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Dia da Consciência Negra

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Há 307 anos, o líder Zumbi do quilombo dos Palmares morria dias depois de uma investida de nove mil homens comandados por Domingos Jorge Velho ter atacado o lugar. Eles foram enviados com o único intuito de destruir o reduto não só de negros, mas também de índios e brancos pobres que, desde o seu surgimento em 1596, ousava ser autônomo e existir quase como um Estado livre e autônomo em pleno Brasil colonial das capitanias hereditárias. Zumbi morreu mais especificamente no dia 20 de novembro de 1695, traído por um de seus comandados após ter conseguido se refugiar e escapar às tropas de Domingos Jorge Velho.

Ele entrava na História para, aproximadamente três séculos depois, o dia de sua morte ser resgatado pelo movimento negro e considerado - pelo exemplo de orgulho e força negra que Zumbi protagonizou - a data mais adequada para celebrar a consciência de pertencer a esta raça.

O negro no Brasil não é exceção. Embora o censo de 2000 mostre números indicando que a população negra ou parda é de pouco mais de 76 milhões dentre os quase 179 milhões do total da população, sabemos pelo que vemos nas ruas e no dia-a-dia que existem muito mais do que isso. Mesmo tendo nascido da cultura negra, muitos dos elementos considerados típicos do Brasil - afinal, quando se lembra do país, fala-se sempre em samba, capoeira e feijoada - o país não dá o determinado crédito à tradição que os criou. Sabe-se que são manifestações típicas da cultura brasileira, mas poucos lembram que surgiram dos negros. Por essa falta de valorização sistemática e histórica, grande parte da população afro-brasileira não enxerga com freqüência sua riqueza criativa, estética e intelectual. Daí a necessidade ainda mais clara de se celebrar a consciência negra.

Mas que consciência é essa? Como a população afro-descendente se vê, se pensa e constrói a consciência sobre si própria? Quais são as ferramentas e estratégias usadas pelas organizações que trabalham pela afirmação do orgulho negro?

Em termos gerais, as pessoas que militam nesta área concordam que as medidas de ação afirmativa são o principal instrumento de luta para a população negra se afirmar e garantir seus direitos. Isso inclui práticas como a reserva de cotas na educação superior, nas manifestações da indústria cultural, no mercado de trabalho etc. A insistência nessa tecla das políticas de cotas é, segundo a maioria dos integrantes de instituição do movimento negro, um dos únicos modos vistos como eficientes. Como define Ivanir dos Santos, do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), "elas são um mal necessário, pois, ao mesmo tempo que expõem a vergonha social do país, obrigam a sociedade a separar um espaço específico para o negro".

Porém, não se pode e não se deve resumir a afirmação da população afro-brasileira a cotas. Ela passa por muitos outros fatores e por processos situados muito mais nas pessoas e na conscientização individual do que em órgãos públicos ou instituições de ensino. Ivan Costa Lima, do catarinense Núcleo de Estudos Negros (NEN), resume o que envolve o processo de formação da consciência negra: "Só a política de cotas não dá conta. É necessário atacar outras frentes, desconstruir esse processo histórico, mostrar que a democracia racial não existe, recuperar a trajetória do negro e contar a História do modo certo." Para Ivan, o principal ponto para que isto aconteça é o diálogo entre as organizações do movimento negro para justamente construírem a imagem e a consciência negra a partir do posicionamento dos próprios interessados. Além disso, Ivan acredita que o que for formulado por este diálogo deve ser transformado em políticas públicas, principalmente na área de Educação. "É importante que os conteúdos afros possam ser estabelecidos no currículo escolar e que os professores sejam formados para replicarem estes conceitos revisados".

Também é dessa opinião Jacques D'Adesky, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade Cândido Mendes. Para ele, a reformulação do currículo escolar deveria agregar "a História da África, revisar as imagens usadas para retratar os negros, que sempre aparecem em segundo plano, numa posição subalterna". É bom lembrar que deste modo, o processo de construção da consciência atingiria não só a população negra, mas também todos aqueles, de qualquer raça ou etnia, que freqüentam ou estão envolvidos na educação escolar.

