Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Artigos de opinião
Raimunda Mascena*
Um dos principais desafios lançados nas últimas décadas para a gestão pública, particularmente para o Executivo, é o de governar com a perspectiva de gênero. Este desafio implica em garantir a participação de mulheres e homens no processo de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, assegurando que o foco das ações seja a igualdade de acesso e de oportunidades. Ou seja, significa governar e ter compromisso com o desenvolvimento e com a democracia.
Essa perspectiva não trata apenas de elaborar políticas específicas para mulheres, mas de transversalizar as nossas necessidades estratégicas às diferentes políticas de governo. Significa reconhecer e respeitar as mulheres como sujeitas políticas e autônomas em todos os processos de desenvolvimento, e não como público central das políticas de combate à pobreza, cujo foco é apenas a dimensão reprodutiva. Um exemplo dessa política compensatória é o bolsa-alimentação, lançado recentemente pelo Governo Fernando Henrique. Trata-se de uma linha de programa que reproduz idéias preconceituosas acerca das mulheres pobres e nega a importância social e de cidadania da reprodução.
No campo, pensar a equidade de gênero no desenvolvimento sustentável implica em reconhecer a participação das mulheres na luta pela reforma agrária e no fortalecimento da agricultura familiar. As mulheres representam quase a metade da população rural, sendo que a maioria está em plena idade produtiva: dos 15 aos 55 anos. Muitas começam a trabalhar antes mesmo de completar 10 anos de idade, enfrentando uma jornada de trabalho que varia de 10 a 18 horas. As agricultoras são responsáveis por grande parte da produção de alimentos básicos no Brasil. E as sem-terra, ou com terra insuficiente para produzir, são obrigadas a trabalhar como assalariadas.
A condição de vida das mulheres no campo denuncia a baixa repercussão dos programas e políticas de reforma agrária, e do fomento à agricultura familiar, na superação da desigualdade de gênero. De todo o público beneficiado pela reforma agrária nos últimos 33 anos – 1964 a 1996 -, apenas 12% correspondem a títulos de terra concedidos às mulheres . No Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar - PRONAF, 88% são homens e apenas 7% são mulheres, segundo dados do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase (1999). Isso demonstra que embora tenhamos conquistado avanços legais quanto à igualdade de direito, na prática ainda enfrentamos muitas dificuldades para assegurá-los.
Em agosto de 2000, a Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag, em parceria com diversas organizações, realizou a Marcha das Margaridas 2000, em adesão à Marcha Mundial de Mulheres. O documento de reivindicação da Marcha das Margaridas registrou denúncias e apresentou propostas para combater a desigualdade e a violência de gênero nos processos sustentáveis de desenvolvimento no meio rural. Algumas propostas, como a redefinição dos critérios para cadastrar as mulheres nas áreas de assentamento (programa Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária -SIPRA), a redução da taxa de juros do Pronaf de 5,6% para 4% e o acesso das mulheres ao microcrédito (grupo B do Pronaf ) estão sendo estudadas pelo Executivo.
Em maio de 2001, o Ministério do Desenvolvimento Agrário /INCRA publicou a portaria nº 121, determinando que, no exercício daquele ano, no mínimo, 30% dos recursos relativos às linhas de crédito do PRONAF e ao Fundo da Terra e da Reforma Agrária – Banco da Terra fossem destinados, preferencialmente, às mulheres, com a finalidade de incrementar atividades agrícolas e não-agrícolas, a capacitação, a assistência técnica e a extensão rural.
Embora não tenhamos instrumentos para monitorar e avaliar a aplicação da cota nesses programas, as críticas quanto à sua inaplicabilidade, apresentadas por trabalhadoras rurais de todos os estados brasileiros, demonstram a ineficácia dessa política, da forma em que a mesma foi adotada. Ora, a agricultura familiar esconde uma profunda desigualdade de relação entre mulheres e homens e uma estrutura patriarcal bastante opressiva. As políticas governamentais são pensadas para os homens. Todas as atividades comandadas pelas mulheres não são reconhecidas como produtivas pelos bancos e poderes públicos. A cota, isoladamente, jamais daria conta de diminuir essa desigualdade.
É possível identificar outras contradições da política do governo FHC, quando analisamos o orçamento da reforma agrária e da agricultura familiar para os anos 2000, 2001 e 2002. A tabela nº 1 demonstra que houve reduções e oscilações de recursos em todos os programas e atividades previstas, principalmente em áreas estratégicas, como infra-estrutura, assistência técnica e educação.
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Estes números, associados aos do gráfico 1, mostram que há uma tendência de recuo do governo em relação à reforma agrária, pela via da desapropriação; e a investida para realizar a reforma agrária de mercado, via o Banco da Terra. Outros dados expostos mais adiante demonstram que há uma redução de recursos para a construção de casas e estradas, instalação de energia elétrica, abastecimento de água, educação, saúde e conservação do meio ambiente, o que agrava as precárias condições de vida nos assentamentos, especialmente das mulheres.
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Para tentar ludibriar a opinião pública nacional e internacional, que continua cobrando compromissos do Governo Brasileiro com a realização da Reforma Agrária, o governo investe pesadamente na mídia e em propaganda. Os meios de comunicação transmitem uma imagem irreal que gera uma expectativa nos trabalhadores e trabalhadoras sem-terra.
Na verdade, o governo segura a liberação de recursos para depois alegar a falta de tempo hábil para a efetivação dos gastos; e com isso faz caixa, como resultado da não execução, ou remete o que restou para a rubrica de resto a pagar. Assim, o governo economiza e atende aos compromissos com o FMI, como o de obter superávit primário. Essa é uma das consequências do ajuste dos gastos públicos. Quem perde e quem paga a conta é a população, que não tem suas necessidades atendidas.
Como estratégia para combater todas as formas de desigualdade e subordinação de gênero no campo, a Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG, juntamente com diversas entidades parceiras, realizará a “Marcha das Margaridas: 2003 razões para marchar por terra, água, salário, saúde e combate à violência”. No dia 12 de agosto de 2003, cerca de 50 mil mulheres trabalhadoras rurais ocuparão as ruas da capital federal, erguendo bandeiras como a reforma agrária; a preservação do meio ambiente; o salário mínimo digno; a saúde pública, com atenção integral à mulher, e o combate à violência sexista.
Queremos construir uma consciência crítica junto às mulheres de base e denunciar para a sociedade brasileira que a situação diferenciada e desigual das trabalhadoras rurais é uma limitação para combater a pobreza e alcançar a qualidade de vida da população rural. Queremos negociar com o Governo Brasileiro propostas que atendam às necessidades das trabalhadoras rurais e favoreçam a igualdade de direitos e de oportunidades no campo brasileiro.
*Raimunda Mascena é Coordenadora da Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
Este artigo foi publicado originalmente na edição de outubro do boletim Orçamento & Política Agrária e Agrícola do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).
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