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De todas as fés

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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De 18 a 25 de agosto, o Rio de Janeiro vai ficar um pouco mais espiritualizado. Esse será o período da I Assembléia Global da Iniciativa das Religiões Unidas, organização que começou a nascer em 1993 e foi instituída, com a assinatura de uma Carta, em 2000. Ao contrário da interpretação mais imediata que os nomes da instituição e do evento sugerem, a organização e a semana de eventos não se restringem a falar de opções religiosas. A religião é apenas um "gancho" para pessoas que nunca conversaram ou imaginaram se conhecer discutirem a paz, trocarem experiências de vida e compartilharem expectativas do que imaginam que deve ser o mundo sem conflitos. Acima de tudo, essa será uma oportunidade de as pessoas encontrarem caminhos para se chegar a esse mundo desejado.

A Rets conversou, na tarde de terça-feira, 13 de agosto, com o reverendo Charles Gibbs, diretor-executivo da Iniciativa das Religiões Unidas, durante um workshop de construção da paz do qual ele participava, preparatório para a Assembléia. Segundo ele, "durante uma semana, nós viveremos a mudança que queremos ver no mundo". Veja mais sobre o evento e como participar no box ao lado da entrevista.

Rets - Como foi a formação da Iniciativa das Religiões Unidas?

Charles Gibbs - O início da Iniciativa das Religiões Unidas remonta a 1993, quando o bispo anglicano em São Francisco (Estados Unidos), foi convidado pelas Nações Unidas para ser o anfitrião de um encontro em junho de 1995, que faria parte da semana de celebração dos cinqüenta anos da assinatura da Carta da ONU, naquela cidade. As Nações Unidas disseram: nós traremos 185 nações; vocês trazem as religiões do mundo. A partir disso houve a percepção de que, enquanto as nações trabalhavam diariamente pela paz, as religiões não se comunicavam umas com as outras. Então, a Iniciativa das Religiões Unidas (URI, da sigla em inglês) nasceu do desejo de criar maneiras de pessoas de diferentes fés trabalharem diariamente pela paz. Em 1996, um ano depois do encontro - e de uma conferência de jovens com duração de três dias que foi realizada anteriormente para envolver os jovens nessa visão - ocorreu o nosso primeiro encontro mundial. A partir deste, tivemos encontros anuais até junho de 2000, quando foi assinada a Carta.

Nossa visão inicial era juntar líderes religiosos e inter-religiosos. Mas, percebemos que essa visão era muito estreita, porque, se a URI realmente crescesse e tivesse sucesso, teria impacto em todas as áreas da vida humana. Portanto, percebemos que, além de líderes religiosos, precisávamos mobilizar jornalistas, médicos, professores, artistas, ONGs e pessoas de todas as áreas do engajamento humano. E, se nos restringíssemos a líderes religiosos e inter-religiosos, praticamente todos eram homens. Precisávamos trazer muitas mulheres para as conversas também. Por isso, mudamos muito cedo de uma concepção de organização semelhante às Nações Unidas - que reúne lideranças religiosas de alto nível - para o planejamento de um movimento popular, que reunisse pessoas das mais diferentes tradições, homens e mulheres, jovens e velhas, de diferentes vocações, para trabalharem juntas pela paz.

E é isso que está acontecendo. Então, além daquelas reuniões mundiais anuais até 2002, realizamos, nos intervalos entre elas, encontros regionais. Tivemos uma conferência em Buenos Aires (Argentina) - a primeira na América Latina -, uma em Caracas (Venezuela) e uma aqui no Brasil, em Itatiaia, por volta de 1998 ou 1999.

