Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original:
A construção do processo democrático nas sociedades modernas suscita uma série de questões que buscam respostas urgentes. Dentre as mais importantes poderíamos destacar duas intimamente relacionadas. Uma diz respeito ao grau de tolerância à exclusão social suportado pelos regimes democráticos e a outra problematiza a legitimidade dos governos eleitos pelo povo ativo, isto é, o detentor dos direitos políticos em circunstâncias de crise da autoridade estatal. Abordaremos o assunto levantando algumas questões gerais, além de pretender desenvolver nesse trabalho a relação existente entre as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), a Telemática e a Internet com os temas aludidos, seja numa perspectiva em que os problemas podem ser agravados, seja num viés emancipatório.
A exclusão social ou a consumação demográfica não é exatamente um fenômeno inusitado. Ao longo da história foram muitas as sociedades que se depararam com a difícil indagação do que fazer com os excluídos do mundo do trabalho e da vida social. Não foram raras as opções que redundaram pura e simplesmente pela aniquilação física e moral dos “marginalizados”. Os regimes estalinista na URSS e o nazista na Alemanha do século passado, constituíram-se em trágicos exemplos do que afirmamos. O fenômeno portanto não é novo, a novidade , no nosso entendimento, consiste na articulação de um discurso mais ou menos oficial, mais ou menos cínico, que categoriza à exclusão social como uma fatalidade, naturalizando processos que dizem respeito a opções essencialmente políticas e econômicas, oriundas dos centros decisórios do poder mundial.
No Brasil, o presidente FHC abordou o tema e vaticinou que não haveria mais emprego para muitos trabalhadores em virtude das transformações tecnológicas aplicadas nos processos produtivos internacionalizados, fundantes da chamada globalização, o que, dito de outra forma implica em descartar contingentes expressivos de mão-de-obra dos meios formais de obtenção da subsistência. O resultado comprovado hoje, em se tratando dos países que não fazem parte do núcleo orgânico do capitalismo, é o aumento da crise econômica e da subordinação financeira, o crescimento de formas para-estatais de poderes com estreita vinculação ao crime organizado, a criminalização da política e a ruptura pela violência de formas civilizadas de sociabilidade, generalizando a anomia social, fazendo-nos recordar o Estado de Natureza hobbesiano e sua guerra de todos contra todos.
As consequências sociais trazidas pela globalização hegemonizada pelo capital financeiro exacerbaram as exclusões em nossas sociedades, no caso brasileiro existem índices reconhecidos oficialmente que apontam para o crescimento do número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza , isto é , com menos da metade do salário mínimo mensal. Não é de causar espécie, por suposição, o aparecimento de pesquisas que indicam um crescente desapontamento com a democracia, quando não a sua condenação pura e simples. As exclusões possuem um forte potencial despolitizador, o que joga sombras e ameaças sobre o processo democrático.
A baixa intensidade de nossa democracia, como diria Boaventura de Souza Santos, possui raízes históricas. Como sabemos, nunca é demais lembrar que estamos há poucas gerações dos que viveram sob uma formação social escravista e sob a tutela de um Estado patrimonialista. Tal passado reverbera ainda hoje em nossa cultura e na prática das oligarquias políticas de plantão.A escravidão acabou, sua obra não, como diria Joaquim Nabuco. A reflexão que julgamos central para os que pensam as configurações atuais da democracia não como algo acabado, mas em permanente construção e reinvenção, deve problematizar a atual constelação institucional de nossa superestrutura jurídica e política e relacioná-las à exclusão social, seja naquilo em que a aprofunda, seja naquilo em que a combate.
