Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Rastrear pedófilos, comerciantes de fotos pornográficas e aliciadores de menores pela Internet não é tarefa fácil. Conseguir que os casos sejam denunciados, apurados e resolvidos, menos ainda. Porém é a isso que se propõe a ONG Kids-Denúncia, atuante desde 1999 e que já recebeu mais de cinco mil denúncias via Internet. O trabalho inclui o recebimento das informações, o encaminhamento para os Ministérios Públicos de cada Estado, a comunicação à Polícia e, muitas vezes, o acompanhamento psicológico junto às vítimas ou denunciantes. Foi assim que a organização conseguiu resolver até hoje mais de 1700 casos.
Nessa entrevista exclusiva, a equipe do Kids-Denúncia revela como o trabalho da organização já ajudou a prender pedófilos, redes de prostituição, abusadores sexuais, entre outros, e como a ONG pretende agora transformar as informações obtidas com as denúncias em objeto de consulta e pesquisa. Participaram da entrevista a coordenadora da instituição, Wal Ribeiro, a coordenadora de projetos, Sheila Nogueira, e a consultora psicológica, Valéria Magalhães.
Rets - Quando e como começou o Kids-Denúncia?
Equipe Kids-Denúncia - O Kids começou de uma forma muito diferente. Em 1999, a coordenadora do Kids, Wal Ribeiro, que é jornalista, foi fazer uma entrevista numa ONG de defesa dos direitos humanos sobre o trabalho dessa organização e acabou fazendo amizade com a equipe. Ela já tinha interesse pelo tema do desaparecimento de crianças, abordava muito a questão no seu trabalho. Resolveu, então, fazer uma matéria sobre isso e na época essa ONG tinha resolvido um caso de pedofilia na Internet, que foi o primeiro grande caso de pedofilia do site (que posteriormente viria a ser o Kids-Denúncia). Na época, um menino de 17 anos estava numa sala de bate-papo e recebeu uma proposta: "Você quer kids?" Ele achou que era uma brincadeira e aceitou. A pessoa explicou que eram fotos de modelos nuas. Um menino de 17 anos... claro que queria fotos de modelos internacionais nuas. Quando ele recebeu os arquivos, eram uma seqüência de fotos de crianças em situação de pedofilia, tinha violências sexuais grandes - abusos, estupros - com uma menina de cinco anos. Eram horríveis. Então, a ONG com a qual a Wal se relacionava encaminhou esse caso para o Ministério Público do Rio de Janeiro e para o FBI (a polícia federal americana).
Nessa época, a diretora da ONG propôs a ela fazer uma pesquisa para saber como aparecia o tema da pedofilia na Internet. (Somou-se a isso o fato de ela já ter tido o projeto de fazer um jornal para crianças e adolescentes) Então, a Wal produziu um texto em linguagem jornalística para a Internet e, ao final dele, colocou um espaço para as pessoas denunciarem casos semelhantes, criando assim um site em parceria com aquela ONG, achando que jamais alguém ia ver aquilo e, principalmente, denunciar. A nossa surpresa foi que no dia seguinte à estréia do site, ele ganhou o prêmio Melhor da Internet. Não era o melhor site, não tinha nada. Só pode ter sido pelo conteúdo, porque não existia nada daquele tipo na Internet. E começamos a receber muitas denúncias, cada uma com uma variante, cada caso tinha um elemento diferente. Era o início do Kids-Denúncia.
O nome da organização inclui a palavra kids justamente porque "kids" era um código para fotos pornográficas de crianças. E nossa intenção foi escancarar isso.
Rets - Qual foi o primeiro caso de peso do Kids-Denúncia?
Equipe Kids-Denúncia - A denúncia do primeiro grande caso do site veio em maio, um mês depois que ele entrou no ar. Um pai denunciou que o filho dele de 14 anos estava sendo aliciado através da Internet por um grupo de homossexuais, que estava convidando esse menino para um encontro erótico. Não existia polícia para esses casos na época. Por isso, encaminhamos para o então Ministro da Justiça, Renan Calheiros, pois era a autoridade máxima na área e ele destacou uma equipe da Polícia Federal de Brasília (a denúncia era de lá) para cuidar desse caso. Na primeira noite em que eles ficaram de tocaia, não apareceu nenhuma criança. Na segunda, apareceram oito crianças e eles prenderam o grupo em flagrante.
