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Patente ou vida?

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








A Declaração de Doha – fruto da Quarta Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), ocorrida em novembro de 2001, em Doha, capital do Catar - inclui, entre outros documentos, o Acordo sobre Aspectos Comerciais do Direito à Propriedade Intelectual (Trips, da sigla em inglês) e Saúde Pública. O Trips já existia antes de Doha. Trata-se de um documento previsto já na criação da OMC, em 1995, para abordar questões de propriedade intelectual e comércio – como o próprio nome indica: Aspectos comerciais do direito à propriedade intelectual  (em inglês, Trade-related aspects of intellectual property rights - Trips). O acordo sobre Trips e saúde pública, gerado em Doha, reforçou alguns critérios do Trips e estabeleceu novos – mas não sem alguma polêmica. Um dos pontos mais discutidos do documento foi a permissão de quebra de patentes por países pouco desenvolvidos quando estiverem em situações de emergência de saúde.

Este já era um tema conturbado há tempos. Particularmente em 2001, alguns episódios sobre o tema tomaram as manchetes brasileiras, antes mesmo da Conferência. Em abril daquele ano, o Escritório de Comércio da Casa Branca apresentou um relatório à OMC, acusando o Brasil de estar em desacordo com as normas internacionais, devido à quebra de patente de medicamentos. Em maio, o então ministro da saúde, José Serra, rebate a acusação afirmando que os EUA têm um dispositivo legal semelhante e que a Lei de Patentes brasileira segue rigorosamente as diretrizes da OMC – neste caso, o Trips. A investida dos EUA contra o Brasil provocou manifestações - uma das principais foi a ocorrida em frente ao consulado americano no Rio de Janeiro. Em junho de 2001, o governo dos EUA anunciou a retirada da queixa contra o Brasil junto à OMC.

É de origem norte-americana a maior parte dos laboratórios que detêm as patentes de medicamentos anti-Aids. O argumento da indústria farmacêutica é que os remédios são caros devido ao alto custo das pesquisas necessárias à sua elaboração. Porém, a maior parte dela é bancada por universidades e governos.

Em Doha, a quebra de patentes farmacêuticas em caso de emergências na área de saúde foi defendida por cerca de 50 países em desenvolvimento, liderados por Brasil e Índia. A intenção era colocar a saúde pública à frente do comércio de medicamentos e assim possibilitar a quebra de patentes de remédios - cuja exclusividade de propriedade dura 20 anos para qualquer produto (de acordo as regras da OMC). A conseqüência seria o barateamento dos remédios e desenvolvimento tecnológico, na medida em que estes seriam produzidos localmente ou importados de outros países em desenvolvimento.

Entretanto, a versão final do documento acabou saindo esvaziada, com pouca força. A linguagem utilizada é um dos principais motivos. O termo utilizado na redação final foi should (deveria, em inglês) ao invés de shall (deve, com sentido obrigatório), como tinha sido proposto por diversas organizações não-governamentais que acompanharam a questão na época. Ou seja, não é mandatório e deixa margem a interpretações – entre elas o número de doenças a serem combatidas efetivamente, os países beneficiários e os prazos a serem considerados.

Mas o que parece uma derrota dos países mais pobres também pode ser considerado uma vitória. “Saiu o possível, não o ideal”, diz Adriana Ramos, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip). “Mas como declaração política é válida. Não é lei, mas tem peso em negociações comerciais”, completa. Adriano Campolina, coordenador de campanhas da ActionAid Brasil e também membro do grupo de trabalho, concorda com Adriana. “As ONGs preferiam uma declaração mais dura. Porém ela em si já é importante. As multinacionais farmacêuticas foram frustradas”, diz ele, que esteve em Doha e acompanhou de perto as negociações e a delegação brasileira.

A vitória, porém, tem data-limite para ser posta em prática – 31 de dezembro de 2002, para o encaminhamento de soluções ao Conselho Geral da OMC, e 2016, para que os países menos desenvolvidos implementem em forma de lei local todos os artigos do acordo sobre Trips. As sugestões devem abordar problemas como a falta de capacidade dos países em produzir localmente os remédios cuja patente tenha sido quebrada e a possibilidade de importarem de nações pouco desenvolvidas que sejam capazes de fazê-los. O Brasil tem condições de fabricá-los por meio da FarManguinhos (ligada à Fiocruz), mas o mesmo não acontece com a maioria dos países africanos, por exemplo, já que seu parque industrial é reduzido.

Discussões

Não pode ser ignorado o papel de diversas campanhas mundiais de organizações de vários países na aprovação da Declaração de Doha. Foram estas instituições, por exemplo, que apresentaram uma primeira proposta da declaração, que não foi aprovada na sua forma original. Apesar de não poderem participar das reuniões, exclusivas para ministros, as ONGs foram muito ativas na Conferência, sendo sempre consultadas pelo governo brasileiro, entre outros.

