Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original:
Andréia Peres*
Uma estatística teima em lembrar que o Brasil, infelizmente, ainda não colocou o pé no século 21. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), dos 35,8 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos, cerca de 3,8 milhões (10,73% do total) são obrigados a renunciar aos livros e às brincadeiras para pegar pesado no batente. A maioria deles – 51,49% – sem receber salário.
O Nordeste é a região que apresenta maior porcentual de não-remunerados, com 62,39%. Também é nessa área que estão os cinco estados com as maiores taxas de ocupação da mão-de-obra infantil no meio rural: Piauí, Bahia, Maranhão, Paraíba e Alagoas.
Os números, relativos a 1999, constam da última edição do Mapa de Indicativos do Trabalho da Criança e do Adolescente, atualizada até setembro de 2000 e publicada em 2001 pelo Ministério do Trabalho. Além de trazer dados estatísticos, o documento relaciona 148 atividades econômicas exercidas por crianças e adolescentes, que foram identificadas em 1.431 municípios pelos fiscais do ministério.
O cenário, entretanto, já foi pior. Segundo as estatísticas oficiais, em 1995 havia aproximadamente 5,1 milhões de trabalhadores entre 5 e 15 anos – 13,74% do universo de crianças e adolescentes dessa faixa etária. Três anos depois, esse número baixava para 3,9 milhões, 10,83% do total.
Poucos progressos
Apesar das conquistas, um dado tem preocupado os especialistas. A análise das estatísticas registra que houve uma redução significativa do número de crianças trabalhando no período de 1995 a 1996, mas de 1996 a 1999 não houve diminuição. O dado consta do estudo intitulado Trabalho Infantil: Examinando o Problema, Avaliando Estratégias de Erradicação, do Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa (Napp), do Rio de Janeiro. Caio Silveira, Carlos Amaral e Débora Campineiro, pesquisadores do Napp, estudaram dados referentes ao número de crianças e adolescentes ocupados e às taxas de atividade desses segmentos de 1995 a 1999 utilizando informações das PNADs.
Comparando-se o primeiro (1995) e o último ano (1999), observa-se uma redução de 23% no número de crianças trabalhadoras na faixa de 10 a 14 anos. A redução mais expressiva, no entanto, ocorreu, segundo o estudo, entre os anos de 1995 e 1996. A queda nesse período corresponde a cerca de 90% da variação total. Entre 1996 e 1999, a variação foi inexpressiva, representando apenas 2,4%, o que fez os pesquisadores concluírem que, nos últimos quatro anos da década, não houve diminuição significativa na dimensão do trabalho de crianças de 10 a 14 anos.
A tendência é confirmada pelo exame da taxa de atividade de crianças nessa faixa etária, que também cai significativamente de 1995 a 1996, mantendo-se praticamente inalterada a partir daí. Segundo Carlos Amaral, os resultados obtidos nesse período estão ligados à estabilização da economia e à diminuição da pobreza absoluta no país. O sociólogo explica que essa redução do trabalho infantil ocorre com atraso (um ano depois), porque as próprias famílias demoram a consolidar o aumento da renda. “Para elas, o trabalho infantil funciona como parte da estratégia de sobrevivência e, por isso, não há um efeito imediato”, diz ele. “Só quando esse aumento de renda se consolida é que as famílias tendem a reestruturar a estratégia de sobrevivência.”
De acordo com o estudo, a inexistência de mudanças significativas entre 1996 e 1999 indica que as ações institucionais de erradicação do trabalho infantil, que se intensificaram a partir de 1996 com a criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), do governo federal, não vêm alcançando uma redução na dimensão desse problema em escala nacional, embora tenham obtido êxitos localizados.
Parte da solução, não do problema
“Essa desaceleração da queda no número de crianças trabalhando é preocupante”, reconhece o procurador Lélio Bentes, da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente, ligada ao Ministério Público e do Trabalho. Para ele, os dados apontam para a necessidade de se rever algumas ações que vêm sendo adotadas desde 1995 com o objetivo de riscar esse problema do mapa. “Acredito muito no Peti, mas é preciso fazer um monitoramento constante do programa, direcionando as ações para as famílias”, diz ele. “Durante muito tempo tivemos a tendência de enxergar a criança como um ser isolado da família. Foi um erro.” O professor Antonio Carlos Gomes da Costa, pedagogo e diretor-presidente da Modus Faciendi, empresa de consultoria em desenvolvimento social e ação educativa, concorda com ele. “Em vez de ajudar as famílias para que elas ajudem as crianças, o Brasil fez a opção de ajudar as crianças para que elas ajudassem as famílias”, critica. Foram criados vários programas de trabalho e de geração de renda para crianças e adolescentes. “Isso fez com que o trabalho infantil no Brasil se tornasse parte da solução, e não do problema”, analisa o pedagogo. “Esse foi o grande descaminho na condução de políticas públicas para a infância.”
Segundo o trabalho do Napp, a provável associação entre a redução do trabalho infantil ocorrida entre 1995 e 1996 e o incremento de renda das famílias mais pobres enfatiza a importância das dimensões macroeconômica e familiar das políticas de erradicação.
O trabalho escravo foi praticamente eliminado
Ainda há muito por fazer, mas os avanços, por sua vez, são inegáveis. “Hoje, as crianças estão fora do trabalho escravo, de grande exploração. É claro que em locais bem afastados você ainda pode encontrar, mas a maior parte foi eliminada”, reconhece a psicóloga e socióloga Irene Rizzini, da Coordenação de Estudos e Pesquisas sobre Infância (Cespi), da Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, e vice-presidente da Childwatch International Research Network, rede de articulação internacional, com sede na Noruega. No início de 2001, a Cespi e o Instituto Promundo fizeram para a Organização Internacional do Trabalho uma avaliação dos programas de erradicação que recebem o apoio da organização. Durante três meses, Irene Rizzini, Gary Barker e equipe entrevistaram quarenta pessoas envolvidas nos programas em vários estados brasileiros, principalmente na zona rural, e constataram que houve mesmo uma redução do número de crianças trabalhando. Inexiste, no entanto, de acordo com a pesquisa do Napp, uma tendência progressiva e constante de redução do trabalho infantil no Brasil, o que reforça a permanência e a atualidade do problema.
*Andréia Peres é jornalista e autora do livro "A caminho da escola" (publicado pelo Instituto Souza Cruz) de onde foi retirado este texto.
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