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A reforma agrária através do mercado: contexto político e contornos

Autor original: Julio Cesar Brazil

Seção original:

*Leonilde Servolo de Medeiros


A proposta de reforma agrária de mercado emerge no Brasil num contexto, no plano interno, de intensificação das ocupações de terra, mas também está estreitamente ligada a um redirecionamento das políticas do Banco Mundial que, desde meados dos anos 70, elaborou alguns princípios gerais de ação, tais como o reconhecimento da importância da propriedade familiar em termos de eficiência e eqüidade; a necessidade de estimular os mercados para facilitar a transferência de terras para usuários mais eficientes e a importância de uma distribuição igualitária de bens e de reformas agrárias redistributivas (Sauer, s/d).


3.1. As ocupações de terra e as redefinições da política agrária no governo Fernando Henrique Cardoso

Logo no início do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, o tema agrário parecia ter perdido seu lugar no debate político, em face das polêmicas sobre a política econômica de estabilização e combate à inflação (Plano Real). O sucesso do plano trouxe uma alta popularidade ao presidente e, aparentemente, não havia contestação popular ao governo. No entanto, alguns fatos alteraram esse quadro. Dois deles merecem destaque. O primeiro diz respeito a situações de extrema violência policial em relação às ações de trabalhadores rurais, fatos que passaram a ser conhecidos como os "massacres" de Corumbiara (Rondônia) e Eldorado de Carajás (Pará). O segundo foi a retomada das ocupações de terra, não só pelo MST, mas também por diversos sindicatos e federações de trabalhadores ligados à Contag, em especial em Minas Gerais, Goiás e na região canavieira nordestina, área onde a crise econômica e a falência das tradicionais usinas de cana estavam deixando milhares de trabalhadores desempregados.

Esses acontecimentos colocaram novamente o tema da questão agrária com destaque nos meios de comunicação e no debate público, levando o novo governo a criar o Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária. Com essa medida, a questão agrária saía da alçada do Ministério da Agricultura, tradicional espaço de controle dos grandes empresários rurais, e passava a ser subordinada mais diretamente à Presidência da República. Essa mudança foi a primeira sinalização de uma ofensiva do governo em relação ao tema, visando retomar a iniciativa política e deixar de "estar a reboque dos movimentos", no que diz respeito à política fundiária. Com essas iniciativas, o Estado procurava absorver as demandas que emergiam com grande intensidade, redefinindo-as e reenquadrando-as através dos mecanismos de seleção que lhe são próprios (Offe, 1984).

Paralelamente, o MST intensificou as mobilizações e procurou de uma forma mais direta ampliar o campo do debate e conquistar o apoio da opinião pública para sua causa. Ponto alto dessa iniciativa foi a organização de uma marcha, que partiu de diversos pontos do país e chegou a Brasília no dia em que o massacre de Eldorado de Carajás completou um ano. Essa marcha, que durou cerca de três meses, foi extremamente pacífica e rica de simbolismos em torno do significado da terra. Em resultado, colocou, durante todo esse tempo, as demandas dos "sem terra" nas primeiras páginas dos jornais e nos espaços nobres dos noticiários televisivos. A chegada da Marcha a Brasília capitalizou insatisfações diversas e se constituiu na primeira manifestação popular contra o governo que, até então, parecia gozar de unanimidade absoluta, em função do impacto econômico do Plano Real e queda da inflação. Desde então, a reforma agrária passou a reocupar um lugar importante no debate, exigindo dos atores envolvidos constantes tomadas de posições, num quadro político que rapidamente se modificava, movido pelas intervenções dos diferentes segmentos.

A ampliação das mobilizações colocava, para o governo, o desafio de minimizar o crescente poder social e a capacidade de mobilização do MST, de forma a reduzir seu papel de principal personagem na luta por terra. Como apontado, os movimentos sociais, em especial o MST, assumiram a dianteira na reivindicação de áreas a serem desapropriadas, acampando e forçando desapropriações. Pelas suas ações, aceleraram o ritmo de obtenção de terras e de criação dos assentamentos.

As iniciativas do governo, que se inauguraram com a criação de um Gabinete Ministerial voltado para o tema, apareceram não só como uma tentativa de reversão dessa equação, mas principalmente de fazê-la dando novos sentidos à reforma agrária, descentralizando-a, atribuindo novas competências aos estados e municípios e buscando adequá-la à lógica do mercado.

