Autor original: Rogério Pacheco Jordão
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Nesta entrevista à Rets, Cristina Raposo, responsável pelo setor de Aids da Unesco no Brasil, fala a respeito do recém-lançado livro "Aids: o que pensam os jovens", do qual ela é uma das coordenadoras. A publicação reúne as conclusões do projeto Compromisso dos Jovens e Co-responsabilidade na Prevenção do HIV/aids. Durante dois anos, profissionais da Unesco promoveram encontros e debates com sete lideranças jovens ligadas à questão da Aids no país, com o propósito de extrair idéias para a elaboração de uma "percepção jovem" sobre a epidemia. As recomendações – que incluem a utilização do rádio como mídia privilegiada para a divulgação de informações de prevenção e a garantia de acesso à camisinha nas escolas – poderão contribuir para o trabalho de profissionais da saúde, líderes comunitários e ONGs que lidam com o tema. O livro inaugura a Série Cadernos UNESCO/Brasil Educação para a Saúde.
Rets - Qual a importância de incluir a "percepção jovem" na formulação e na execução de políticas relacionadas à Aids? Qual o papel das ONGs neste processo?
Cristina Raposo - Aproximadamente um terço da população mundial encontra-se entre 10 e 24 anos de idade. Os jovens representam uma parte considerável da população brasileira. Vivemos hoje um momento muito especial onde o número de jovens em nosso país atingiu proporções jamais alcançadas anteriormente. Segundo a Organização Mundial de Saúde, é nesta faixa que se concentra metade das infecções por HIV em todo o mundo. Diante desse quadro, a juventude tem sido prioridade nas pautas de discussão e de estratégias em resposta à epidemia do HIV. A UNESCO acredita que, as estratégias para esta população podem ser apresentadas pelos próprios jovens, pois desta forma estes atribuem significado e importância à educação preventiva e se tornam protagonistas de suas histórias. As ONGs no Brasil possuem um papel importante, na medida em que as políticas de Aids são implementadas em parceria com o Governo em estratégias voltadas à prevenção, assistência e de direitos humanos.
Rets - Quais são as principais conclusões que podem ser tiradas da leitura do livro?
Cristina Raposo - Na UNESCO o tema Aids está inserido no setor educação, pois as questões da epidemia do HIV devem ser trabalhadas pela perspectiva da educação preventiva. Este livro – que inaugura a Série Cadernos UNESCO/Brasil Educação para a Saúde - traz recomendações de jovens que irão contribuir no trabalho de profissionais, líderes comunitários, políticos ou outros jovens que se interessarem em estruturar ações nesta área. Existem recomendações do tipo "promover a utilização do rádio como meio privilegiado de divulgação de mensagens preventivas para jovens, tendo em vista o baixo custo deste veículo". Esta recomendação é muito interessante pois as pessoas leigas acreditam que toda mídia se resume à televisão – o que não é verdade. Outra observação pertinente refere-se ao acesso à camisinha nas escolas. Esta é uma discussão polêmica que trará à tona a necessidade de discutir valores, preconceitos, discriminação e sobretudo o acesso real aos meios de prevenção. Mais do que nunca é preciso refletir que para que o preservativo chegue a ser disponibilizado nas escolas, há que se trabalhar muito as questões referentes à vivência e expressão da sexualidade.
Rets - Vocês entrevistaram, durante dois anos, um grupo de sete jovens para colher os subsídios para se escrever o livro. A senhora poderia falar um pouco dessa metodologia de trabalho?
Cristina Raposo - Os jovens foram selecionados pelo Grupo do UNAIDS no Brasil – Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (um programa que reúne representações de diversas agências do sistema Nações Unidas). Durante dois anos, estes jovens que já atuavam – e ainda atuam – no movimento social de Aids, discutiram os temas que fazem parte da agenda da epidemia do HIV no mundo, tais como gênero, jovens portadores do HIV, relações de trabalho, ações educativas nas escolas, mídia, uso de preservativos, mudança de comportamento, população vulnerável dentre outros. A metodologia utilizada foi vivencial e participativa, cuja aprendizagem se integrou de maneira dinâmica ao processo de compartilhamento de experiências. Assim, concomitante ao processo de discussão o grupo teve a oportunidade de participar de eventos e reuniões internacionais que embasaram suas idéias e contribuíram para as reflexões sobre a construção de políticas voltadas para jovens. Alguns encontros foram gravados e todas as falas aproveitadas para a construção dos textos. É claro que, como profissionais, nós orientamos os debates, a organização do pensamento e a construção das propostas. É importante ressaltar que estes jovens (3 homens e 4 mulheres na faixa entre 18 e 23 anos) não representam a população jovem do Brasil e muito menos aqueles que são parte do movimento da sociedade civil. A nossa expectativa é que, a partir desta iniciativa outros jovens de diferentes contextos possam se organizar e documentar suas idéias e propostas. Para nós, o importante é deixar registrado que o protagonismo juvenil pode ser uma grande ferramenta de trabalho na contenção da epidemia. E nesse sentido o Brasil está à frente de diversos países pois esta experiência é única no âmbito dos países que possuem representação do UNAIDS.
Rets - Qual é a percepção dos jovens com relação à Aids? O jovem de 2002 é mais "consciente" do que aquele que era jovem em 1990? Em outras palavras: a ‘problemática’ hoje é diferente da daquela época?