Portanto, partimos da visão de uma pessoa, reunimos 55 pessoas no nosso primeiro encontro mundial e, na ocasião em que assinamos nossa Carta, já tínhamos mobilizado milhares de pessoas, de mais de sessenta tradições de fé, provenientes do mundo todo, que contribuíram na redação da Carta que começa assim: "Nós, pessoas de religiões diversas, expressões espirituais e tradições indígenas ao redor do mundo, estabelecemos / instituímos a Iniciativa das Religiões Unidas, para promover a cooperação permanente e cotidiana, entre fés, eliminando a violência de motivação religiosa e criando culturas de paz, justiça e cura para a Terra e para todos os seres vivos". Ao invés de uma grande organização, com um grande centro, como a ONU, criamos uma organização que tem grupos locais - os quais chamamos de ciclos de cooperação - que agregam várias fés, aceitam trabalhar em concordância com a nossa Carta e são livres para fazerem quaisquer atividades que considerem mais importantes.

Rets - Quem faz parte destes grupos, como eles são formados?

Charles Gibbs - De diferentes modos. Em alguns casos - e o Rio de Janeiro é um exemplo - um grupo inter-religioso já existente diz: "gostaríamos de fazer parte desta comunidade global. Portanto, sem perder a nossa identidade própria, podemos fazer parte de uma comunidade global, uma vez que já somos inter-religiosos." Eles avaliam a Carta e vêem se é consistente com os valores deles e com o trabalho que querem fazer e solicitam ser um ciclo de cooperação. Portanto, o Movimento Inter-Religioso (MIR) vai sempre ser o Movimento Inter-Religioso, mas também é parte de uma comunidade global e é um ciclo de cooperação. Em São Paulo, um grupo se juntou e criou um novo ciclo de cooperação (para os quais é preciso haver no mínimo três tradições diferentes e sete membros). Um era um grupo já existente; o outro foi formado por pessoas próximas geograficamente. Em um terceiro modelo, os ciclos de cooperação são formados em torno de um assunto. Por exemplo, participam de um ciclo de cooperação pelos direitos de mulheres e crianças e homens de diversas fés e de todo o mundo. Eles se encontram através da Internet ou em encontros mundiais.

Rets - Pelo que o senhor descreveu, parece que a questão religiosa não é mais o ponto central e, sim, um pretexto para se falar de paz. É isso que acontece?

Charles Gibbs - Pode-se resumir o que a URI se faz a seguinte pergunta: "Podemos parar de matar uns aos outros em nome de Deus e aprender como conviver?". E o que descobrimos foi que, se não começarmos discutindo religião - "a minha religião é melhor do que a sua?" - e, sim, perguntando em que tipo de mundo gostaríamos de viver, ao invés de conflito, você encontra visões em comum. E quando se chega a um senso comum sobre o tipo de mundo em que queremos viver, a próxima pergunta é: "Podemos trabalhar juntos para ajudar a tornar isso possível?".

Tivemos reuniões ao redor do mundo nas quais pessoas que nunca haviam se falado, sentaram e conversaram umas com as outras. Há pouco tempo houve uma em Berlim com pessoas do Oriente Médio e da Europa. Lá, havia uma mulher Israel, cujo filho, cinco anos atrás, ficou em meio a dois homens-bomba. O corpo dele foi atingido por mais de cem estilhaços. Ele sobreviveu, graças a Deus, e ainda está vivo. Essa mulher se sentou com uma jovem muçulmana da Jordânia que nunca havia falado com uma pessoa judia. Ela disse: "Se o meu pai soubesse que eu estaria conversando com uma judia, não teria me deixado vir." Mas ele não sabia. Elas conversaram com uma outra mulher, de Buenos Aires, católica. No final, elas chegaram à conclusão de que tinham muito mais coisas em comum do que diferenças. Duas noites depois, a muçulmana e a católica acabaram indo a uma cerimônia com a judia. Todas voltaram para casa, empenhadas em se relacionarem com pessoas de fés diferentes. A mulher de Israel criou uma grupo de encontros que reúne cristãos, muçulmanos, judeus e outros para conhecerem melhor uns aos outros.

