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Qualificação profissional: uma atividade que dá trabalho

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Em tempos de crise econômica, o que mais se tem visto é o aumento do nível de desemprego - cerca de 8%, segundo o IBGE. Esta taxa se deve em parte à impossibilidade dos empregadores de manterem funcionários e em parte pela falta de qualificação dos trabalhadores, para quem fica mais difícil se re-inserir no mercado de trabalho. Aprender um ofício, portanto, pode ser uma ajuda na hora de procurar – e manter – um emprego, por mais simples que seja.

A capacitação para o trabalho, no entanto, não é só uma forma de qualificar tecnicamente os indivíduos, mas um poderoso instrumento de ajuda na articulação dos trabalhadores, de estímulo ao pensamento crítico sobre o mundo do trabalho e suas formas de organização e de aquisição de cidadania - a partir do momento em que a pessoa percebe que é cidadão, com direitos e deveres, que eleva sua auto-estima por ver que é um agente da própria vida, gera renda e que faz parte de um sujeito coletivo que também depende dele.

Portanto, o poder transformador das iniciativas que capacitam grupos de trabalhadores é o ganho mais perene. Pois emprego se perde e se arranja outro. Cidadania se exerce em cada um destes momentos. Direitos são reivindicados em todas estas situações.

A coordenadora técnica da área de novos projetos do Ceris - Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, Adriane Rodrigues, estuda o assunto. Para ela, existem dois grandes paradigmas - os trabalhadores incluídos e os excluídos - e enxerga-se a questão da capacitação para o trabalho sob dois olhares: o de combate à pobreza e o de alívio da mesma. O primeiro olhar é mais geral, estrutural e pretende "incluir os trabalhadores excluídos e garantir, dentro do sistema de formação, que não venham a ser excluídos", explica Adriane.

O segundo olhar, o do alívio da pobreza, atua mais pontualmente, compreendendo as limitações do Estado e das políticas de geração de emprego e atuando em função de fornecer para o indivíduo formas de trabalho que funcionam como um alívio dentro de uma determinade realidade. "Há quem critique as iniciativas com esse viés", lembra Adriane, "mas na vida das pessoas elas têm um impacto fundamental, pois alivia a preocupação, o desespero das pessoas".

O papel do Estado









Na esfera das políticas públicas de emprego e qualificação profissional existe o Planfor - Plano Nacional de Qualificação de Trabalhador. Ligado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) do Ministério do Trabalho, surgiu em 1996 com o objetivo de qualificar e re-qualificar anualmente 20% da População Economicamente Ativa (PEA), ou seja, 15 milhões de pessoas. Dentro dos mecanismos adotados pelo Planfor, estão previstas parcerias com ONGs, sindicatos e universidades. O Planfor utiliza também a rede de escolas técnicas do governo e o sistema S - Senac, Sebrae, Sesi e Senai.

Segundo a professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, Fátima Valéria dos Santos, "melhorar a empregabilidade do trabalhador (objetivo das políticas públicas) passa por qualificação. Porém, o governo promove as ações nesse sentido como se estivesse fazendo um favor, como se a responsabilidade fosse apenas do trabalhador", afirma. A professora estuda as políticas públicas de geração de emprego e renda e de qualificação para sua tese de doutorado.

Segundo Fátima Valéria, de qualquer maneira, o Planfor é o programa de políticas públicas onde a participação da sociedade civil é mais efetiva, em função da possibilidade de parcerias com as ONGs e sindicatos de trabalhadores, que acabam sendo os executores das capacitações. Só a Central Única dos Trabalhadores (CUT) recebeu 30 dos mais de 80 milhões de reais repassados pelo FAT no ano de 2000 para a qualificação profissional.

Os cursos são dados através da Central de Trabalho e Renda, inaugurada em agosto de 1999. Ao todo já foram ministrados 51 cursos para o total de 15.360 alunos. Os objetos das capacitações são, entre outros: "Administração de estoque e reposição", "Formação de vendedores", "Atendimento e recepção em meios de hospedagem", "Auxiliar administrativo", "Cozinha e culinária", "Eletricidade básica", "Garçom", "Informática avançada", "Instalação de som em veículos", "Manicure e pedicure", "Marcenaria", "Panificação e confeitaria".