Na época desse primeiro grande caso, o Renan Calheiros ficou tão impressionado com as denúncias que resolveu criar uma força-tarefa dentro da Polícia Federal para resolver esse tipo de crime. No entanto, ele saiu do Ministério da Justiça meses depois e nós pensamos o que fazer, pois não tínhamos para onde encaminhar os casos. Então, um agente dessa corporação, que já fazia uma pesquisa na Web voltada para aquele tipo de denúncia - ele tinha muita experiência no assunto, mas nada divulgado - propôs ficar cuidando das denúncias enviadas para o Kids, representando a divisão de Direitos Humanos de Brasília. O que foi ótimo, pois ele era uma pessoa muito entendida no assunto, principalmente pela base, em termos de investigação. Juntos, nós conseguimos resolver grandes casos - como chegar ao autor da foto-montagem da Sandy, que foi uma investigação de um ano e meio (para se chegar ao autor, não à pessoa que exibiu no site, que foi logo pega).
E a partir daí só cresceu o número de denúncias. Assim, o Kids foi passando a ter autonomia e virou um trabalho independente. Todas as pessoas que vieram para o Kids se especializaram nisso, não existia nada nesse sentido.
Depois disso, muitos casos chegaram - de aliciamento, tráfico de crianças, montagem pornográficas, pedofilia - e fizemos grandes parcerias, porque muita gente passou a se interessar. Por exemplo: um procurador do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nos procurou pois queria estudar mais sobre o tema e se dispôs a cuidar das nossas denúncias. Houve um crescimento em relação a isso, cada denúncia nova abria um viés. A gente já pegou rede de pirataria, de prostituição etc. O último caso resolvido pelo Kids tem duas semanas.
Rets - Qual o procedimento efetuado quando vocês recebem uma denúncia?
Equipe Kids-Denúncia - Quando a gente recebe uma denúncia sobre um site, por exemplo, é fácil a gente entrar em contato com o provedor para ele tirar a página pornográfica do ar, até porque o Kids já é conhecido nesse mundo de Internet e tem certa facilidade para fazer com que isso aconteça. Mas não fazemos isso. Procedemos com uma investigação para chegar aos autores. A metodologia é a seguinte: a gente identifica, passa a denúncia para o nosso especialista e ele rastreia tudo que ele pode sobre o autor do site, tira a comprovação da denúncia...
Rets - Como esse rastreamento é feito?
Equipe Kids-Denúncia - Esse tipo de trabalho não pode ser divulgado, porque compromete a eficiência do processo. Eu posso dizer que ele é um hacker do bem. É através desse serviço que a gente rastreia. Pegamos esses dados todos, encaminhamos para o Ministério público em todas as regiões do Brasil e para a Polícia Federal e colocamos os dois órgãos em contato um com o outro e com o denunciante (cuja participação é fundamental em muitos casos). Nunca entramos em contato com o provedor, a não ser que a pessoa faça muito bem, sem deixar rastros, mas isso é raro.
Rets - Que outros recursos são usados no processo de se confirmar uma denúncia?
Equipe Kids-Denúncia - Podemos fazer exame de DNA, conseguir autorização para filmar e botar câmera na casa. Nós como organização podemos intermediar, não temos poder de punir, poder de polícia.
Rets - Em que tipos de violência os crimes contra a crianças podem se encaixar?
Equipe Kids-Denúncia - Existem quatro tipos de violência: a violência física, a violência psicológica, a negligência e o abuso sexual. Basicamente, são essas quatro. Normalmente as pessoas estão mais atentas à violência física, pois deixa marcas, a criança grita, chora etc. A psicológica inclui humilhação, xingamentos, discriminação. É uma das mais difíceis de se identificar e de as pessoas serem denunciadas...
Rets - E é confundida com educação...
Equipe Kids-Denúncia - É, é confundida com Educação, com rigidez religiosa, mas que é uma violência contra aquela criança e pode causar danos mais tarde na personalidade dessa criança. A negligência se dá quando os responsáveis pela criança ou adolescente não atendem às necessidades básicas para o seu desenvolvimento físico ou psicológico. Também se constitui negligência não escutar, ignorar, desacreditar, se omitir ou negar alimentação e cuidados a uma criança. Finalmente, a violência sexual é uma situação em que a criança ou o adolescente é usado para satisfazer sexualmente um adulto pelo uso da força, poder ou confiança.
Muitas vezes, tratamos de casos que se encaixam em vários crimes. Às vezes uma única denúncia se desdobra em várias classificações de violência contra a criança, como pedofilia, estupro, abuso sexual, exploração do trabalho infantil.
No início só trabalhávamos com denúncias de pedofilia na Internet. Mas, muita gente começou a encaminhar denúncias de maus tratos, de abuso sexual que não envolviam Internet. Nós não podíamos não atender. Por isso, atendíamos mas não divulgávamos que o Kids estava prestando este tipo de atendimento. Porém foi crescendo e nós resolvemos abrir o leque.
