Autor original: Rogério Pacheco Jordão
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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"Quando eu mudei prá lá, tinha que atravessá mesmo era por dentro d’água...os outros tinha ponte, os outros tinha tudo, mas eu ainda não. Tinha mudado de pouco. Aí eu fui fazê a ponte". (moradora de uma casa de palafita na favela da Maré, no Rio, em depoimento de 1969 guardado nos arquivos do CEASM).
"(...) em 1933, há pouco chegado da roça à busca de um prometido emprego em Niterói, andava eu a vagar de São Gonçalo ao Leblon, e de quando em vez, subia a estrada da Gávea e vinha até a Rocinha... Nestes idos a Rocinha era um pequeno povoado... já possuía padaria e açougue". (Inácio de Almeida, poeta, em depoimento nos anos 1980, registrado no livro "Varal de Lembranças").
E eu vim aqui prá ver você/ E sempre ter./ Ilê, minha história!.../ É no Ilê que eu renovo a minha guerra/ E lembro da minha terra/ Doce terra ê, grande amor/ É no Ilê que eu encontro meus amigos/ E desarmo os inimigos/ Do meu bem viver, sem sofrer dor. (trecho da letra da música Estação Azeviche, de Rui Poetta e Miguel Lucena, do Ilê Aiye)
Substantivo feminino, a palavra memória, na definição do dicionário significa "a função geral de conservação da experiência anterior" ou ainda "tomada de consciência do passado como tal". De modo mais simples, é sinônimo também para "lembrança" e "recordação". Como garimpeiros da memória, diversas pessoas e organizações dedicam-se, pelo Brasil afora, ao delicado trabalho de reconstituir o passado de comunidades cujas histórias não estão escritas em nenhum livro, museu ou documento oficial. A valorização da vida cotidiana, a busca da identidade coletiva e a construção de novas formas de expressão, são o fio condutor de quatro experiências relatadas nesta reportagem da RETS. Contamos as histórias do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) e da ONG Rocinha XXI, no Rio; dos projetos desenvolvidos pelo Centro de Cultura Luiz Freire, em Recife (PE), e pela Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, na Bahia. Resgatando a memória, essas entidades ajudam as comunidades a resgatarem sua cidadania.
Ligando gerações
"A importância da memória é fundamental, pois vai estabelecer a ligação entre as gerações", opina Delma Silva, socióloga e técnica da área de desenvolvimento local do Centro Luiz Freire, no Recife (PE). O Centro participa de projetos de resgate da memória e da história dos bairros de Brasília Teimosa, Pina (zona sul da capital pernambucana) e de Peixinhos (zona norte de Olinda).
O trabalho começou a partir da iniciativa de lideranças locais, que consideravam importante – para preservar a história do lugar - registrar os processos das lutas por habitação, educação, saúde, saneamento e transporte. Participam do trabalho – que inclui o recolhimento de depoimentos, vídeos e edição de livros - os grupos comunitários locais, as associações de moradores e grupos de jovens.
"As fontes principais para o início do trabalho são os moradores antigos, aqueles que guardam na memória o processo, o início. Essas histórias muitas vezes são contadas de pai para filho", explica Delma.
Foi tirando do baú de lembranças dos mais velhos, que descobriu-se, por exemplo, que o Bairro Peixinhos leva este nome porque, no passado, havia um rio que cortava a cidade do Recife e Olinda, onde as pessoas se encontravam para pegar peixinhos prateados. "Trabalhar com esse registro faz com que as comunidades percebam e valorizem a sua vida cotidiana, nos diversos movimentos organizados que trazem conquistas coletivas", observa Delma.
Pertencer
A busca da identidade local e o desenvolvimento da noção de "pertencer" são referencias constantes nas experiências de resgate e preservação da memória. "É muito comum o morador daqui dizer que não mora na Maré, mas em Bonsucesso (bairro da zona norte do Rio)", diz a assistente social Maria da Glória Alves Costa, do CEASM. Fundado há 5 anos, a ONG, que atua na área de educação e qualificação profissional nas 18 comunidades que compõem o Complexo da Maré mantém um trabalho de recuperação da história local. "É um trabalho de cidadania", diz.
A equipe Rede Memória do CEASM faz pesquisas em acervos públicos e particulares, além de entrevistas com os moradores mais idosos, para recontar a história do bairro – que começou como favela nos anos 1940. Por meio dos depoimentos, reconstitui-se um pouco de como era a vida na Maré naquela época, quando não havia ruas propriamente ditas, mas trilhas no mato e pontes de madeira sobre os córregos. Muitas das casas eram palafitas.
O material recolhido pela equipe da Rede Memória – que inclui fotos e recortes de jornal – constitui o único acervo disponível no Estado sobre aquela área da cidade, onde atualmente moram 130 mil pessoas. "A historiografia oficial não traz muita informação", diz Maria Glória.
Entre as histórias orais recolhidas, estão muitas lendas do bairro – como a do porco que nasceu com cara de gente e da mulher que comeu um ensopado de cobra e passou anos descascando como o réptil. "Montamos um grupo de pais que contam estas e outras histórias para as crianças nas escolas", diz Maria Glória. Para ela, os jovens são os principais beneficiários do projeto. "A recuperação da história - e a noção da transformação do bairro que isso traz -, faz com que eles entendam melhor o lugar ao qual pertencem", diz ela.
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