Autor original: Marcelo Medeiros
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O artigo 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que “as entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras: oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos; oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal”. Essas, porém, são apenas algumas das exigências não cumpridas pela Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) de São Paulo, entidade responsável pela internação de crianças e adolescentes infratores da lei no estado de São Paulo.
São freqüentes as denúncias de espancamento de crianças e casos de rebelião que, junto com outros fatores, tornam a Febem uma verdadeira “escola de criminosos”. A casa de internação, entretanto, nem deveria mais existir tal como ela é, pois o ECA afirma que o atendimento deve ser feito em grupos reduzidos.
Para denunciar e lutar contra o desrespeito à lei, foi criado o Grupo de Trabalho pelo Fechamento da Febem/SP. A orientadora social Cida Gomes, 49 anos, representante do grupo, fala à Rets sobre as alternativas à Febem e as condições nas quais crianças e adolescentes sobrevivem.
Rets - Como surgiu o Grupo de Trabalho pelo Fechamento da Febem? Ele está restrito a São Paulo?
Cida Gomes - Muito antes de o grupo ser formado, todos os seus membros já atuavam em entidades em defesa dos direitos da criança e do adolescente. Com a promulgação, em 13 de julho de 1990, da Lei Federal 8.069, que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente; e em seguida, em 1992, com a criação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e a eleição dos conselheiros tutelares da cidade de São Paulo - ora responsáveis pelo cumprimento da garantia de proteção integral da criança e do adolescente - o Conselho Municipal da Cidade de São Paulo, cumprindo o Estatuto, negou à Febem o registro dos seus programas. A instituição era incompatível com as diretrizes constitucionais no que se refere ao ECA, ficando assim impedida e sem fundamento legal para a continuidade.
Desde 1992, com a eleição dos membros dos Conselhos Tutelares da Cidade de São Paulo - que compunham também a Sub-Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-SP – por várias reuniões discutimos com os representantes da Febem e elaboramos um documento que foi entregue ao Governo do Estado de São Paulo, reivindicando o cumprimento do ECA na sua íntegra. Diante da omissão do Governo, em 1999, decidimos então formar um grupo de trabalho para o fechamento da Febem. Desde então, o grupo atua em todo o Estado de São Paulo, recebendo informações sobre a atuação de cada uma das unidades da Febem.
Rets - Como a Febem se tornou o que vocês chamam de uma "escola de criminosos"? O que deixou de ser feito para esse quadro se configurar?
Cida Gomes - Nos anos 90, mudou radicalmente o perfil dos internos, com um aumento considerável de dependentes químicos. A falta de um atendimento adequado permitiu que se reproduzisse, nestes internatos, tanto o tráfico interno quanto a formação de grupos oriundos das mesmas quadrilhas. A insistência em manter grandes complexos “prisionais” favoreceu a institucionalização do tráfico nestes internatos.
Rets - Como se deu essa institucionalização? Ela gera regras de comportamento e rivalidades como nos presídios?
Cida Gomes - Existe um grande tráfico dentro da Febem. As drogas são trazidas de fora inclusive por funcionários. Elas proporcionaram a mudança do perfil dos internos, caindo o estereótipo de que apenas negros e pobres estão internados (ver pesquisa sobre o perfil dos internos, ao lado). As rivalidades existem e levam a assassinatos em rebeliões, como todos já estão cansados de ver.
Eles são organizados em grupos com regras de conduta próprias, mas há também as regras dos funcionários, que agridem as crianças e adolescentes. Já fizemos denúncias sobre essas “normas de correção”, que acontecem após a meia-noite. Os funcionários batem na barriga e amarram os internos com toalha, por exemplo, para não deixar marcas.
Rets - Com as meninas acontece o mesmo?
Cida Gomes - O número de internas é menor, mas também existe violência, apesar de diferente. Elas chegam à Febem com medo, são mais frágeis. Com exceção de uma ou duas a cada 20, que vêm de quadrilhas, as meninas entram arrependidas. Depois de um tempo, porém, saem prontas para o crime. Temos que parar de fabricar bandidos e a responsabilidade pela recuperação é de todos.
Rets - Quais os maiores problemas das casas de recuperação? Que direitos são desrespeitados?
