Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Em 1997, um grupo de pesquisadores brasileiros e franceses rumavam para o interior pernambucano, a fim de estudar as transformações sociais em curso na região das grandes plantações canavieiras de Pernambuco. Nos municípios de Rio Formoso e Tamandaré, litoral sul do estado, a equipe estudou a dinâmica dos acampamentos, os fatores que levavam trabalhadores e desembpregados, do campo e da cidade a tomarem a atitude de ocupar terras improdutivas. Convivendo nos acampamentos, a equipe percebeu que aquele objeto de estudo rendia não só artigos acadêmicos, mas também um imenso registro visual, por conta da riqueza e impacto das imagens registradas. Foi assim que nasceu a exposição “Lonas e Banderias em Terras Pernambucanas”, atualmente em cartaz no Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
A Rets entrevistou Lygia Sigaud, antropóloga e professora do programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, que coordenou a pesquisa e é curadoa da exposição - – que reúne áudio, vídeo, instalações entre outros elementos. “Embora o tema seja árido há muito o que mostrar: os acampamentos são impressionantes de um ponto de vista visual”, afirma ela.
Rets - A senhora pode falar um pouco sobre a pesquisa que deu origem à exposição?
Lygia Sigaud - Em 1997 um grupo de antropólogos do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e do Departamento de Ciências Sociais da Ecole Normale Supérieure (de Paris) iniciou uma pesquisa sobre transformações sociais em curso na região das grandes plantações canavieiras de Pernambuco. A área escolhida foi o litoral sul do estado: os municípios de Rio Formoso e Tamandaré. Os sinais da transformação eram o declínio da agroindústria canavieira, atividade econômica até então hegemônica, e as desapropriações de fazendas onde haviam sido instalados acampamentos. Desde o início dos anos 90 houve 15 acampamentos naqueles dois municípios. Oito deles foram objeto da pesquisa.
A partir do início da década de 80, o Incra desapropriou cerca de 160 imóveis em Pernambuco. Desde meados dos anos 90, Pernambuco tornou-se o estado brasileiro com o maior número de ocupações de terras. Ali organizam ocupações o MST, os sindicatos ligados à Fetape (Federação dos Trabalhadores na Agricultora de Pernambuco), a CPT e outros oito pequenos movimentos .
Rets - Como as pessoas ficam sabendo e chegam até os acampamentos? E o que esperam deles?
Lygia Sigaud - A maioria dos homens e mulheres que encontramos invocou a falta de trabalho para justificar a presença nos acampamentos. Em 1997, os sindicalistas estimavam haver 3000 desempregados em Rio Formoso e Tamandaré. Os patrões estavam demitindo para reduzir os custos ou por não ter como pagar os trabalhadores. Em vários engenhos e usinas, a produção de cana tinha caído significativamente.
Muitos foram para os acampamentos porque viram neles uma saída para a situação difícil em que se encontravam: uma saída não apenas para a falta de trabalho, como também para um casamento desfeito, para a perda da casa na grande enchente que houve em Rio Formoso em 1997. Outros eram movidos pelo desejo de ter uma vida melhor. O acampamento foi uma aposta que fizeram.
Rets - A senhora descreve duas fases: o dia da ocupação e os que chegam depois. A senhora poderia descrever estes diferentes momentos?
Lygia Sigaud - Cabe primeiro esclarecer que as ocupações que estudamos foram feitas em terras que podem vir a ser consideradas como improdutivas pelo Incra. Elas ocorreram após um trabalho de mobilização feito em bairros populares das pequenas cidades da mata pernambucana. Os sindicalistas arregimentaram sindicalizados e pessoas conhecidas do município. Já os militantes do MST reuniram pessoas de municípios diferentes. Antes das ocupações fizeram pequenas reuniões para convidar as pessoas e motivá-las a “pegar terra”. Depois, marcavam um dia para virem apanhá-las. Reunido o grupo, seguiam para o engenho, entravam e montavam o acampamento. O número de participantes do ato da ocupação variou bastante: 9 no engenho Brejo; 36 em Mato Grosso; 80 em Cipó; e mais de 100 em São João.
Muitas pessoas entraram no acampamento após a ocupação. Souberam dele pelo rádio ou pela televisão ou ainda por conhecidos. Conforme nos contaram, foram até o acampamento, perguntaram se havia vaga, pediram permissão para ficar e montaram a barraca. Quase sempre foram os homens que entraram; as famílias vieram depois. Encontramos também outras situações: indívíduos sós, como foi o caso de um trabalhadore que entrou em Mamucaba após se perder do grupo com o qual havia viajado para trabalhar na construção civil; e grupos, como aquele de 37 parentes vindos do Agreste que se se instalou no Brejo.
Rets - Uma das conclusões da pesquisa é de que os acampamentos são um símbolo não apenas de conflito, mas de cooperação entre o Estado e os trabalhadores rurais (ou a sociedade civil organizada). Por quê?
Lygia Sigaud - Vou responder apoiando-me na análise dos materiais de Pernambuco. Comparando a listagem das desapropriações feitas pelo Incra (que é o órgão do Governo Federal responsável pela reforma agrária) com a listagem dos acampamentos montados pelo MST, por Sindicatos e por outros movimentos, observamos uma coincidência notável. O Incra desapropria áreas onde foram montados acampamentos. Por outro lado, se você examina a lista das pessoas beneficiadas pela redistribuição de terras após a desapropriação, você constata que além daqueles que já residiam e trabalhavam na fazenda (por lei os primeiros a serem atendidos) todos os demais encontravam-se no acampamento. Os formulários utilizados pelo Incra para selecionar candidatos à parcela contem a categoria “acampado”.