O povo entendido como instância de atribuição, ou seja, como destinatário de um direito positivo que universaliza as conquistas materiais e morais da civilização, e não como povo icônico, presente nas esvaziadas retóricas do proselitismo político, só pode ser apreendido dentro de uma perspectiva dual em nossa sociedade. Quando fazemos a radiografia da sociedade brasileira nos deparamos com uma legião de pessoas que vivem à margem das garantias constitucionais, contrastando com um número crescentemente inferior de cidadãos que usufruem de seus direitos. Nessas circunstâncias é legítimo debater a dimensão de nossa democracia e questionar se as instituições existentes tem servido para universalizar a cidadania, concebida como um conjunto de direitos políticos, sócio-econômicos e culturais a que fazem jus todo o povo detentor das prerrogativas da nacionalidade. É lícito debatermos neste quadro de desigualdades sociais crescentes, até que ponto é tolerável para a democracia a existência de multidões que se movem numa faixa infra-constitucional, ou seja, sem acesso a justiça e demais garantias e liberdades.
Tão fundamental como o debate que relaciona exclusão e democracia em nossos dias, é a identificação das causas e fatores que minam a legitimidade dos governos oriundos dos processos eleitorais nos regimes republicanos e democráticos. A crise de governança denotada pela ausência do Estado em vários espaços da metrópole contemporânea, encerra muito sinteticamente duas posições contrapostas. Há aqueles que enfatizam o reforço da autoridade como forma de solucionar o problema. Tal posição aparece com freqüência nos debates sobre segurança pública. No caso reivindica-se o aumento do efetivo policial, punições mais rigorosas, etc. Já numa outra perspectiva de apreensão do problema, existem correntes de pensamento que buscam discutir o tema da legitimidade da autoridade de Estado, enfatizando a necessidade de se criarem formas participativas de gestão. Nesta visada toma-se como fundamental menos a autoridade e mais o desenvolvimento de experiências cogestionárias, onde a sociedade civil não é apenas fiscalizadora da ação estatal, antes é chamada a produzir políticas públicas em parceria e com o apoio das organizações de Estado. Em maior ou menor grau é o exemplo do Orçamento Participativo, adotado em inúmeras cidades brasileiras por distintas organizações partidárias. A experiência na qual o poder executivo elabora o orçamento em parceria com setores organizados da sociedade, abrindo mão de sua prerrogativa constitucional , talvez seja um dos melhores exemplos e formas de abordar a questão da governança, a partir do viés da co-responsabilização política em detrimento do puro e simples reforço da autoridade estatal.
Nos parágrafos anteriores procuramos levantar questões que são relevantes para os que entendem o aprofundamento da democracia e o resgate da autoridade política como fundamentais para a universalização de direitos. Por outro lado, com o advento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s), sobretudo a Internet, novas possibilidades inclusivas podem ser potencializadas para contrarestar as tendências oligarquizantes das decisões políticas e legitimar a autoridade estatal radicada num amplo consenso junto à sociedade civil. A bem da verdade, não é isto que vem ocorrendo. O Secretário-Geral da ONU, Koffy Annan, recentemente declarou que a Internet, vista numa perscpectiva global, tem servido para ampliar as desigualdades regionais e sociais. Alguns autores chegam a falar de uma nova categoria social, os Info-ricos e os Info-pobres. Os ricos em informação e os pobres dela. Ou seja, o ferramental disponibilizado pelas TIC’s tem servido muito pouco para a construção de uma nova cultura política, radicalmente democrática, e , visto desapaixonadamente, ainda está longe de uma utilização racional por parte dos movimentos sociais dentro de uma perspectiva emancipatória.