Educar para uma consciência negra, no entanto, não quer dizer só mudar os livros escolares. Significa formar o pensamento da população brasileira cuja imensa maioria, como lembra Jacques, usa a mídia televisiva como principal fonte de informação. Levando isto em conta, a maior presença do negro na TV é também uma forma de formar consciências. De acordo com D'Adesky, que também faz parte do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan), "de três anos para cá houve uma mudança, com maior presença de atores negros na propaganda. É um processo lento, ainda precisa haver mais participação dos negros e negras em novelas, séries e outras produções televisivas". O Cidan foi fundado em 1984, pela atriz Zezé Motta, "para esquentar a relação do artista negro com a produção cultural", segundo a própria fundadora. Ela conta que a idéia nasceu quando ela cobrava dos produtores de TV, teatro e cinema a quase invisibilidade das pessoas negras nas produções realizadas na época."As desculpas eram muitas, desde que não conheciam artistas negros até a alegação de que eles eram tecnicamente crus", lembra Zezé.

A atriz se orgulha do crescimento da organização, lembrando que o site do Cidan mantém um cadastro de 370 artistas negros. Para se comunicar com eles, os interessados devem pedir as formas de contato à instituição. "Isso é importante, pois nos permite saber quem somos, onde estamos e quantos somos e o fato de o contato com os e as artistas ter que passar pelo Cidan nos dá a clara impressão de que não se faz mais novela, filme ou teatro com artistas negros e negras no Brasil sem nos consultar", orgulha-se Zezé Motta. Segundo ela, até janeiro de 2003, a expectativa é de haver 500 nomes no banco de dados do Cidan. "Ficamos com o coração em festa, pois sentimos que fizemos a coisa certa. A presença do negro na mídia é fundamental, inclusive para aumentar a auto-estima dessa população. Afinal, todo mundo quer se ver representado", conclui.

Outra área - aliás extremamente ligada à Educação - fundamental para a persistência do orgulho de ser negro é a Cultura. Tradicionalmente, as manifestações culturais negras têm sido o que mantém acesa a chama da identidade da raça negra. São elas talvez as principais responsáveis por manter essa essência passando de gerações em gerações, não permitindo que caísse no esquecimento ou que fosse totalmente atropelada pela cultura pasteurizada ocidental. Um exemplo claro é o do Grupo Cultural Jongo da Serrinha (GCJS). A organização foi fundada há dois anos na Serrinha, em Madureira, porém nasceu de um movimento que já tinha 35 anos no local: o ensino do jongo, dança criada e praticada pelos escravos, para crianças e adolescentes.

Com uma leitura um pouco diferenciada do jongo - ele foi adaptado para o palco - as atividades de ensino da dança na Serrinha tiveram início com Mestre Darcy do Jongo, que mais de três décadas atrás percebeu que a comunidade estava esquecendo suas raízes - cujas tradições eram passadas oralmente, dentro das famílias - e tomava conta a cultura homogênea, principalmente aquela importada dos EUA. O mestre resolveu, então, mostrar aos jovens da região a beleza e o valor que o jongo carrega e não deixar ele morrer. Parece que conseguiu: quando a organização foi fundada, em 2000, havia 60 crianças atendidas. Hoje, o número cresceu mais de mil por cento: são 650 que aprendem a dançar e preservar o jongo. "A importância desse trabalho na comunidade da Serrinha é ímpar. Ao serem reconhecidos no palco, as crianças e jovens - a maioria dos participantes são negros, num processo que acontece naturalmente - dão valor às tradições. Além disso, o fato de saberem que só eles têm e preservam esta tradição na cidade é um fator de orgulho. A Serrinha é apaixonada pelo jongo", conta Marcos André, coordenador do GCJS.

Em Santo André, interior do estado de São Paulo, o grupo Quilombhoje encontrou um outro nicho de preservar a cultura afro-brasileira: cultiva e estimula a literatura produzida pelos e para as pessoas negras. Anualmente, publicam e divulgam os Cadernos Negros que, como definem, "têm proporcionado a oportunidade para o exercício de criação literária diferenciada, possibilitado que os descendentes de africanos passem de objeto a sujeito da escrita, enriquecendo ainda a discussão a respeito da questão racial".