Fez parte dessas iniciativas a criação, por vezes sem grande alarde, de uma série de aparatos institucionais. Grande parte deles foi viabilizada através de medidas provisórias, decretos ou leis complementares, reforçando a tese de Diniz (1998:35) de que no Brasil "o Executivo tem determinado a agenda do Legislativo e o conteúdo da produção legal" e mostrando a importância e urgência que a questão agrária voltara a assumir no âmbito das políticas de Estado. Essa nova institucionalidade inseriu-se em marcos mais amplos do que a questão agrária propriamente dita, na medida em que se regia pelos parâmetros de uma reforma do Estado, cujas diretrizes centrais eram a descentralização de ações, o enxugamento da máquina administrativa e a privatização. No seu conjunto, elas, de um lado, agilizaram as ações fundiárias governamentais, eliminando alguns gargalos; de outro, procuraram tirar dos movimentos de luta por terra suas iniciativas.

A nova legislação introduziu uma série de regulamentações, de forma a criar instrumentos que pudessem acelerar a obtenção de terras para realização de assentamentos rurais. Entre eles, destacamos:

- agilização no rito sumário, permitindo que a imissão de posse da terra se fizesse no máximo em 48 horas após o ajuizamento da ação de desapropriação. O depósito em dinheiro (para pagamento de benfeitorias) e em títulos da dívida agrária (para pagamento da terra nua) seria feito pelo Incra, à disposição do juízo, antes da ação ser ajuizada. A bancada ruralista votou favoravelmente à proposta em troca de uma medida provisória que proibia a desapropriação de terras ocupadas (FSP, 15/08/96);

- vistoria das terras com acompanhamento pelas entidades sindicais patronal (organizadas na Confederação Nacional da Agricultura) e de trabalhadores (Contag), excluindo-se o MST desse processo;

- impedimento da fragmentação dos imóveis depois de realizada a comunicação de vistoria, para que não ocorresse o expediente, comumente utilizado pelos proprietários ameaçados por desapropriação, de dividir a propriedade em várias titularidades (normalmente através de parentes), de forma a torná-la não passível desse tipo de ação, uma vez que, como vimos, imóveis com menos de 15 módulos fiscais não podem, de acordo com a Constituição brasileira, ser desapropriados;

- comunicação de vistoria não só através de carta, mas também em jornal de grande circulação na unidade da federação onde se encontrava o imóvel, de forma a impedir que o proprietário utilizasse o subterfúgio, bastante comum, de alegar desconhecimento da ordem;

- reconhecimento como projeto técnico de exploração somente daqueles que tivessem sido aprovados por órgão competente, pelo menos seis meses antes da vistoria, de forma a evitar que a desapropriação fosse impedida pelo intercurso de projeto de aproveitamento;

- alteração dos critérios de avaliação das terras improdutivas, tornando os valores das indenizações compatíveis com os preços de mercado;

- redução, no caso de desapropriações, dos juros compensatórios de 12% para 6% ao ano, incidentes sobre o valor da diferença entre o preço da avaliação e o arbitrado judicialmente;

- possibilidade da União delegar aos estados poder para que eles realizassem cadastramento, vistorias, avaliações e outras atribuições referentes à reforma agrária, mediante convênio;

- prazo de dois anos para que todos os proprietários fizessem no Incra a ratificação das concessões e alienações de terras feitas pelos estados nas faixas de fronteira. Caso a comprovação não fosse feita no período (que se iniciou em 01/01/1999), a União declararia nulo o título de alienação ou concessão e retomaria o imóvel, dispondo-o para fins de reforma agrária. A primeira edição da medida convocava todos os proprietários para fazer a ratificação no prazo de dois anos e deixava claro que a propriedade deveria cumprir sua função social. Na segunda edição, foi suprimido o parágrafo referente à função social e as propriedades com até quatro módulos foram liberadas da obrigatoriedade de ratificar seus títulos.

