Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Poucas questões são tão complexas e suscitam debates tão fervorosos quanto o aborto. As definições concernentes ao aborto não encontram consenso; seu debate está longe de se esgotar. São evocadas questões filosóficas, religiosas, de direitos humanos e de saúde pública para discuti-lo. No Aurélio, ele é definido como "ação ou efeito de abortar; abortamento, amblose, móvito; interrupção dolosa da gravidez, com expulsão do feto ou sem ela". Em alguns países ele é permitido sem restrições (EUA, China, Cuba e Inglaterra são alguns deles); em outros, é proibido por lei em qualquer situação (exemplos: Chile, Colômbia, El Salvador). Porém, em todos eles, em algum momento, o tema foi ou será sinônimo de polêmica.
No Brasil, é crime
No Brasil, o Código Penal, de 1940, considera o aborto crime. Está lá, no artigo 124: "Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque. Pena - detenção de um a três anos." Porém, a lei faz ressalvas, um pouco mais à frente, no artigo 128: "Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal." Só essas linhas já são motivo para muita controvérsia, devido a diferentes interpretações.
Os grupos que são contra o aborto - normalmente conhecidos como "pró-vida" - lembram que a lei não prevê pena nos casos descritos no artigo 128, o que é diferente de "permitir" o aborto. "A legislação brasileira não admite o aborto em nenhuma hipótese. O que está escrito é que em dois casos o aborto não se pune", afirma o Padre Luis Carlos Lodi, coordenador no movimento Pró-Vida de Anápolis, Goiás, organização que atua na luta contra a legalização do aborto.
É um argumento forte, assim como é forte a pressão dos grupos a favor do aborto no Brasil, que costumam chamar a ressalva do artigo 128 de "aborto previsto em lei" ou “aborto legal” e lutam para que esse serviço seja oferecido pela rede pública de saúde. Foi em grande parte por causa da atuação dos movimentos feministas que se conseguiu a edição da Norma Técnica "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" pelo Ministério da Saúde, em novembro de 1998. Nela, o órgão federal não obriga, mas prevê que os hospitais do SUS prestem assistência à mulher vítima de violência sexual. Nisso, está incluído o aborto previsto em lei.
Hoje, 30 hospitais públicos prestam esse serviço no Brasil, de acordo com dados de 2002 da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos - a RedeSaúde. Destes, mais de um terço está em São Paulo. É o aborto se tornando "mais oficial" pelo aval do Executivo. "O aborto nas duas situações previstas em lei foi efetivamente legalizado pela atuação do movimento de mulheres e por um segmento de profissionais da área de saúde, que têm lutado para que isto seja uma obrigação do Estado", afirma Maria Isabel Baltar, secretária executiva da RedeSaúde.
As organizações que são a favor do aborto vão muito mais longe a fim de exigir o seu reconhecimento. Para a maioria delas, a abortagem é um direito humano, deve ser garantido pela liberdade de escolha inerente à democracia, além de ser uma questão importante de saúde pública. Um dos movimentos mais expessivos nesse sentido é a Campanha 28 de Setembro - Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. A iniciativa se identifica como "uma atividade do movimento de mulheres latino-americano e caribenho, de luta pelo direito ao aborto no marco da democracia e dos direitos humanos". Para as mulheres participantes, o direito de decidir sobre sua vida e seu próprio corpo é o que guia a luta pela legalização da prática.
O documento político da campanha - a Carta da Guanabara - foi aprovado em 2001, por 98 representantes de 27 países e, em agosto de 2002, a Carta foi endossada por 420 mulheres do mundo inteiro. Entre seus pontos principais, o documento traz: "Os direitos sexuais e reprodutivos foram criados e propostos pelo movimento de mulheres para tornar a vida social justa e democrática, e estender a idéia de igualdade e liberdade da esfera pública para a privada. Devem ser exercidos sem nenhum tipo de coerção ou discriminação, porque são parte do exercício da cidadania. O direito ao aborto é parte dos direitos humanos. Penalizá-lo constitui discriminação e violência contra as mulheres (...) Exigimos a legitimidade das distintas razões pelas quais nós, mulheres, recorremos ao aborto."
Quando os direitos se chocam
O outro lado do ringue conta com um peso pesado no quesito formação de opinião: a Igreja Católica. Contrário desde sempre, o Vaticano não ensaia nenhum movimento no sentido de admitir qualquer tecnologia reprodutiva - muito menos o aborto. É a Igreja - e sua idéia de sacralidade da vida - a principal influência sobre os grupos pró-vida, que rebatem os argumentos de direitos humanos empunhados pelo movimento feminista perguntando: "E os direitos humanos do filho?". Para quem é contra o aborto, a vida é formada no momento da concepção (fecundação), já existindo a partir dali um novo ser humano. Retirar da barriga da mãe este novo ser é, assim, um assassinato. Para eles, o filho não é parte do corpo da mulher e, sim, um novo ser. Por isso, não procede o argumento de que as mulheres devem decidir o que fazer com os próprios corpos.
Um dos argumentos mais fortes pró-aborto é a questão da saúde da mulher. O fato de o aborto de um modo geral ser ilegal não significa que não é realizado. Como é uma atividade clandestina (e que não se encontra em qualquer esquina), os serviços que apresentam condições seguras à saúde da mulher normalmente são caros. Pela própria realidade sócio-econômica brasileira (além de a educação sexual praticamente inexistir principalmente nas classes menos favorecidas), o maior número de gestações indesejadas se dá nessas classes – justamente as que não têm condições de pagar uma boa clínica clandestina. Acabam recorrendo a clínicas menos preparadas ou métodos caseiros de induzir o aborto.
