Autor original: Julio Cesar Brazil
Seção original: Artigos de opinião
Jorge Aparecido Monteiro*
As desigualdades entre brancos e negros em nosso país poderiam muito bem ser representadas por um desses dragões ameaçadores que nas histórias de ficção infantil se apresentam com múltiplas cabeças soltando fogo pelas ventas, devorando tudo que vêm pela frente, dando-nos a impressão de que são eternos e jamais poderiam ser destruídos tal é sua força. Sua capacidade de dissimulação e de disfarce esconde as questões étnico raciais que sustentam as desigualdades e pode ser comparado a um camaleão, pois neste país da "democracia racial" só existiriam problemas sociais. Os problemas raciais e étnicos "só existem bem longe daqui, lá no estrangeiro".
Esse dragão de muitas cabeças, e que não é ficção, tem suas faces na educação, no mercado de trabalho, nas condições de saúde e habitação, na política e nos direitos à cidadania plena, para ficarmos apenas em algumas das principais.
Quando olhamos para a face das desigualdades étnico-raciais no mercado de trabalho, podemos observar: a diferença dos salários médios pagos aos trabalhadores negros e brancos, a vulnerabilidade diante do desemprego à qual os afro-brasileiros estão mais sujeitos do que os trabalhadores brancos, a situação de remuneração das mulheres negras como a pior entre as piores e por fim a situação dos empregadores negros e brancos.
É claro que esse dragão das desigualdades e suas cabeças têm que ser vencidos como um todo, há que se aniquilar o dragão inteiro e não apenas suas partes. Para isso, as fontes que o alimentam precisam ser radicalmente eliminadas. Tendo nascido lá por volta do distante ano de 1534, quando os primeiros africanos foram trazidos para estas terras, ele cresceu e se desenvolveu alimentado pelos colonizadores portugueses e europeus e posteriormente, com o fim da escravidão, sua voracidade continuou sendo satisfeita pela sociedade capitalista e suas elites, as quais se supunha serem seus inimigos mortais. Não foram e não são - a exclusão social de pretos e pardos também lhes serve de alimento e atende a muitos de seus interesses no processo de produção de bens e serviços como força de trabalho barata e submetida a superexploração. A chamada "mão invisível do mercado" ao invés de aniquilar o dragão, o afaga, acaricia, alimenta e fortalece.
Neste espaço vamos fazer alguns comentários sobre a face do dragão relativa às desigualdades entre empregadores negros e brancos, tema que me preocupa e estudo desde a metade dos anos 80.
Empresários e Empregadores no Brasil Segundo a Cor
Cor |
Anos Pesquisados |
|
1982 |
1987 |
1988 |
1989 |
1990 |
1999 |
Brancos |
4,5% |
4,7% |
4,7% |
5,6% |
6,0% |
5,7% |
Pardos |
1,6% |
1,7% |
1,6% |
2,5% |
2,7% |
2,1% |
Pretos |
0,7% |
0,7% |
0,5% |
1,2% |
1,3% |
1,1% |
Fonte: Cor da População - Síntese de Indicadores Sociais 1982-1990-IBGE e PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios –1999-IBGE
Esses dados que cobrem apenas o período de 1982 a 1999 são um espelho do que se passou ao longo do século XX, quando se analisa os diversos censos demográficos onde eles aparecem. Os indicadores desfavoráveis aos empregadores negros mantiveram-se constantes por todo o século passado, como se tivessem sido congelados, não obstante o surgimento, ao longo desse período, de diversas agências de fomento e desenvolvimento de empreendimentos empresariais de pequeno e médio porte.
Vários tipos de perguntas são inevitáveis a partir daí. Por que, passados 114 anos da Abolição, existem tão poucos empresários e empregadores negros no Brasil, quando os afro-brasileiros são 46% da população total, isto é, cerca de 72,6 milhões de pessoas? Seriam os afro-brasileiros menos empreendedores do que os demais povos formadores da nacionalidade brasileira? Se a biografia da maioria dos empresários brancos, mesmo os grandes, revela que um dia foi pobre, com pouco investimento em educação, mas trabalharam duro e muito e construíram seus empreendimentos, por que os empresários negros com as mesmas características não possuem a mesma visibilidade na sociedade brasileira? Será que os empresários negros, em sua maioria, são realmente uns alienados em relação aos problemas de sua comunidade de destino e à sua condição de afro-descendentes?
E o associativismo de empresários afro-brasileiros? Nos últimos dez/doze anos surgiram algumas associações de empresários negros com esse propósito, ou seja, organizarem-se em associações próprias. Elas já existem em algumas capitais como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília. Porém, por ser um tipo de associativismo novo entre os afro-brasileiros, são muitos os desafios e parece que ainda há pela frente um longo caminho a percorrer. Em nossa pesquisa iniciada em 1986 e transformada em livro, constatamos a necessidade (o empresário negro é muito isolado), defendemos e desde então agimos, ao lado de outros membros da comunidade negra, no sentido de estimular a organização dessas associações em cada município, sem que se fechem em si mesmas.
Nosso trabalho não aponta para a criação de uma nova casta de "capitalistas selvagens" não brancos. Pelo contrário, embora numericamente inferiores, os empresários e empreendedores afro-brasileiros também possuem, por seu papel estratégico no desenvolvimento e inovação social, grande responsabilidade como empresas e empresários cidadãos para com sua comunidade de destino. Mas, para cumprirem este papel, devem se organizar como empresas e como coletividade representativas. O século XXI é incompatível com a acomodação e/ou omissão de qualquer povo, nação, classe ou grupo frente aos problemas agudos que nos afligem a todos.
Por fim, é preciso dizer ainda que se é certo que diversas dificuldades que atingem a empresa afro-brasileira são comuns a qualquer empresa - tais como juros elevados, falta de capital de giro, informalidade, burocracia na hora de legalizar, má gestão do negócio, pouco treinamento - é certo também a existência de desafios específicos relacionados à sua própria condição étnica, em um país onde o racismo, embora camuflado e disfarçado, é amplamente reconhecido. É claro que nem sempre as manifestações de preconceito no momento de fazer negócios ocorrem ou são percebidas com nitidez, mas podem aparecer nas relações de trabalho, com fornecedores, concorrentes e mesmo com clientes. Disse-nos um dos entrevistados na pesquisa: "tem hora que parece que o dinheiro também tem cor por aqui". Concluímos chamando a atenção para a necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento da empresa afro-brasileira – levando em conta aspectos educacionais, com medidas menos localizadas e restritas e mais estruturais. Esta união de ações podem alterar significativamente os indicadores desfavoráveis aos empreendedores e empregadores negros de nosso país e de promover desenvolvimento sistemático da cultura empreendedora e empresarial entre eles. Ainda não se mata o dragão, mas cortamos uma de suas cabeças mais importantes.
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Jorge Aparecido Monteiro é sociólogo, conselheiro do Colymar - Centro de Empresários Afro-Brasileiros e autor do livro "O Empresário Negro".
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