Esse conjunto de medidas, de caráter bastante amplo, voltava-se para duas questões consideradas centrais pelo governo. A primeira delas dizia respeito aos altos valores pagos pelas desapropriações, graças às freqüentes contestações judiciais dos preços estabelecidos pelo Incra. A legislação procurou coibir esse tipo de procedimento, bem como contornar subterfúgios utilizados pelos proprietários para não ter suas terras desapropriadas. A segunda voltava-se à criação de condições para agilizar o processo desapropriatório, reduzindo seu tempo e a pressão dos movimentos sociais. A medida provisória relacionada às faixas de fronteira procurou também aumentar o estoque de terras disponíveis, em especial nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, cuja ocupação foi caracterizada, ao longo dos anos, pela grilagem.

Por outro lado, outras medidas, simultâneas às que elencamos anteriormente, procuraram inibir a ação das organizações dos trabalhadores rurais, em especial do MST. Dentre elas, destacavam-se:

- proibição da realização de vistorias em áreas ocupadas, inviabilizando, portanto, sua desapropriação;

- suspensão de negociações em casos de ocupações de órgãos públicos. Os funcionários do Incra que negociassem com esses ocupantes passariam a ser passíveis de penalização;

- permissão para que as entidades estaduais representativas de trabalhadores rurais indicassem áreas passíveis de desapropriação para reforma agrária. Normalmente são reconhecidas como entidades representativas, no plano estadual, as federações de trabalhadores da agricultura, ligadas à Contag. Estimulava-se, assim, a disputa política entre os movimentos, legitimando as demandas de uns e ignorando as de outros, mas principalmente dando reconhecimento a entidades que não faziam da ocupação de terras sua forma primordial de luta;

- instituição de um programa de arrendamento rural, tornando as terras nele inscritas não passíveis de desapropriação;

- impossibilidade de acesso a recursos públicos, em qualquer das esferas de governo, por entidades que, de alguma forma, fossem consideradas suspeitas de serem participantes, co-participantes ou incentivadora de ocupação de imóveis rurais ou bens públicos. Caso a entidade já dispusesse de algum convênio ou instrumento correlato, o governo reteria os recursos e rescindiria o contrato.

Com esse conjunto de medidas, buscava-se combater o que se mostrava como a principal forma de pressão na luta por terra: as ocupações, geradoras de fatos políticos. Afirmando democratizar o processo de reforma agrária, as novas medidas não só abriam a possibilidade das indicações de áreas a serem desapropriadas partirem dos proprietários de terra, como estadualizavam a demanda, procurando isolar a força de entidades representativas nacionais. Como já visto, os Gritos da Terra sempre tinham, como um dos pontos de sua pauta, uma relação de imóveis cuja desapropriação era solicitada. Nesse quadro, com a exclusão do MST e o conseqüente privilegiamento das entidades sindicais procurava-se criar uma cunha entre diferentes vertentes das organizações de trabalhadores, além de transferir as pressões para a esfera estadual, o que se colocava como uma novidade para essas entidades que tradicionalmente encaminhavam suas demandas para a esfera federal, mais especificamente para o Executivo. Com isso, o governo procurava não só criar condições para recuperar a iniciativa no processo de desapropriações, buscando estreitar os canais por onde se fazia a pressão dos movimentos sociais, mas também atrair o apoio de parcela deles. Os desdobramentos dessa proposta podem ser observados nas sucessivas quedas de braços entre o governo e os demandantes de terra, em especial o MST, o diálogo sendo retomado quando a pressão se tornava insustentável e politicamente desgastante, dada a crescente legitimação que o Movimento dos Sem Terra adquiria junto à opinião pública.

Ao lado dessas medidas legais, iniciou-se um processo de descentralização de ações, em contraposição ao modelo altamente centralizado herdado do regime militar. Embora já ensaiada em momentos anteriores (Medeiros, 1999), os primeiros sinais de medidas concretas nessa direção apareceram com as mudanças na estrutura operacional do Incra, definindo a criação das Unidades Avançadas, com caráter transitório e flexibilidade operacional. Inovava-se também promovendo uma desconcentração administrativa, ampliando-se o leque de competências e de atribuições das Superintendências Regionais, eliminando-se o centralismo na sede, de forma a permitir agilidade no processo decisório. Essas ações, no entanto, remetem muito mais à desconcentração de funções no interior do Incra do que a uma real descentralização, entendida como ação que aumenta a participação política de outras esferas e atores, e fortalece, ao mesmo tempo, os mecanismos de accountability.

