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O que não está nos livros

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Fase

Segundo o dicionário Aurélio, Cultura é "o conjunto de características humanas que não são inatas, e 'que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade". É também "o processo ou estado de desenvolvimento social de um grupo, um povo, uma nação, que resulta do aprimoramento de seus valores, instituições, criações etc". Cientes ou não dessa definição, ao longo da última década, grupos indígenas têm, tanto instintiva como racionalmente, encontrado caminhos, através de adaptações da escola do homem branco, para preservar sua cultura e assimilar coisas novas. A educação escolar indígena tem passado de algo imposto e orientado para catequizar para uma prática aberta que leva em conta as necessidades e diferenças dos cerca de 218 povos indígenas atualmente no Brasil.

A Constituição de 1988 foi um divisor de águas principalmente por causa das disposições dos artigos 210, 215 e 231. Até então, a legislação em vigor que contemplava educação voltada para índios era o Estatuto do Índio - lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. "A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais" - esse era o texto do artigo 50 da lei. A educação, portanto, deveria ser executada com a finalidade de pasteurizar, de impor aos índios a cultura "branca".

Na Constituição de 1988, o artigo 210 diz, em seu parágrafo 2º que "o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem". O parágrafo 1º do artigo 215 assegura que "o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". Por fim, o artigo 231, garante que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." Em resumo, estes artigos são a expressão oficial e incontestável do reconhecimento - por parte do homem branco - da diversidade das culturas indígenas.

Educação como instrumento político

A partir daí, começaram a crescer e se articular iniciativas que valorizam uma educação própria dos índios e para os índios. Uma das principais premissas que vêm norteando quem trabalha com a questão é deixar que eles próprios se organizem para decidir o que deve ser a educação escolar indígena: qual deve ser o projeto pedagógico, a elaboração de materiais didáticos específicos, ensino de disciplinas escolhidas e entendidas como necessárias por eles, uso de práticas pedagógicas tradicionais, formação de professores indígenas (um dos pontos centrais) etc.

A assessoria nestes quesitos já vem sendo prestada pelo Conselho Indigenista Missionário - Cimi, ligado à CNBB, durante boa parte de seus 30 anos de existência. Através de suas equipes regionais, o posicionamento do Cimi é trabalhar pela construção de uma prática educativa voltada para os interesses das comunidades, com a adaptação dos processos escolares formais para a especificidade de cada grupo. Segundo Iara Bonin, missionária que já trabalhou no Amazonas e hoje integra o Cimi Chapecó (SC), a grande bandeira que a instituição vem empunhando é a educação diferenciada para estes povos, já garantida não só na Constituição, mas na Lei de Diretrizes e Bases.

O Cimi acredita, também, que educação escolar indígena é um instrumento político nas mãos dos índios e que, para uma escola se tornar realmente indígena, deve se inserir nas dinâmicas educativas próprias das comunidades. "Para nós, a educação escolar indígena responde à necessidade de instrumentos novos para garantir os direitos dos povos. E o principal direito pelo qual lutam é a terra", afirma Iara. A missionária destaca que os processos alternativos montados pelos próprios índios rompem a visão de que na escola o trabalho é individual e que cabem aos modelos pedagógicos "costurar" o conhecimento entre as disciplinas. "Eles têm um modo diferente de transmitir o conhecimento, fazem mais através de histórias, relatos de experiências", explica Iara.

Formação de professores

Um dos alicerces da educação escolar indígena atual é a formação de professores índios. Tornando professores os próprios membros dos grupos étnicos é mais fácil conjugar no projeto pedagógico conhecimentos tradicionais e disciplinas do homem branco. O Centro de Cultura Luiz Freire, de Recife (PE), realiza há quatro anos trabalho nesta linha com os povos indígenas do estado - Truká, Xukuru, Fulni-ô, Kambiwá, Kapinawá, Pankararu, Tuxá, Atikum, Pipipã. "Discutimos com eles desde o fazer pedagógico nas aulas - a metodologia usada - até o currículo, o calendário, a elaboração de material didático, os modelos de gestão etc.", explica Eliene Amorim, coordenadora do trabalho na instituição. Assim como no Cimi, o programa assimila a realidade e a pedagogia tradicional de cada povo. Como resultados paralelos ao trabalho, os Xucuru já escreveram o livro "Xucuru - Filhos da Mãe Natureza", os Truká editam o jornal "A Borduna" (borduna é um instrumento de luta utilizado pelos Truka) e foi formada a Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco.

Em Roraima - onde o número de escolas indígenas é uma dos maiores do país, 206 - a Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIR) expressa a articulação e o fortalecimento dos professores indígenas. Formada em 1990, pouco tempo depois da promulgação da Constituição que garante os atuais direitos educativos dos índios, a OPIR tem como finalidade unificar a luta dos professores indígenas do estado - são 513 filiados à organização - na busca pela melhoria da educação escolar voltada para os índios. Os princípios são os mesmos que norteiam o Cimi e o Centro de Cultura Luiz Freire: valorização dos conhecimentos tradicionais, da língua materna dos povos e elaboração de materiais didáticos e projetos pedagógicos próprios.

Nos últimos três anos, a OPIR vem desenvolvendo o projeto Anikê, que habilita grupos de professores indígenas para pesquisa das histórias e culturas de alguns povos do estado. Essa pesquisa possibilitará a edição de livros didáticos de história e geografia para o ensino de 5ª a 8ª para serem usados nas aulas dos povos que são estudados. Há ainda o Projeto Inskiran, que, através de parceria com a Universidade de Roraima, pretende habilitar os professores para darem aula no Ensino Superior. "Esperamos que esses trabalhos venham a reforçar a valorização de nossa identidade, como danças e saberes específicos - aquilo que não está escrito em livro algum. O importante é o tratamento sério das autoridades nacionais e estaduais e o investimento na formação de professores", diz o Professor Enilton, índio da tribo Wapithana que coordena o trabalho da OPIR.

Já a Comissão Pró-Yanomami - CPPY, através do Programa de Educação Intercultural (PEI) assessora as tribos Yanomami em Roraima e no Amazonas a construírem modelos de ensino. "O trabalho do PEI surgiu por demanda dos próprios Yanomamis, que queriam encontrar formas para estruturar o ensino escolar. Nós só prestamos uma assessoria e eles próprios constroem as estruturas educativas", explica Luis Fernando Pereira, assessor de educação do PEI. Todas as disciplinas são levadas em conta - matemática, geografia, línguas - porém de um modo especial para cada tribo. "É difícil falar em metodologia quando se fala de educação indígena. A educação escolar baseia-se nas reivindicações deles", comenta Luis Fernando. À CPPY cabe acompanhar o desenvolvimento das escolas, fazendo sugestões quando considera pertinente. O "grosso" do trabalho, no entanto, é realizado pelos próprios índios. "É ilusão pensar que os Yanomami têm cultura fraca, pelo contrário, é muito forte, muito ligada à floresta. Por isso, não existe para eles uma escola imposta pelo Estado. Se existir, não vai dar certo. O que não for do agrado ou da cultura deles, eles não vão considerar", conclui Luis Fernando.


Maria Eduarda Mattar

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