Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Graças a relatórios como o da comissão que acompanhou o julgamento – e ao trabalho de formiguinha de entidades de direitos humanos – foi possível reconstituir o massacre. E isso não é mero detalhe. “Se não fossem as entidades de direitos humanos, é possível que o massacre do Carandiru ficasse – como era comum nesses casos – restrito a um Inquérito Policial Militar, tradicionalmente arquivado por 'falta de aprovas' ”, diz Antonio Maffezoli, Procurador de Assistência Judiciária do Estado de São Paulo e que assessora entidades de direitos humanos. “Após o massacre tudo apontava para o arquivamento do processo, com um julgamento interno. A pressão das entidades reverteu isso”, diz.
“Aquelas primeiras horas pós-massacre foram cruciais. A primeira providência foi acompanhar as autópsias dos 111 mortos”, lembra Beatriz Affonso, secretária-executiva da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos.
Em casos como este o acompanhamento da autópsia é fundamental. Herança dos tempos da ditadura militar, ainda acontece com freqüência nos IMLs autópsias falsas – para livrar os verdadeiros assassinos de suas responsabilidades. O juiz, para abrir o processo, precisa de provas. Se chega até ele um documento do IML dizendo que a morte ocorreu, digamos, por causas “naturais”, o processo nem é aberto (já que não há crime caracterizado). O expediente foi amplamente utilizado nos anos de governos militares para acobertar a tortura e a morte de presos políticos – vítimas de “atropelamentos”, “suicídios” etc.
“Lutamos para que os laudos do IML (Instituto Médico-Legal) retratassem a verdade. Se não fosse este trabalho, é provável que não houvesse julgamento por falta de provas”, diz Beatriz.
No total, entre os 103 mortos por armas de fogo, a cabeça foi alvo de 126 balas, o pescoço alvo de 31 e as nádegas levaram 17 balas. Os troncos tiveram 223 tiros. Os laudos periciais concluíram que vários detentos mortos estavam ajoelhados, ou mesmo deitados, quando foram atingidos. Os exames de balística informam que os alvos sugerem a intenção premeditada de matar. Um detento tinha 15 perfurações de disparos de arma de fogo no corpo.
Justiça
Caracterizado o massacre, a competência para julgar o caso foi transferida, em 1996, da esfera militar para a Justiça comum (por pressão das entidades e da sociedade civil organizada). A partir daí, o que se viu foi um espetáculo de impunidade e ineficiência dao Judiciário brasileiro quando julga pessoas endinheiradas e detentoras de poder.
No período em que se discutia a competência da Justiça, os crimes de lesões corporais leves prescrevem e, com isso, 29 oficiais escaparam de receber uma pena de 21 anos de prisão cada. O Coronel Ubiratan Guimarães tomou posse como deputado estadual pelo PSD em janeiro de 1997, ganhando imunidade parlamentar e obrigando o processo a ser desmembrado (o dele separado dos demais réus - outros policias e oficiais que participaram da operação).
Por meio de manobras legais e subterfúgios jurídicos, os advogados de defesa vêm conseguindo – passados dez anos – postergar o julgamento dos envolvidos (veja no relatório, para download, na página inicial desta matéria).
“A impunidade continua até hoje. O massacre continua”, diz o Padre Valdir João Silveira, da Pastoral Carcerária. Para ele, pouca coisa mudou de 1992 para cá no que diz respeito à situação dos direitos humanos dos presos. “O assassinato coletivo foi um golpe a mais dentro da luta pela defesa da vida humana. A banda dura da Polícia, do Estado continua inabalável apenas mudando e sofisticando a tática a cada golpe”, diz ele.
Padre Valdir faz referência à existência de uma organização chamada Gradi (Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância). O Gradi foi criado no final dos anos 90 para estudar e investigar crimes contra minorias e está ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado. De acordo com entidades de direitos humanos, porém, o órgão passou a extrapolar suas atribuições originais - e atualmente mantém atividades ilegais voltadas para a "eliminação de bandidos", nos mesmos moldes do antigo Esquadrão da Morte e da escuderia Le Coq, do Espírito Santo. Segundo entidades ligadas à defesa dos direitos humanos, o Gradi comete uma série de irregularidades, como a retirada de presos já condenados de dentro das cadeias para “infiltrá-los” no crime organizado ou servirem como iscas para operações em que acabam mortos por integrantes do próprio Gradi. O Gradi, de acordo com a Pastoral Carcerária, tem entre seus membros pessoas ligadas ao antigo DOPS (Delagacia da Ordem Política e Social).
Outro problema apontado por Padre Valdir é o preconceito enfrentado por ex-presidiários. “Enfrentam preconceito no trabalho, dos vizinhos”, diz. “Ser ex-presidiário, sair da cadeia, é difícil se reintegrar na sociedade hipócrita”, faz coro André du Rap.
Mas, apesar da impunidade e das poucas melhorias no tratamento a presos em SP (estado onde estão 40% dos encarcerados brasileiros), militantes de direitos humanos, como Beatriz, vêem alguns avanços nos últimos dez anos. “De certa forma, conseguimos, no processo de pressão para punir os responsáveis pelo massacre, dar maior transparência ao que acontece dentro das prisões. Acho que conseguimos levar o questionamento se a lei é igual para todos mesmo. De alguma maneira, o episódio do Carandiru, a brutalidade, questionou a cultura de que ‘preso bom é preso morto’. Hoje já existe um contraponto a isto”, diz Beatriz.
Em meio ao drama dos familiares – e da impunidade que prevalece – parece pouco. Mas, ao menos, é uma luz no fim do túnel.
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