Mas ao mesmo tempo em que reconhecemos que a utilização das TIC’s não são universais, o que produz a exclusão digital, não podemos deixar de reconhecer seu potencial emancipatório. Em escala nacional e internacional, ainda são poucas as experiências que ao generalizarem o uso da comunicação mediada por computadores , resultaram num maior controle social sobre o Estado. Contudo, as iniciativas existentes são muito promissoras. Na cidade de Bologna, Itália, há alguns anos opera uma rede pública de comunicação denominada Ipérbole. A Rede Cívica Ipérbole leva aos cidadãos uma série de serviços públicos on-line, mas também promove debates sobre assuntos públicos em listas de discussões em que pode haver ou não mediação estatal. A Ipérbole recebe mensalmente a visita de centenas de milhares de cidadãos. Os partidos podem usar a rede nas campanhas eleitorais, debatendo e interagindo diretamente com os eleitores suas propostas. A cidade finlandesa de Espoo igualmente vem contribuindo para a ampliação dos espaços públicos na sociedade utilizando a Internet. Em Espoo funciona há algum tempo uma comunidade virtual chamada de Comunidade Jovem. A Comunidade Jovem à diferença da Rede Cívica Ipérbole, não pertence a municipalidade. Trata-se de uma organização da sociedade civil organizada. A Comunidade Jovem debate temas de interesse público. O tema destacado é submetido a um intenso debate em rede, onde os argumento a favor e contrários são enriquecidos por milhares de cidadãos, num encontro dialógico impensável em espaços públicos tradicionais. Após o encerramento do debate é realizada uma votação eletrônica e a proposta vencedora é levada à instituição legislativa da cidade.
Aqui em Porto Alegre, onde a Internet já é utilizada para enviar sugestões de demandas ao Orçamento Participativo, a Administração Municipal pretende realizar no mês de outubro do corrente ano, uma experiência de referendo eletrônico. A idéia é submeter a uma determinada região do Orçamento Participativo e seus cidadãos - a cidade está dividida em dezesseis regiões - o Plano de Investimentos para 2003, discutido e aprovado no respectivo Fórum Regional. Sem entrar no mérito, parece-nos uma iniciativa que compõem junto a Rede Cívica Ipérbole de Bologna e a Comunidade Jovem de Espoo, para ficar nos exemplos vistos neste trabalho, um tipo de aplicação possível das TIC’s, que para além de uma maior eficiência e agilidade nos serviços públicos, cria novas formas de interação entre a esfera político-administrativa e os movimentos sociais, na perspectiva de um maior controle social sobre o Estado, ou sobre sua fração menor, a municipalidade.
As aplicações políticas das tecnologias da informação confirmam a máxima de que as tecnologias não são neutras. Como dissemos no início desse texto, as TIC’s podem aprofundar as desigualdades e exclusões criando mais gargalos para a democracia e a legitimidade política dos governos. De outra parte, elas podem contribuir para a criação de novos espaços públicos que contribuam para aprofundar a democracia e a governança dos espaços urbanos. Não se constituirão como panacéia universal. Os que falam em ágora virtual são reféns de uma sensibilidade deslumbrada e tecnicista. O que é fundamental é verificar a possibilidade de uma aplicação que esteja a serviço do controle social do estado e que tenha a capacidade de oferecer um ferramental que aparelhe os cidadãos para usufruir de um novo patamar comunicacional.
Ilton Freitas,
Mestrando em Ciências Sociais pela PUC-RS e Assessor Comunitário da Procempa (Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre)
Porto Alegre, Julho de 2002
Bibliografia consultada
BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília, editora da Universidade de Brasília, 1983, vol.1-2.
FRANCO, Marcelo A. Ensaio sobre as tecnologias digitais da inteligência. Campinas, SP:Papirus, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa. Madrid, Taurus, 1987.
SILVEIRA, Sergio A. Exclusão digital. A miséria na era da informação. São Paulo, Perseu Abramo, 2001.
Periódicos e Revistas
BURKE, Peter. A esfera pública 40 anos depois. Folha de S.Paulo. 24.03.2002
FREY, Klaus. Governança Eletrônica: experiências de cidades européias e algumas lições para países em desenvolvimento. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Ip revista de informática pública, ano 03, nº 1, maio 2001.
MÜLLER, Friedrich. Que Grau de Exclusão Social Ainda Pode Ser Tolerado Por Um Sistema Democrático. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Revista da Procuradoria Geral do Município, Ed Especial. 60p, out.2000.
Sites
Comunidade Virtual Somos@Telecentros Municipalidade de Bologna – www.comune.bologna.it.
Prefeitura Municipal de Porto Alegre – www.portoalegre.rs.gov.br
Projeto Sampa.org – www.sampa.org
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer