que mais de 70% das áreas consideradas altamente prioritárias para a conservação da diversidade biológica na Amazônia brasileira abrigam populações indígenas ou tradicionais.
Enquanto isso, em outro canto não tão distante da floresta... a implementação de programas de reforma agrária que considerem - ou não - as potencialidades e vulnerabilidades sociais e ecológicas regionais tem relação direta com a sustentabilidade de grandes centros urbanos que consomem em níveis inadministráveis e insustentáveis alimentos e recursos naturais provenientes cada vez mais de remotas e prístinas áreas ditas “rurais”, até pouco tempo atrás em relativa paz ambiental. São esses os mesmos centros urbanos hoje inchados que se tornam o destino óbvio das famílias desterradas em conseqüência de políticas de desenvolvimento territorial concentradoras de renda e terras, trazendo consigo as mazelas decorrentes da inexistência de políticas públicas urbanas inclusivas desse contingente humano. Conseqüência disso: violência, ocupação de morros, parques e de áreas destinadas à proteção de mananciais etc.
Estes dois exemplos são suficientes para afirmarmos que a aclamada “síntese socioambiental”, mais do que desejável, é necessária!
Esta obra, construída coletivamente por colaboradores e membros da equipe do Instituto Socioambiental (ISA), pretende oferecer, aos pensadores e operadores do Direito, reflexões jurídicas sobre alguns flashs que compõem, como que num mosaico de cores, formas e sons em permanente transformação, o cenário socioambiental contemporâneo brasileiro.
Nesse contexto dialético, o Direito tem contribuições preciosas a dar, seja no aprimoramento dos instrumentos para a persecução dos direitos que integram a equação socioambiental, seja na concepção e na legitimação de instâncias permanentes para o exercício cotidiano de resistência ativa e emancipatória, pelas populações culturalmente diferenciadas, em oposição ao rolo-compressor cultural e ambientalmente pasteurizante, que a todos (seres viventes, pensantes ou não) atropela nessa entrada de novo milênio.
Esta publicação divide-se em quatro capítulos, cada qual com uma breve introdução que busca estabelecer relações entre cada colaboração, dando-lhes unidade. São os capítulos: I - Conceitos Fundamentais para os Direitos Socioambientais; II – Desafios Jurídicos à Síntese Socioambiental; III - Instrumentos para a realização dos Direitos Socioambientais; e IV - Socioambiental do Local ao Global. Observe-se que, não obstante a divisão por mim sugerida, na verdade todos os artigos abordam, com diferentes ênfases e enfoques, conceitos fundamentais, desafios jurídicos, instrumentos para a realização dos direitos, falam do local e/ou do global. Portanto, caberá ao leitor em seu estudo reorganizar as ênfases e reflexões da maneira como melhor parecer-lhe.
Buscamos, como o leitor poderá notar, fugir da clássica divisão metodológica do Direito Ambiental em meio ambiente natural, cultural, artificial, do trabalho, até porque não vemos os direitos socioambientais como especificidade ou excentricidade do Direito Ambiental, mas sim como um novo enfoque sobre os inúmeros Direito(s) fundamentais constitucionalmente garantidos, dentre eles o Direito Ambiental. Nossa proposta é que o leitor depreenda desta obra os elos, as linhas tênues (mas concretas!) que perpassam cada artigo aparentemente autônomo de forma a, questionando alguns preconceitos jurídicos clássicos, tecer as bases para uma percepção metodologicamente nova e socialmente mais inclusiva do Direito ao desenvolvimento sustentável. Oportuno esclarecer que não necessariamente todas as idéias e conclusões trazidas em cada artigo deste livro são compartilhadas pelo Instituto Socioambiental, co-editor da obra.
Todos aqueles que participam desta publicação desejam com essa obra contribuir para com a crescente corrente de juristas que caminha no sentido da reconstrução e reinterpretação do Direito com enfoque voltado à defesa dos direitos dos povos, culturais, sociais e ambientais. Reconhecemos, portanto, nosso forte desejo de que os direitos socioambientais - outrora fruto do sonho de coletividades tradicionalmente excluídas do processo político brasileiro -, transbordem das páginas constitucionais e dos livros de direitos e ganhem vozes vivas nas florestas, cerrados, caatingas e campos, ao longo das aldeias, vilas, rios e igarapés, da Amazônia à Mata Atlântica, vozes que encontrem eco nas cidades, metrópoles, Conamas, Consemas, Câmaras, Assembléias, Congressos e Palácios."
*André Lima é Coordenador do Programa Direito Socioambiental do ISA e coordenador desta publicação
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