Hoje, as organizações acompanham as discussões ainda em andamento em Genebra, sede da OMC, para apresentação de propostas de implementação do documento, apesar do prazo quase esgotado. Apesar da mobilização, pouco foi feito. Por outro lado, já há reações às diretrizes que constam no documento. A pauta atualmente recebe a atenção de países em desenvolvimento - como Brasil, Índia e Tailândia – que não querem restrições sobre o número de doenças nem sobre os países beneficiários desta medida. Já Estados Unidos, Canadá, Suíça e outras nações européias defendem negociações prévias, autorização para exportação e importação de medicamentos cuja patente tiver sido quebrada e aplicação do acordo a apenas três doenças (malária, tuberculose e Aids –citadas na Declaração de Doha como exemplos de casos graves de saúde).

A demora é creditada ao medo de retaliações comerciais por parte dos mais ricos. “Há uma tendência a evitar o conflito com as empresas transnacionais e com os países desenvolvidos. Algumas corporações têm orçamento maior do que o PIB de países pobres”, afirma Michel Lotrowska, representante da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais dos Médicos Sem Fronteiras. “São duas lógicas diferentes, como se pôde perceber bem na época da Conferência da Doha - quando os governos preferiram chegar a um acordo enquanto as ONGs achavam melhor uma declaração mais dura”, explica Campolina.

Até agora nada foi decidido e o prazo está cada vez menor, mas todas as organizações sociais concordam num ponto: não se pode tratar medicamentos essenciais como um produto qualquer. “Remédio não é computador”, adverte Carlos Passareli, da Abiaids, para quem a legislação deve ser diferente para nações em desenvolvimento e desenvolvidas, pois, além da economia, as doenças a serem combatidas são diferentes.

Desenvolvimento

Além da saúde pública, os acordos de propriedade intelectual estão relacionados a outros assuntos e por isso são tão polêmicos. Um deles é o próprio desenvolvimento dos países. Historicamente as nações mais ricas sempre se opuseram ao monopólio de patentes, pois a transferência de tecnologia, ligada a ele, era dificultada. “Agora que todos já atingiram níveis satisfatórios de desenvolvimento decidem passar as vantagens para o setor privado. A quebra de patentes leva ao desenvolvimento”, diz Adriana Ramos, que acha que, se não for logo concretizado, o acordo de Trips corre o risco de ser esquecido e perder seu valor. Michel Lotrowska, do Médicos Sem Fronteiras, lembra que a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), responsável pela assistência técnica aos governos para implementar legislações que respeitem o acordo Trips, pouco fez até agora, mesmo com os apelos já feitos por organizações sociais. “Os lobbies na OMPI são muito fortes”, diz.

Por isso, a expectativa em torno de nações pobres com indústria química, como Brasil e Índia, é grande. O Brasil, no entanto, poderia ter um potencial de produção muito maior. Explica-se: a Declaração de Doha estabelece janeiro de 2016 como prazo final para a elaboração de leis sobre o assunto, por parte dos países membros da OMC. A partir daí, qualquer fabricante poderá solicitar patente em qualquer lugar do mundo e ter monopólio de 20 anos na produção local. Porém, até lá, os países que ainda não tivessem legislação específica para o assunto, a rigor não poderiam ser processados por quebra de patente em seus territórios, pela legislação local. O máximo que poderia acontecer é o país ser denunciado à OMC, como os EUA fizeram com o Brasil.

Em 1996, o Congresso brasileiro aprovou a lei de propriedade industrial (9.279/96) e o Brasil não pode – uma vez que já tem legislação específica - aproveitar o prazo até 2016. “Hoje em dia, você vê a Índia produzindo cópias de todos os medicamentos patenteados no mundo, enquanto o Brasil não pode mais copiar nada e vê sua indústria nacional sem perspectiva de desenvolvimento tecnológico”, lamenta Michel Lotrowska. Ainda assim, outros países esperam que o Brasil quebre patentes, como fez recentemente a Tailândia com um retroviral anti-aids.

Enquanto países demoram ou se opõem a tomar atitudes que mexem com as conturbadas questões de propriedade intelectual, os medicamentos continuam caros - e não são poucas as pessoas que morrem por falta de condições de adquiri-los e governos que gastam fortunas para comprar poucas unidades de remédios contra doenças que matam milhares. A questão não é ser contra ou a favor de patentes e lucros, mas contra ou a favor da vida.

Marcelo Medeiros e Maria Eduarda Mattar

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