Portanto, começa-se tentando apreciar uns aos outros, tentando compartilhar uma visão de um mundo em que gostaríamos de viver, para ver crianças crescendo e pessoas envelhecendo. No final de nossa declaração de propósitos dizemos: Paz, Justiça e Cura para a Terra e para todos os seres vivos. Dizem que não se pode ter paz sem justiça e muitas vezes não se pode Ter estes dois sem se fazer um esforço de cura.

Rets - Que assuntos e conteúdos são discutidos nos encontros, como nesse do qual o senhor está participando hoje?

Charles Gibbs - Esse, em particular, é um workshop de cinco dias com o tema da construção da paz. Bom, normalmente começamos falando das experiências pessoais, ouvindo os sonhos uns dos outros e nossas ações no mundo motivadas por estes sonhos. Então, em vez de começar com conversas abstratas, começamos com um pouco da realidade em que vivemos e as visões que compartilhamos. E, a partir daí, o que fazemos basicamente é perguntar como podemos aprofundar nossas raízes em nossas próprias tradições e nos melhores e mais profundos valores que nos motivam a ser pessoas dedicadas a paz, justiça e cura. E também como podemos aprofundar nossa capacidade para sermos eficientes na ação. Nossas conferências não têm muitas pessoas se falando ao mesmo tempo, trabalhamos com grupos pequenos, para que cada pessoa tenha a oportunidade de ouvir, mas também de falar, de compartilhar. Acreditamos nos movimentos populares e que a sabedoria existe no povo. Portanto, nosso trabalho é evocar essa sabedoria e compartilhá-la.

Rets - O senhor participa de muitos destes encontros. Pela sua experiência, qual o sentimento geral que fica entre as pessoas, depois dessa experiência?

Charles Gibbs - Eu diria que as pessoas saem inspiradas. Muitas pessoas hoje em dia são tomadas pelo desespero e imaginam se há alguma esperança de um futuro positivo. As pessoas que participam dos encontros e que participarem da Assembléia terão certeza de que existe esperança. Também vão saber que, para se partir da esperança de uma comunidade pequena de pessoas (que desejam uma determinada realidade) para se chegar a fazer o mundo se parecer cada vez mais com essa visão, é preciso trabalhar duro.

Portanto, se você estiver inspirado por novas perspectivas e amizades, você está aprofundando seu compromisso de voltar para casa e se esforçar para se sentir parte de uma comunidade global. Quando os cristãos, judeus, muçulmanos que estiverem aqui voltarem para suas casas, poderão levar o que estão fazendo para as pessoas de suas comunidades e estas poderão responder a isso. Então, eles não se sentirão sozinhos, seu trabalho pode inspirar quaisquer pessoas, que por sua vez podem vir a ajudar. Ou seja: essa comunidade cresce e se fortalece.

E, finalmente, essa manhã mesmo um homem do Sri Lanka que está aqui no workshop estava falando do trabalho que ele realiza com uma grande organização, promovendo meditações de paz para ajudar na guerra civil em seu país. Ele falou também do trabalho de desenvolvimento econômico que ajuda a realizar em 15 mil vilas do Sri Lanka. Segundo ele, no ano passado eles concederam 60 milhões de dólares em pequenos empréstimos. Mais de 99% destes empréstimos foram quitados. Por acaso, ele estava conversando diretamente com André Porto, [do Movimento Inter-Religioso e um dos organizadores da Assembléia Geral], que contou sobre os projetos de micro-crédito que o Viva Rio tem aqui localmente. Então, este tipo de identificação pode acontecer em qualquer área em que as pessoas estão envolvidas. As pessoas têm novas idéias, inspiram-se a tentar coisas novas. Essa é a outra parte: você aprende novas possibilidades e habilidades e volta para casa inspirado, conectado e equipado para fazer coisas novas, de novas maneiras, que podem ser mais eficientes.