Cida Gomes - O principal problema é o atendimento em grandes grupos, o que inviabiliza o atendimento individual. A partir desta situação, podemos afirmar que todos os demais direitos previstos no artigo 94 do ECA são desrespeitados. Entre eles a preservação dos vínculos familiares, instalações de higiene e segurança adequados, o direito a ter roupa, cuidados médicos, psicológicos, odontológicos etc.
Rets - O grupo defende o fechamento da Febem. No entanto, não seria melhor reformar a instituição ao invés de fechá-la?
Cida Gomes - O fechamento é da Fundação Estadual. Os recursos, cerca de R$ 200 milhões/ano deverão ser dirigidos ao Fundo Estadual da Criança, o qual é administrado pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca). O atendimento deverá ser municipalizado mediante uma proposta apresentada por cada um dos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente. Em vista do disposto na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, não é possível manter uma fundação estadual que tenha o poder de deliberar e intervir no atendimento das crianças e adolescentes, pois a política pública deverá ser deliberada no âmbito municipal.
Rets - A proposta que vocês defendem é a mudança da administração da esfera estadual para municipal. Essa medida resolveria o problema do desrespeito aos direitos humanos? Quais as vantagens da mudança da responsabilidade administrativa?
Cida Gomes - Não se trata de mudar a administração “de estadual para municipal”. A proposta é descentralizar o atendimento, permitindo que cada município apresente uma proposta compatível com a sua realidade sócio-cultural. A descentralização também impede que “os vícios” se propaguem no sistema. Atualmente, é muito comum que as pessoas acusadas de violência contra as crianças sejam transferidas para outras unidades dentro do sistema.
Rets - Que outras medidas poderiam ser tomadas para melhorar a condição das crianças e adolescentes em recuperação?
Cida Gomes - Garantir uma real integração das unidades de atendimento com a comunidade local. Veja que mesmo a medida “internação” permite atividades externas, mas, isto é praticamente impossível quando temos metade dos adolescestes internados na capital oriundos de cidades do interior.
Rets - E como fazer essa integração?
Cida Gomes - Não basta distribuir o atendimento somente pelos municípios, mas também de acordo com a localidade. Temos cerca de 6 mil internos na Febem e 600 municípios em São Paulo. Não é suficiente levá-los para suas cidades. A capital é muito grande e também deve ser repartida. A sociedade tem que perceber que precisa agir para recuperar essas crianças e adolescentes. As ONGs, igrejas, Conselhos Tutelares devem agir em conjunto. Ao invés de trabalhar 6 mil de uma vez, seriam trabalhados 5 ou 6 por unidade por meio de da formação de uma corrente de solidariedade. Haveria acompanhamento escolar, no trabalho - se for o caso - e assistência familiar. Isso não é possível com as famílias longe e 6 mil internos em poucas unidades na mesma cidade.
Rets - Essa é a proposta da lei, mas se os juízes a descumprem ao continuar enviando as crianças para a Febem, então o que esperar deles?
Cida Gomes - O Estatuto não fala de prisão, mas de medidas sócio-educativas. Criminosos de colarinho branco se aproveitam de habeas corpus e outros mecanismos jurídicos para não serem presos. Então por que crianças e adolescentes também não têm esse direito?
Rets - No caso do fechamento, o que fazer com crianças e adolescentes infratores? As medidas de recuperação deixariam de existir?
Cida Gomes - Conforme respondido anteriormente, a proposta é municipalizar as unidades de internação, exigindo-se que atendam grupos pequenos e que realmente desenvolvam propostas pedagógicas. Este tipo de sistema tem um índice de recuperação muito maior do que no sistema atual.
Rets - A Febem não possui nenhum lado bom? Nada de sua história pode ser aproveitado?
Cida Gomes - A Febem/SP não tem condições de ser administrada nos termos do ECA. Além disso, as unidades de internação funcionam como um “Governo Paralelo”. Quando funcionários que espancam as crianças são pegos em flagrante, o sindicato sai em defesa. Eles têm um grande poder lá dentro.
Programas como o “Liberdade Assistida” são uma autêntica farsa, pois os agentes de lá não cumprem o seu papel de assistir ao egresso da Febem, propiciando que o juiz determine a reinternação.
A Febem não faz bem a ninguém. A Febem não é casa pra ninguém. Esta é uma frase dita com frequência pelos adolescente internos em todas as suas unidades.
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