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Questão de legalidade

Autor original: Marcelo Medeiros

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No dia 7 de outubro, o presidente Fernando Henrique Cardoso promulgou o Decreto Presidencial 4.412, que regulamenta a presença e atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em terras indígenas. Com a medida, ambas instituições têm livre trânsito nessas áreas e direito de instalar bases nelas sem pedir autorização aos donos do terreno. A decisão pegou de surpresa diversas entidades que trabalham com a defesa dos direitos dos índios.


Lideranças indígenas e organizações sociais já se manifestaram por meio de comunicados contra o decreto, pois em nenhum momento foram consultadas sobre as disposições do documento. Além disso, alegam inconstitucionalidade na medida, lembrando que a Constituição Federal, de 1988, proíbe a ocupação de territórios indígenas a não ser em casos de relevante interesse da União. Esses casos estariam definidos em lei complementar, até hoje não aprovada, apesar do Projeto de Lei Complementar 260/90, que traz essas definições, estar tramitando no Congresso desde agosto de 1995.


Em entrevista à Rets o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Paulo Machado Guimarães, comenta as consequências do decreto para os índios brasileiros e a maneira como foi tomada a medida. “Enquanto a inconstitucionalidade não for resolvida, nada será válido”, diz.


 


Rets - Que conseqüências o Decreto Federal 4.412 pode trazer para os índios?


Paulo Machado Guimarães - O decreto permite a ocupação irregular de territórios indígenas por organismos da Polícia Federal e das Forças Armadas. Isso obviamente vai gerar animosidade por parte das lideranças indígenas. Imagine a instalação de um quartel perto de uma aldeia? Isso já acontece em Uiramutã, Roraima, e os índios estão contra. Nas terras Yanomamis já estão instalando torres de transmissão do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), o que gerou descontentamento. Caciques yanomamis inclusive já fizeram protestos contra essa medida, pois, além de interferir na paisagem, a presença das torres os faz perder a posse do território.


Rets - Por que o decreto seria inconstitucional?


Paulo Machado Guimarães - O parágrafo sexto do artigo 231 da Constituição é claro: são nulos os objetos e atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras dos índios, salvo atos de relevância de interesse da União, previstos em Lei Complementar. O problema é que essa lei não existe, logo não há definição do que é ato de relevante interesse da União. Entre as possibilidades de serem definidos como tal estão a instalação de torres de TV, quartéis e postos policiais.


Há um Projeto de Lei tramitando no Congresso – já passou pelo Senado e agora está na Câmara - que traz definições. Porém, além de definir, a lei precisa realmente indicar o que é relevante. Pessoalmente, acho que um quartel e um posto policial sejam relevantes, mas isso não interessa, pois precisamos de normas que digam se são ou não.


Rets - Como combinar a necessidade de vigilância das fronteiras com o respeito às terras e tradições indígenas?


Paulo Machado Guimarães - As Forças Armadas já têm feito esforços para isso hoje em dia. O problema do respeito não acontece apenas com elas, mas com qualquer comunidade que estabeleça contato com os índios. Com os garimpeiros, por exemplo, a situação é muito pior. Há casos de violência e os responsáveis somem e ninguém apura o ocorrido. Nos casos denunciados em que membros do exército estiveram envolvidos, tudo foi apurado. O Ministério Público tomou providências e as investigações foram feitas.


Para nossa sociedade, isso é uma solução suficiente, mas para eles o problema é outro, vai de encontro com as tradições, traumas aparecem. Em casos de índias grávidas por causa de envolvimento com soldados, por exemplo, não basta o responsável ser condenado a pagar pensão alimentícia. Há dificuldades geradas pela relação interétnica. A criança pode ser discriminada em sua tribo por ser fruto de uma relação diferente da tradicional.


É uma situação complicada, que exige regras claras. Problemas podem acontecer, mas devem existir mecanismos para solucioná-los. Porém, não há sequer preocupação quanto a isso. A Constituição estabelece respeito às tradições e ela tem força normativa em relação a todas as leis.


