Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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“Um outro agente penitenciário grita para que o alarme seja acionado. O alarme soa. Pelo telefone da guarita, o PM Leal comunica o Batalhão da Guarda alertando que há rebelião no Pavilhão 9. Às 13h50, carcereiros tentam sem sucesso conter as brigas entre os presidiários. Não há possibilidade de fugas dos detentos, não há reféns e tão pouco reivindicações por parte dos presos”.
Começava assim, há dez anos no dia 2 de outubro, nas palavras de um relatório elaborado por entidades de direitos humanos (faça download do documento, ao lado), o episódio na Casa de Detenção de São Paulo que entou para a história como o Massacre do Carandiru – no qual 111 presos foram mortos pela Polícia Militar durante uma invasão para debelar uma briga entre os detentos. Dos mortos, 103 foram vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 8 morreram devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares.
A data não passará em branco. Um ato ecumênico organizado por lideranças religiosas e entidades de defesa dos direitos humanos, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, lembrará os 10 anos de impunidade dos culpados do massacre (veja box). Até o momento, apenas o Coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação, foi julgado. Apesar de condenado a 632 anos de prisão, o coronel recorreu e aguarda em liberdade à decisão final da Justiça.
O fato de ser um dos responsáveis pelo maior massacre já ocorrido dentro de um presídio no Brasil – que levou o país a ser formalmente condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (para download, ao lado) – não o impediu de assumir, em 1997, uma vaga de deputado estadual (eleito como suplente pelo PSD, utilizando o número 111 como chamariz de campanha) em São Paulo. Ele concorre de novo nas próximas eleições de 6 de outubro. Nenhum outro envolvido foi, até agora, julgado.
Já na esfera civil, 30 famílias de presos mortos ganharam indenizações (mínimas) do Estado – considerado culpado por não garantir a integridade física das pessoas sob sua custódia. Mesmo assim, as famílias ainda não viram a cor do dinheiro, já que as dívidas entraram como “precatórios”, que estão atrasados em todo o Estado de São Paulo. Esse tipo de coisa revolta cidadãos como José André de Araújo, também conhecido como “sobrevivente”.
O sobrevivente
José André de Araújo, 32 anos, o André du Rap – codinome ‘sobrevivente’ - tinha 22 anos quando tudo ocorreu. Ele estava no quinto andar do Pavilhão 9 da Casa de Detenção quando a polícia começou a invasão. “Vi os policiais entrando e assassinando covardemente todo mundo. Vi a covardia da PM, a opressão do sistema”, disse à Rets, pelo telefone celular, desde a sua casa em Ferraz de Vasconcelos, na zona leste de São Paulo. Acusado de homicídio (“que não cometi”, garante), ele esteve preso durante dez anos. Livre há dois anos, leva adiante atualmente uma oficina de hip-hop e grafite para jovens de seu bairro.
André – que também vive de “bicos” – faz parte da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. “É para divulgar a ideologia do ex-presidiário, do movimento hip-hop, visto como coisa de maloqueiro, de ladrão. É puro preconceito”, diz.
O rapper sobreviveu por pouco. “Me misturei no meio dos cadáveres. Tomei quatro baionetadas, duas na testa e duas na cabeça. Me fingi de morto. Pegaram o colchão quente e pingaram em cima da gente. Quem se mexia, morria”, lembra ele, que até hoje tem pesadelos.
André ainda se fingia de morto, em meio ao sangue, quando a Polícia Militar, comandada pelo Coronel Ubiratan Guimarães, iniciou a fase de “limpar” o cenário, descrita desta maneira pelo Relatório elaborado pela Comissão Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do Carandiru, composta por mais de vinte ONGs e entidades de direitos humanos:
“Imediatamente após o massacre, os policiais militares modificaram a "cena do crime", destruindo provas valiosas que teriam possibilitado a atribuição de responsabilidade pelas mortes a indivíduos específicos. O acesso de civis aos andares superiores do Pavilhão 9 ficou impedido, enquanto a PM dava ordens aos detentos para que removessem os corpos dos corredores e celas a fim de empilhá-los no 1° andar. As atividades da perícia foram dificultadas pela quantidade de cadáveres e pela faxina feita no presídio pelos policiais militares e a remoção ilegal dos corpos ordenada pelos oficiais.”
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