Nesse contexto, as complicações são corriqueiras. Anualmente, morrem na América Latina e Caribe cerca de quatro milhões de mulheres em consequência de abortos inseguros, segundo dados de 1998 da Organização Mundial de Saúde. A RedeSaúde – em seu Dossiê Aborto Inseguro, de 2001 – estima que o aborto inseguro é a quarta causa de mortalidade materna (relacionado com complicações no parto ou na gravidez). Para o movimento feminista, legalizar o aborto é garantir que esses números diminuam vertiginosamente, na medida em que as mulheres poderão ter o devido atendimento, com o respaldo e sem medo da lei.
Métodos anticonceptivos
Há ainda outros aspectos, como controle de natalidade e implicações sócio-econômicas do aborto, estudados pela pesquisadora Sonia Corrêa, do Ibase e da Rede Dawn (Development Alternative with Women for a New Era). Para ela, “mesmo que uma ampla política de saúde sexual e reprodutiva fosse implementada em todo o país, é fundamental reconhecer que ainda assim a gravidez indesejada não iria desaparecer, num passe de mágica. As mulheres engravidam sem desejar mesmo nos países onde estas condições estão dadas como é caso da Suécia, Dinamarca e Holanda. Por que isto acontece? Em primeiro lugar porque os métodos anticonceptivos (exceto os definitivos, como a laqueadura) não são infalíveis. Eles falham tecnicamente. Em segundo lugar, muitas mulheres não têm acesso a métodos contraceptivos femininos, seja porque não podem comprar, seja porque não têm acesso a serviços que os ofereçam gratuitamente.”
Sonia também leva em conta outras questões do discurso do movimento feminista: “Entretanto o mais importante a meu ver é reconhecer que o aborto não é só um problema de saúde ou de prevenção da gravidez indesejada, mas uma questão de direitos tal como formulada na cartilha distribuída pela Rede Dawn e a Campanha 28 de setembro (controle e segurança sobre o próprio corpo, autonomia pessoal, privacidade, diversidade de opinião). O aborto é sempre uma circunstância que revela e interroga a questão da liberdade.”
Esses argumentos pouco sensibilizam os grupos pró-vida, que consideram o direito à vida maior do que o direito à liberdade. Para eles, realizar um aborto é comparável ao nazismo, ao alijamento dos leprosos levado a cabo no passado, dos velhos e de todos que se tornam “socialmente incovenientes” para quem realiza a ação.
Nessa briga permeada por considerações filosóficas, éticas, religiosas e exigência de direitos, aparecem movimentos como o Católicas pelo Direito de Decidir. “O nome "católicas" vem da nossa ligação com a igreja progressita e também pelo nosso contato com as Católicas do Uruguai, que já tinham um grupo constituído na época do surgimento de Católicas no Brasil”, explica Dulcelina Vasconcelos Xavier. Sendo católicas e defendendo o direito de escolher, podem correr o risco de serem consideradas controversas, o que não aceitam. “Não somos ‘controversas’, pois somos católicas e o nosso objetivo não é a defesa do aborto como método contraceptivo; o que queremos é que as decisões das mulheres sejam respeitadas em todas as dimensões, inclusive quando interrompem uma gravidez”, justifica Dulcelina. São pessoas que, apesar de católicas, levam em consideração o contexto social da vida da mulher, buscando compreender a condição concreta dela ter ou não possibilidade de levar a cabo uma gravidez. Na mesma medida, defendem a implementação de uma política efetiva de educação sexual e acesso a todos os métodos contraceptivos como forma de prevenção de gravidezes indesejadas, evitando, assim, o aborto.
O Legislativo
O campo em que grande parte desse debate se define é o Legislativo. Quando leis que permitem ou proíbem o aborto são aprovadas é que algum destes grupos obtêm alguma vitória. Atualmente, vários projetos-de-lei tramitam no Congresso Nacional, onde atuam lobbies tanto da bancada católica quanto dos movimentos feministas. Uma referência no assunto aborto no Congresso é o PL 00020, de 1991, proposto pelo deputado federal Eduardo Jorge, do PT. Mais de dez anos atrás, ele propunha que a rede pública de saúde oferecesse os serviços de aborto legal. Até hoje está na Câmara dos Deputados.
Para tentar adiantar a aprovação de projetos-de-lei desse tipo, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) atua diretamente no acompanhamento destes processos. “Existem diversos projetos em tramitação no Congresso Nacional sobre a temática do aborto. De um lado, dispondo sobre a ampliação das possibilidades de sua realização, sua descriminalização e sua legalização. De outro, propondo a condenação de toda e qualquer interrupção da gravidez. Estes projetos estão parados. As proposições que pretendem ampliar as possibilidades do aborto, descriminalizá-lo ou legalizá-lo enfrentam a oposição fundamentalista das forças religiosas e conservadoras", afirma Almira Correia de Caldas Rodrigues, assessora técnica do Cfemea.
De seu lado, os grupos pró-vida atuam no Congresso pela criação do Dia do Nascituro (não nascido), através do PL 947, de 1999, apresentado pelo deputado Severino Cavalcanti, católico e identificado com a luta contra a legalização do aborto. Tanto este PL quanto o Projeto de Decreto Legislativo 737/98 (que susta a Norma Técnica do Ministério), também de autoria de Severino Cavalcanti, contam com o apoio da CNBB.
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