Rets - Que regras poderiam ser adotadas?


Paulo Machado Guimarães - Não sabemos definir normas específicas. Não há como discutir códigos de conduta, por exemplo, se antes não for discutida a lei complementar. E ela deve resultar de uma discussão das preocupações e demandas dos envolvidos – mas isto necessita de um longo processo.


No caso da regulamentação da lei, uma medida fundamental seria a de que qualquer soldado, agente da polícia federal ou funcionário público designado para atuar em áreas indígenas deve reconhecer que está em território diferente do seu, que há problemas a serem enfrentados e gerados pela sua presença. Uma terra indígena não é esquina de Copacabana, são culturas diferentes e eles devem estar preparados para isso.


Pode ser alegado que, dada a má situação financeira das Forças Armadas, seria um ônus fazer esse treinamento. Contudo, vejo isso como um benefício para a sociedade. Seria muito melhor ter um servidor bem preparado para perceber que os índios, afinal, não são obstáculos para nada.


Ainda assim, é mais fácil desrespeitar de forma autoritária os índios do que pedir assessoria antropológica e discutir com lideranças para resolver a questão – uma forma muito mais segura. Acredito que uma administração democrática deve respeitar a Constituição.


Rets - Por que a promulgação do Decreto agora?


Paulo Machado Guimarães - É preciso investigar as razões, é uma pergunta que gostaria de ver respondida. Os povos indígenas merecem respeito e resposta para o fato de, após oito anos com um projeto tramitando no Congresso, o governo decidir baixar um decreto de uma hora para outra. É uma pergunta sem resposta.


Rets - Qual a posição da Funai? A consulta a ela, como está prevista no Decreto, poderia minimizar os impactos negativos da presença militar em terras indígenas?


Paulo Machado Guimarães - A Funai até agora não se pronunciou oficialmente, mas imagino que algumas pessoas lá dentro devam estar constrangidas. Quanto à consulta, é um mérito ela estar prevista. Ela pode até ser positiva, mas pelo lado constitucional não é nada. Códigos de conduta, consultas, tudo isso são medidas posteriores. Enquanto a inconstitucionalidade não for resolvida, nada será válido.


Rets - A regulamentação da presença militar é uma questão antiga debatida por organizações indígenas. Qual a proposta do Cimi?


Paulo Machado Guimarães - Na verdade a proposta de regulamentação veio da Câmara, logo após a constituinte. O governo poderia ter sentado com as Forças Armadas, Congresso e índios para discutir uma medida, mas isso nunca foi feito.


O Cimi não possui uma proposta definitiva. Por enquanto nos debruçamos sobre o projeto em tramitação. Há pontos que apoiamos e outros dos quais discordamos. Somos contra a construção de estradas e ferrovias dentro de áreas indígenas, por exemplo. Mas não temos nada a opor à construção de bases militares, desde que provada sua necessidade e sejam feitos estudos de impacto. A proposta prevê estudos caso a caso e a aprovação do Congresso para cada um deles separadamente.


Rets - Isso não geraria demoras?


Paulo Machado Guimarães - As Forças Armadas não fazem nada de uma hora para outra, tudo é planejado com antecedência, assim como as ações da Polícia Federal. Em caso de grande necessidade, é possível pedir regime de urgência ao Congresso.

Rets - O Estatuto do Índio em vigor seria uma solução para esse problema?


Paulo Machado Guimarães - Assim como está, não. Sempre prevalece a Constituição, apesar de o estatuto falar na possibilidade de um decreto presidencial caso não haja alternativas. A Constituição anula a validade dessa afirmação. O Estatuto do Índio anterior, da constituição de 1967, era ainda mais rígido quanto à possibilidade de intervenção estatal em terras indígenas. A Carta de 88 é melhor para o Estado, mas, novamente, falta a lei complementar nela prevista.


 


Marcelo Medeiros

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