Os movimentos sociais têm contribuído com o poder público ao indicarem, por meio de acampamentos, áreas a serem desapropriadas e pessoas a serem contempladas com parcelas de terra. Como o Governo Federal não tem uma política própria de intervenção na estrutura fundiária, ele tem dependido da colaboração dos movimentos para fazer suas intervenções.
Rets - Como foi o processo de surgimento dos acampamentos (na década de 90) na zona açucareira de Pernambuco?
Lygia Sigaud - Os acampamentos proliferaram em terras pernambucanas em um momento de queda da produção da cana e do açúcar, reestruturação de algumas empresas, falência de muitas outras e desemprego em massa. Todos esses fatos estiveram relacionados a mudanças na política governamental para a agroindústria canavieira do Nordeste. Depois de anos a assegurar os preços da cana e do açúcar no mercado interno e externo, por meio de subsídios, o governo suspendeu tais garantias. Foi nesta conjuntura que militantes do MST procedentes do sul do país chegaram à zona canavieira. Aliaram-se a sindicalistas e organizaram juntos ocupações em terras que poderiam ser consideradas improdutivas. Chamaram então os desempregados, os biscateiros, os que se sentiam ameaçados no emprego, os pobres das periferias. Entraram nos engenhos e montaram os acampamentos. Enfraquecidos, muitos patrões não tiveram como preservar a inviolabilidade do território de seus engenhos. Houve os que preferiram tê-los desapropriados para se beneficiar das indenizações e houve os que resistiram.
Rets - Como é o dia-a-dia de um acampamento?
Lygia Sigaud - Quando as pessoas entravam nos acampamentos elas não abandonavam as atividades destinadas à sobrevivência da família. Muitos continuavam a trabalhar nos canaviais, a fazer biscates na construção civil, a ser vigias, a atuar como vendedores ambulantes, a catar caranguejos nos mangues etc. Uma vez acampados, podiam ter acesso a outros recursos: aos alimentos da cesta básica enviada pelo Governo Federal; às doações de comerciantes, prefeitos e padres; ao dinheiro arrecadado em pedágios cobrados nas estradas.
Sempre que visitamos acampamentos, observamos que o número de pessoas era inferior ao número de barracas. Muitos homens saíam para trabalhar nos engenhos ou para fazer biscates. Nos acampamentos, permaneciam mulheres, crianças e aposentados. Alguns dos participantes dormiam ali apenas alguns dias por semana. Outros se faziam representar por um parente. O que os tornava membros do acampamento, independentemente da presença efetiva, era o fato de terem montado a barraca. Ela era símbolo e prova do seu compromisso.
Rets - Como surgiu a idéia da exposição?
Lygia Sigaud - Quando começamos a pesquisa, não havia nenhum estudo a respeito dos acampamentos no Brasil. As informações disponíveis eram as veiculadas pela mídia que tendia (e ainda tende) a tratar as ocupações e os que delas participam como se fossem coisa do demônio. À medida que a pesquisa avançava, íamos percebendo o quanto as visões difundidas careciam de suporte em fatos empíricos. Assim, por exemplo, as matérias falam de integrantes do MST para se referir às pessoas que se encontram nos acampamentos. Ora, nem o MST tem uma estrutura de associados, nem a ida para os acampamentos implica ou supõe a filiação das pessoas ao MST. Outro exemplo: as matérias apresentam as ocupações como se fossem um desafio ao Estado brasileiro, como se o Estado não tivesse nada a ver. O que não é dito é que são as ocupações que viabilizam a política fundiária do Estado brasileiro.
Foi em fins de 1998 que comecei a pensar em fazer uma exposição para apresentar a pesquisa. As ocupações constituem um fato importante na história recente deste país e pareceu-me importante oferecer à sociedade brasileira elementos que permitissem compreender o fenômeno com base em fatos empíricos e de forma serena e distanciada.
O Museu Nacional, a instituição onde trabalho, é um dos museus mais visitados do Rio de Janeiro. Ao montar a exposição neste espaço, apostei que poderia atingir um público muito mais amplo do que aquele que habitualmente lê livros e artigos produzidos na academia. Por fim, gostaria de dizer que embora o tema seja árido há muito o que mostrar: os acampamentos são impressionantes de um ponto de vista visual. Localizados nos altos, com suas barracas cobertas de lona preta e a bandeira hasteada em mastros elevados eles chamam a atenção de quem passam pela beira das estradas. Nele havia uma série de elementos que se prestavam a uma apresentação visual.
Rets - A senhora poderia descrever como foi transformar uma pesquisa acadêmica em exposição?
Lygia Sigaud - Quando iniciamos (nós diz respeito à equipe de pesquisadores) a preparação da exposição, a análise do processo das ocupações já havia sido concluído. Já havia uma dissertação de mestrado, artigos publicados e comunicações feitas em congressos. A parte intelectual estava, por assim dizer, resolvida. Como fazer a ponte? O primeiro passo foi definir o que queríamos dizer, ou seja, qual seria o roteiro da exposição. Desde o início ficou claro que seria uma exposição baseada nas histórias dos homens e mulheres que encontramos na pesquisa. Íamos contar a história de pessoas de carne e osso, com um rosto e um nome, e íamos datar e localizar todas as informações. Não íamos falar do acampamento em geral, nem de abstrações, como se fossem coisas congeladas no tempo e no espaço. A história que queríamos contar é uma história em curso e dinâmica e decidimos fazê-lo respeitando uma ordem lógica e cronológica. Assim, na primeira sala apresentamos a ocupação; na segunda, a vida nos acampamentos e na terceira, os militantes que os organizaram. Nossos suportes estão associados à pesquisa: usamos fotos, slides, vídeos, documentos, depoimentos em áudio e instalações (uma Kombi como as utilizadas nas ocupações, uma barraca e os utensílios utilizados nos acampamentos).
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