Rets - O que é preciso para caracterizar um crime e se denunciar?
Equipe Kids-Denúncia - É crime se você manda fotos pornográficas de adultos ou crianças para um menor ou se você manda uma foto pornográfica de crianças para um adulto. Ou seja, configura crime se você manda fotos de crianças envolvidas em ações de sexo - na verdade, basta que haja insinuação - para um adulto ou para uma criança; ou se você sabe que seu interlocutor é uma criança e manda foto de mulheres peladas, de sexo etc.
Se você receber uma foto dessas por correio eletrônico, você pode fazer a denúncia por troca de imagem pornográfica. Porém, se alguém manda para o Kids Denúncia isso não é crime, porque nós trabalhamos com isso. Se nós pedirmos as fotos para alguém via Internet, também não é crime. Por exemplo, nossa equipe ou a Polícia não podem entrar numa sala de bate-papo, pedir as fotos pornográficas e pegar quem nos mandar, porque não é crime. Se a Polícia tivesse esse poder de rastrear nas salas de chat, atrair essas pessoas e quando eles mandassem a foto isso ser crime, seria uma maravilha.
Você pode denunciar também um site que exibe, troca ou comercializa fotos pornográficas de ou para crianças. Aí apuramos quem é o autor - porque isso é crime, previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - e essa pessoa pode ser presa em flagrante, indiciada e responder a processo. Nesse caso, a Polícia ou o Kids podem estar navegando na Web e encontrar um site desses e proceder com o trabalho de rastreamento.
É preciso deixar claro que existem duas coisas diferentes: numa o cara cria um site e alguém denuncia (ou a Polícia ou o Kids ficam sabendo de alguma forma que aquele site existe). Em outra situação, alguém recebe uma foto pornográfica, tem a consciência de que aquilo é crime e informa ou para o Kids ou para a Polícia ou para um outro órgão que possa receber essa denúncia.
Rets - Vocês fazem um acompanhamento das denúncias depois que elas são repassadas para o Ministério Público ou para a Polícia?
Equipe Kids-Denúncia - A gente faz. Damos assistência tanto ao denunciante quanto à vítima (que muitas vezes são a mesma pessoa). Mesmo depois que a denúncia é resolvida, em casos como de maus tratos, abuso sexual e outros continuamos fazendo um monitoramento, para ver se aquela situação mudou, se a criança está bem, se a família está bem, se a criança continuou o tratamento etc.
Além de fazer o atendimento junto a juizados, há vezes em que encaminhamos para projetos culturais e educacionais, como a Escola Nacional do Circo. Já conseguimos uma adoção, por exemplo. Temos esse lado também de arrumar um encaminhamento, pois em muitos casos resolvidos a situação da vítima fica em suspense. Por isso, procuramos dar um apoio para que a criança possa seguir em frente.
Rets - Com que facilidade esses casos são resolvidos?
Equipe Kids-Denúncia - A incidência de resolução dos casos do Kids é muito grande. Todos os casos complicados e que envolviam a colaboração direta do denunciante foram resolvidos. Os casos de maus tratos e de exploração de trabalho infantil foram todos resolvidos.
Rets - Quem mais denuncia ao Kids?
Equipe Kids-Denúncia - Recebemos muitas denúncias de crianças e adolescentes. Teve um caso recente, em janeiro, em que uma menina denunciou os maus tratos que estavam acontecendo na casa dela, pelo padrasto. No entanto, ela pediu para não ser identificada e nós preservamos essa vontade dela até o fim. O Ministério Público teve que confiar na nossa palavra de que lá havia um caso. Foi feito um tratamento com essa família e o homem diminuiu bastante os maus tratos, as surras.
Um tempo depois, fazendo aquele monitoramento do qual já falamos, entrei em contato com a menina que me relatou que estava vivendo em situação de cárcere privado. Como a mãe na primeira vez não quis se separar dele, pois achou que ele tinha melhorado, o Ministério Público ficou meio com o pé atrás para fazer algo. Pedimos, então, apoio da Polícia e ele foi preso em flagrante, indiciado e agora está respondendo a processo.
A Internet tem essa faceta. Da mesma forma que ela possibilita que o perpetuador da violência se sinta imune e protegido para agir - porque inventa um nome, se esconde atrás de apelidos - o denunciante também alimenta essa coisa de que está por trás do computador, de que não se pode vê-lo. Dessa maneira, eles ficam mais à vontade para denunciar. O curioso é que a maioria das denúncias que nós recebemos não são anônimas.
Rets - As denúncias estão mais relacionadas a alguma classe social?