Segundo a presidente e o vice-presidente, Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, respectivamente, por um lado, a população negra adquire sua consciência na vivência cotidiana dos preconceitos e na reação (ou falta de) a eles. Ao mesmo tempo a prática de certos hábitos culturais (como a vivência em grupos familiares, de amigos) ou de lazer (escolas de samba, grupos de rap, bailes etc.) faz com que surja o sentimento de se pertencer a um grupo. "A construção da cultura, baseada em traços da tradição afro é forte, e proporciona uma certa sensação de unidade do grupo. A revisão da história do Brasil, o resgate de figuras como Zumbi, por exemplo, ou de escritores como Luís Gama, Carolina de Jesus, Solano Trindade, Lima Barreto, para ficar no campo literário, é extremamente benéfico para a auto-estima. Há um ganho que não pode ser quantificado que é a sensação de que, como negros, não estamos sozinhos."

Para eles, a consciência é um processo, acontece fazendo. Como ganhos, eles acreditam que houve, durante muito tempo, "um silêncio em relação à questão racial e cada negro que tocasse no assunto era logo chamado de complexado. Mas o fato de vermos tantas ações positivas serem desenvolvidas em tantos pontos diferentes do país faz com que não nos sintamos como uma ilha, diferentes e sós em nossa diferença. E cada negro pode olhar e tentar encontrar seu espelho, aquele que vive igual a ele, aquele que luta igual a ele".

A afirmação negra e o exercício da cidadania, no entanto, também estão muito ligados à garantia e cobrança de direitos. Para isso, existem organizações como o Ceap e a Criola, que lutam pela formulação de políticas públicas e para dar visibilidade às demandas dos indíviduos da raça negra. Ivanir dos Santos, do Ceap, acredita que é preciso transformar na cabeça das pessoas o fato de ser negro em uma coisa naturalmente boa, que não é motivo de vergonha. "Trata-se de dar direitos, mostrar que a cor dá benefícios, sempre deu, que é motivo de orgulho", defende ele. Segundo Ivanir é clara a maior conscientização dos negros e negras com relação aos seus direitos e cobrança de medidas quando são vítimas de racismo. Ele cita o programa jurídico do Ceap, que dá orientações legais a vítimas de preconceito racial e que tem atendido cada vez mais gente. O coordenador do programa, Walmir dos Santos, dá detalhes sobre o que é feito: "Informamos às pessoas, sobre o que elas podem fazer, entramos com um processo ou fazemos uma reprimenda e muitas vezes conseguimos que as vítimas sejam indenizadas por danos morais." Segundo Walmir, a quantidade de pessoas que recorre a serviços como este sem dúvida tem crescido e costuma haver oscilações com aumentos no mês da consciência negra e perto do 13 de maio.

Já Josima Maria da Cunha, coordenadora da organização Criola, que este ano completou 10 anos de atividades, acredita que as ONGs estão fazendo muita coisa, mas é preciso sempre estar atento para não deixar os ganhos já obtidos escaparem. "Os negros e negras já fizeram o mais importante: resistir. Tanto aos séculos de escravidão, quanto ao preconceito que ainda vigora hoje em dia. É importante que cada vez mais pessoas e instituições prestem atenção e fiquem vigilantes, para não deixar que o trabalho se perca".

Trabalho como o da Criola, que é conduzida por mulheres negras e voltada para o trabalho com mulheres, adolescentes e meninas negras, no Rio de Janeiro. O objetivo é instrumentalizar - palavra que Josima gosta de usar - as pessoas, dar suporte e subsídios para elas saberem mais e se informarem para o enfrentamento do "racismo, do sexismo e da homofobia vigentes na sociedade brasileira". O trabalho da organização inclui o Programa de Saúde (que realiza um trabalho educativo direcionado à prevenção das DST/Aids), a articulação das mulheres tanto no Brasil quanto no exterior, uma biblioteca com mais de dois mil livros e o Programa Aziza de Direitos Humanos. Este último tem o objetivo de apoiar as mulheres que tenham sido violadas em algum de seus direitos e lançou recentemente o Prêmio Aziza de Direitos Humanos - que vai reconhecer indivíduos ou instituições que se destacaram na defesa dos direitos humanos, não só, mas com foco, das mulheres. (Mais informações sobre o prêmio podem ser obtidas no site da Criola, cujo link está ao lado).

Josima faz um balanço desta década de atuação: "Essa baixa auto-estima que querem nos enfiar goela abaixo é que queremos rebater. As políticas públicas podem estar envolvidas neste processo, para ajudar a garantir direitos que ainda precisam ser concretizados e a transformação na consciência da sociedade, que ainda precisa mudar muito. Não ganhamos a guerra, mas vencemos muitas batalhas." O guerreiro Zumbi se orgulharia.

 


Maria Eduarda Mattar

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