Rets - Essa é a primeira Assembléia Global, depois da assinatura da Carta. Quais as expectativas para o evento?

Charles Gibbs - No período de uma semana da Assembléia Global há um leque de coisas, desde oportunidades para se assistir ou participar de diferentes celebrações e expressões sagradas - para ver como outras pessoas honram o sagrado - até workshops sobre construção da paz, assuntos do meio-ambiente, economia justa e sustentável, direitos humanos etc. Será uma combinação de compartilhamento de nossas tradições sagradas e aprofundamento de nossa reflexão e habilidade de agir no mundo real, fazendo a diferença nas áreas de ação constante em nossa carta.

Nós acreditamos que quando se reúne pessoas desse modo, criamos a realidade que gostaríamos que fosse a do mundo. Quando se junta pessoas de todo o mundo, de todas as tradições, é uma miniatura do que desejamos que seja. Nós criamos isso.

Provavelmente vamos ter a participação de mais de 3 mil pessoas de diferentes partes do mundo e aqui do Brasil. Nosso objetivo número um é o que eu acabei de falar: que estas pessoas se encontrem e tenham uma experiência de vida do tipo de mundo que pretendemos construir. Eles terão a chance treinar aqui. Nós pegamos emprestada a frase de Gandhi (o líder da independência da Índia): "Nós devemos ser a mudança que queremos ver no mundo". Portanto, durante uma semana, nós viveremos a mudança que queremos ver no mundo. Também desejamos que essa vivência nos inspire, renove nossa visão, crie novas conexões e equipe-nos para trabalhar mais.

Outra coisa que esse encontro vai proporcionar é conectar a URI com a comunidade aqui no Rio. Haverá acontecimentos públicos paralelos à Assembléia através dos quais viemos aprender com as pessoas aqui no Rio e oferecer o que as pessoas de todo o mundo têm a oferecer.

Eu espero que as pessoas do mundo todo vejam o Rio e o Brasil como parte de suas famílias, de suas comunidades e que o Rio, ou as pessoas que participarem, de alguma forma sintam uma conexão com o resto do mundo e tenham a oportunidade de, através dos eventos públicos e dos passeios e saídas a campo, partilhar um pouco do bom trabalho que está acontecendo aqui no Rio. Essa não é só a primeira reunião mundial depois da assinatura da Carta, é também a primeira fora da América do Norte. Vai dar um ótimo exemplo para o resto de nossa comunidade ao redor do mundo, sobre o que significa ser o anfitrião do mundo. Não poderia ser exemplo melhor. A hospitalidade aqui é fantástica.

Rets - Como as pessoas que não fazem parte da URI e que queiram conhecer um pouco mais poderão participar?

Charles Gibbs - As pessoas que se inscreveram e fazem parte da URI vão estar participando da Assembléia, no Hotel Glória. As pessoas que estiverem participando da Assembléia farão os passeios e saídas a campo. Um grupo vai para a Rocinha conhecer os projetos do Viva Rio; outro vai para a Floresta da Tijuca e serão guiados em parte pela comunidade indígena; um terceiro grupo, a maioria de jovens, irá para conhecer e assistir à banda AfroReggae.

Paralelamente, acontecerão os eventos públicos. Da Segunda-feira, 19 de agosto, ao sábado, dia 24, acontece o Festival de Música Sacra, organizado pelo MIR, onde as pessoas poderão ouvir músicas sagradas de diferentes tradições. Haverá também a Aldeia Sagrada, que começa na quinta, 22, e segue até o final, o domingo, dia 25. Ela é basicamente um pool de atividades como oficinas, vivências, rituais, meditações, orações, palestras, cursos, exposições, performances, poesias, dança, enfim, uma série de coisas. A população é bem vinda a participar de tudo isso, não é preciso inscrição. Terminamos no domingo, dia 25, com uma peregrinação pela paz, para a qual todos estão convidados.

 


 


Maria Eduarda Mattar

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