Equipe Kids-Denúncia - De uma certa maneira, o histórico de atendimento a maus tratos está associado ao universo da pobreza. Por que? Porque a vida privada dessa classe social é muito mais "invadida" do que as outras. No entanto, quando se começa a fazer um trabalho em que o veículo de denúncia é o computador, então de uma certa maneira você atinge a classe média, média-alta, pois é nessas classes que está a maioria das pessoas que sabe acessar, navegar e tal. Isso abre um leque para você avaliar o perfil de violência contra a criança e o adolescente com relação à inserção social. É muito interessante porque desvincula-se daquela idéia de que acontece só com os pobres.
Rets - É possível traçar um perfil, com base nas denúncias ao Kids, das pessoas que praticam violência contra crianças e adolescentes?
Equipe Kids-Denúncia - É muito difícil. O abusador sexual não necessariamente é um pedófilo. O perfil psicológico de um e de outro é diferente. Muitas vezes a rede de pedofilia é muito grande e gera muito dinheiro. Existe até uma filosofia de vida dessas pessoas que acreditam que independentemente de idade uma determinada ação sexual pode existir e que a criança tem desejo, tem vontade igual a um adulto e que isso não é nada demais. Ele não tem essa moral de acreditar que aquilo é crime, algo errado ou que faça algum mal à criança. Tanto que a pedofilia existe entre pessoas de nível cultural e educacional muito alto.
O abuso sexual tem a característica de se dar mais na esfera doméstica, normalmente é praticado dentro de casa, por um pai, tio, avô etc. O abusador sexual normalmente sofreu algum abuso sexual e só tem desejo, na vida adulta, se relacionando com criança. Casa-se e tudo, mas na realidade a busca dele é estar com crianças.
Rets - Mas, querer se relacionar com crianças não é justamente a característica do pedófilo?
Equipe Kids-Denúncia - Não. O pedófilo muitas vezes nem tem relacionamento com crianças. Ele fotografa e às vezes nem é ele que está abusando dessa criança. Eles se excitam com a situação, não necessariamente chegam a abusar da criança. Existem sites de pedofilia que têm fotos de crianças tomando banho na banheira, por exemplo. Eles se excitam só com a insinuação.
O abusador pode ser um pedófilo. Mas os mecanismos psicológicos do abusador sexual e do pedófilo são diferentes. O abusador sexual jamais se excitaria olhando uma foto de uma criança tomando banho dentro de uma banheira. O universo psicológico dele envolve a sedução, a submissão daquela criança e pode envolver violência. Já os pedófilos, muitos deles recorrem à antigüidade grega para explicar seu comportamento, lembrando que a iniciação sexual da criança na Grécia era feita por um adulto, que nossas avós e bisavós se casavam com 10, 12 anos... Eles acham o seguinte: que é uma ordem humana, histórica, legal, contemporânea que proíbe, é uma mera lei que proíbe. No entanto, moralmente, psicologicamente, sexualmente, é natural, não tem nenhuma restrição, não tem nenhum mal que esteja sendo feito à criança. É diferente de um abusador sexual, por exemplo: um padrasto bêbado que estupra a enteada. O que ele está pensando para fazer aquilo é bem diferente do pedófilo, que tem uma elaboração mental muito maior para atuar. O abusador, por sua vez, vive aquela coisa toda no ambiente doméstico e nem pensa em fotografar, em filmar, em justificar moralmente o que está fazendo, esse ritual todo próprio da pedofilia.
Rets - Falem sobre a pesquisa que vocês estão iniciando, com base nas denúncias que receberam ao longo desses três anos.
Equipe Kids-Denúncia - O Kids firmou há cerca de um mês uma parceria com o Quantidados, um núcleo de pesquisas da UERJ, e a idéia é que a gente consiga transformar os dados empíricos, de atendimento, colhidos a partir das denúncias - que basicamente ficam restritos só a equipe do Kids - e transforme estes dados em informação para pesquisa, para consulta, estatísticas mesmo, perfil das pessoas, que podem ser consultadas para pensar políticas de atendimento e tratamento a pedófilos. Enfim, a gente vai transformar esse material que é manipulado pelo Kids-Denúncia em material disponível para pesquisa, para consulta. É óbvio que nada vai comprometer a privacidade e o anonimato das pessoas que denunciaram. Como temos cinco mil denúncias, vamos trabalhar com uma amostra, primeiramente, que vai nos dar o know-how até para criar os formulários, os campos da pesquisa etc. A idéia é que no futuro isso passe a ser automático, que a gente esteja alimentando o banco de dados diariamente, com as novas denúncias e gerando dados imediatos. Essa primeira etapa deve estar pronta daqui uns três meses, nos fornecendo dados parciais.
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