Cristina Raposo - Falar de "consciência" não é ponto principal desta discussão. Ser "consciente" é ter conhecimento sobre a epidemia, formas de infecção, sexo seguro e etc? Então eles têm mais "consciência". Vamos mudar a palavra? Eu prefiro dizer que o jovem tem mais conhecimento sobre muitos assuntos atuais. Em relação ao jovem dos anos 90, eu diria que ele, aliás todos nós tínhamos muito menos acesso às informações e além disso, as mensagens eram mais subliminares. O início dos anos 90 nos trouxe a possibilidade de entrar em contato – até pelo processo de democratização, inclusive da informação, com discussões mais acaloradas sobre a expressão da sexualidade. A "problemática" – como você coloca – é a vulnerabilidade à epidemia. Somos todos vulneráveis individualmente e socialmente. A vulnerabilidade individual está relacionada ao acesso das pessoas às informações relativas a Aids, à qualidade destas informações e à capacidade de elaboração e problematização dessa informação, para que os indivíduos possam transformá-la em ação prática na vida cotidiana. Mas a capacidade de realizar esta transformação não depende apenas dos indivíduos. Depende de outros aspectos como o acesso a serviços de saúde e educação de qualidade, da disponibilidade de recursos financeiros e da possibilidade de enfrentamento das barreiras culturais. Uma barreira cultural é o uso do preservativo. Falamos dos jovens, mas não nos damos conta de que muitos de nós adultos sequer nos preocupamos em usar preservativos. Então você percebe que não é uma questão apenas de consciência? Nem é uma questão de conhecimento tampouco. Os jovens sabem que o preservativo precisa ser incorporado ao seu repertório comportamental, mas nem sempre o fazem por questões culturais, pela disponibilidade e acesso a este meio de prevenção ou por não se reconhecerem vulneráveis – ainda que tenham o conhecimento. Por estarem em formação, os jovens têm mais condições de adotar práticas de proteção em relação à própria saúde.
Rets - O que caracteriza o problema do jovem em relação à Aids?
Cristina Raposo - O problema do jovem em relação à Aids não está ligado ao modo de infecção, mas ao significado que a prevenção deve ter em sua vida. É o fato de não reconhecer a importância da prevenção e então mudar seu comportamento que o coloca em risco. Este risco se expressa na relação sexual desprotegida ou no compartilhamento de seringas e agulhas. No Brasil as estatísticas apontam que a relação sexual desprotegida é a forma de maior disseminação do vírus HIV. Mas o compartilhamento de seringas também é significativo, daí a importância das estratégias de redução de danos, onde a troca de seringas é uma das ações aplicadas. As estatísticas também têm mostrado um maior uso de preservativos entre os jovens. Mas há muita coisa ainda há ser feita. É preciso ampliar a discussão nas escolas, disponibilizar camisinhas a preços mais acessíveis e também trabalhar o preconceito com relação ao uso do preservativo.
Rets - Quando falamos de jovens, há distinção entre homens e mulheres, no que diz respeito à percepção do problema da Aids?
Cristina Raposo - Como já falei anteriormente, somos todos vulneráveis individual e socialmente. Não há distinção entre homens e mulheres. Mas quando pensamos na vulnerabilidade individual, as mulheres têm dificuldade em negociar o uso do preservativo com o parceiro. Muitas acreditam que pelo fato de terem um parceiro fixo estão isentas do risco; outras não sugerem o uso do preservativo por temerem um comportamento violento do parceiro em reação à proposta feita por ela. Agora eu pergunto: como modificar o comportamento de homens e mulheres quando estes estão atrelados às questões de afeto, situados na privacidade das práticas sexuais e principalmente enraizados nas questões culturais?
Rets - Como os dados do livro serão "aproveitados" pela UNESCO?
Cristina Raposo - O livro não pretende esgotar o assunto. A proposta é aproveitá-lo como um instrumento de consulta para a implementação de políticas e práticas educativas. A América Latina certamente está incluída nas prioridades da UNESCO na disseminação de estratégias brasileiras em reposta ao HIV e à Aids. Mas a UNESCO possui também uma forte cooperação com os países de língua portuguesa. Neste momento estamos implementando em parceria com o escritório da UNESCO em Maputo, um projeto de fortalecimento de organizações da sociedade civil que trabalham com jovens em Moçambique. É claro que as diversidades culturais entre o Brasil e Moçambique precisam ser levadas em consideração quando falamos em "replicar" experiências. Pretendemos adaptar a experiência do Grupo de Trabalho Jovem em Moçambique para darmos continuidade ao processo de construção de uma resposta nacional ao HIV que tenha a participação ativa de jovens. Uma das formas de aproveitar o trabalho é a realização de debates sobre as recomendações apontadas na publicação. No dia 3 de outubro, às 19:00 horas, estaremos realizando um debate no SESC Pompéia (SP) com a presença do Jairo Bouer (MTV). Ele estará coordenando com jovens de diversas instituições, uma discussão sobre as propostas apresentadas pelos jovens co-autores do livro. Esta será a primeira de uma série que pretendemos fazer, com o objetivo de estimular outros grupos a se organizarem para responder de maneira eficaz aos desafios impostos pela epidemia no Brasil.
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