Qualidade também conta









As críticas existentes aos programas de capacitação para o trabalho dizem respeito à qualidade dos cursos, não só da CUT, mas de todas as instituições, de qualquer natureza. Não basta ensinar a técnica. É importante também conscientizar o trabalhador para que ele entenda as forças que regem o mundo do trabalho, saiba quais são seus direitos, as oportunidades que pode aproveitar e o que pode reivindicar. É característica das iniciativas de ONGs voltadas para esta área passar para os alunos a noção da importância de se articularem não só no mundo do trabalho, mas frente à sociedade, se posicionando quanto às questões de suas comunidades, famílias etc.

Xico Lara, do Conselho de Escolas de Trabalhadores, acredita que a formação fornecida deve ser ampla. "É importante promover a formação do pensamento, a partir da própria técnica, da discussão dela. É o que chamamos de completude expansiva. É mostrar toda uma perspectiva", explica. Xico vai além e é enfático ao dizer que "a pessoa tem que se tornar cidadã não do ponto de vista débil do aumento da auto-estima, mas do enfoque de participar, discutir os assuntos da cidade com conhecimento de causa, questionar, discutir politicamente".

O Conselho congrega cerca de dez escolas, espalhadas por Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre. Os cursos oferecidos por elas duram de um ano a 18 meses. E para onde essa gente formada vai? Como se insere no mercado de trabalho? Segundo Xico Lara, de 30% a 40% encontram vagas; outros 30% a 40% se aproveitam dos conhecimentos aprendidos em outras ocupações; 20% fazem seus negócios próprios. O tipo de capacitação que as instituições ligadas ao Conselho promovem solicita as pessoas, incita-as a participarem, a discutirem e perguntarem.

É isso que acontece, por exemplo, com os 240 alunos anuais do CTC - Centro de Trabalho e Cultura, de Recife. "A idéia é dar qualificação e capacitação técnica para que o sujeito seja respeitado, se organize e adquira respeito político", explica Clara Lucia Santana de Siqueira, membro da coordenação do Centro. Essa orientação é a mesma desde que o CTC foi criado, em 1966, época marcada pela presença no campo do Movimento Eclesial de Base (MEB). A idéia ao se criar o CTC era montar um braço urbano do MEB.

Segundo Clara, os cursos, com duração média de 11 meses, são divididos entre os voltados para adultos e os para adolescentes. As aulas vão desde eletricidade até artes gráficas, passando por mecânica, escritório informatizado, pneumática e refrigeração. A pedagogia utilizada procura envolver ao máximo os alunos. "Sempre tem três ou quatro pessoas no quadro negro partilhando o que sabem. Até a cantina é cuidada por eles próprios, não fica ninguém vendendo. Existe uma caixa lá dentro, os alunos pegam a mercadoria, deixam o pagamento e cuidam do troco. Tudo por conta deles mesmos. Eles ficam espantados e dizem que só se encontra coisa assim na Suíça. E se houver algum problema, é realizada uma Assembléia", explica Clara.

No CTC, a preocupação é acima de tudo dar uma formação política aos alunos e discutir com eles a transformação da sociedade. Pelo menos um dia por semana os professores abordam com os alunos temas que vão desde o surgimento do Universo até o ensino de História sob o ponto de vista do Trabalho (explicando que a organização da sociedade já foi diferente - nem sempre o capitalismo vigorou -, que pode ser diferente e que existem outras linhas de pensamento, como o socialismo e o anarquismo). O CTC não abre mão de fazer essa contextualização e mostrar tais possibilidades. "Nós não fazemos cursinhos profissionalizantes para as pessoas se darem bem. Queremos fazer a reflexão na prática, ensinar as pessoas a não aceitarem nada pronto, colocar perspectivas e debatermos a sociedade que gostaríamos", conclui Clara, ela mesma uma professora de matemática e eletricidade.


 


Maria Eduarda Mattar

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