Contudo, não se tratava de descentralizar somente os procedimentos administrativos, mas também de envolver estados e municípios através de convênios, especialmente firmados. Sob a ótica governamental, a descentralização ligava-se a uma crescente dificuldade dos organismos envolvidos darem conta do conjunto de tarefas referentes no processo de assentamento. De acordo com o documento "Diretrizes do Processo de Descentralização da Reforma Agrária", de setembro de 1997,



      a descentralização se justifica, em primeiro lugar, porque as dimensões nacionais das metas de obtenção de terra excedem, cada dia mais, a capacidade operacional das superintendências regionais e, em segundo lugar, porque a complexidade do processo é incompatível com a centralização das decisões em Brasília, até porque o assentamento se organiza fundamentalmente na sua dimensão local e regional, exigindo uma presença permanente de agentes locais que o Governo Federal não pode oferecer.

Na ótica da descentralização que assim se instituiu, os Conselhos Estaduais de Reforma Agrária passaram a ser vistos como elemento-chave. Caberia a eles, entre outras atividades, definir as diretrizes da política estadual de reforma agrária e zonas prioritárias para desenvolvimento da agricultura familiar e assentamentos; aprovar a ordem de prioridade na relação de imóveis a serem vistoriados; analisar e dar parecer sobre os processos de aquisição e desapropriação instruídos pelos órgãos estaduais e/ou pelo Incra. Desses conselhos participariam, através de reuniões mensais, a Secretaria da Agricultura, o Incra, o órgão de terra estadual, o banco federal com atuação na região, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura, a Federação da Agricultura (representação patronal), representantes das famílias assentadas, representantes das associações de prefeitos e outras instituições a critério do Conselho. Nos termos do convênio proposto, os governos estaduais ficavam autorizados



      a instruir processos de desapropriação e aquisição de terras para a reforma agrária, podendo para isto realizar vistorias e avaliações em imóveis selecionados pelo Conselho, emitir e assinar os respectivos laudos e usar, quando necessário, o poder de polícia para entrar na propriedade para realizar as vistorias e avaliações ... (MEPF/Incra, 1998).

As iniciativas governamentais, inicialmente esparsas, foram consolidadas no programa "Agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo mundo rural. Política de desenvolvimento rural com base na expansão da agricultura familiar e sua inserção no mercado", dado a público em 1999 e mais conhecido como "Novo Mundo Rural". O documento sintetizava as principais propostas da reforma agrária no segundo mandato Fernando Henrique Cardoso, iniciado nesse mesmo ano. Com o lema "levar qualidade aos assentamentos", a meta era tratar o assentado como agricultor familiar e traçar a programação de ação junto a eles com a participação de Conselhos Estaduais e Municipais de Desenvolvimento Sustentável (ampliando as atribuições dos Conselhos de Reforma Agrária, inicialmente propostos). Tratava-se de constituir parcerias com os governos estaduais e municipais, para definir quais as terras a serem utilizadas e qual a melhor forma de obtê-las, tendo em vista a relação custo-benefício, necessidade de infra-estrutura, demanda de crédito, assistência técnica etc.

Se, como muitos autores têm apontado, o assentamento, no formato que assumiu no Brasil, acabava sendo um enclave do governo federal nos municípios (Araújo, 2000), a proposta em curso procurava levar a uma participação mais intensa dessas unidades, levando-as a assumir funções junto ao assentamento.

Do ponto de vista dos assentados, a nova proposta lhes atribuiu uma série de novas tarefas, a serem executadas através das associações. Diversas atividades que eram função do Incra (topografia, demarcação de lotes, construção de infra-estrutura básica, elaboração do plano de desenvolvimento do assentamento) passaram para a responsabilidade dos assentados, que teriam direito a um recurso a fundo perdido para tanto. Faz parte ainda da proposta de descentralização a emancipação rápida dos assentamentos (dois ou três anos após a demarcação de terras), transformando os assentados em agricultores familiares plenos. Isso significaria também ter que começar a pagar a terra que haviam recebido. Por outro lado, o assentado passava a ser visto como um "empreendedor" que deveria se ajustar ao mundo dos negócios e nele se mostrar competitivo.

Argumentando que o processo de reforma agrária em curso no Brasil tinha somente porta de entrada mas não de saída e que os agricultores precisavam deixar de estar sob tutela do Estado e entrar plenamente no universo contratual, a proposta impunha, após um curto período inicial de consolidação, o mercado como regulador maior das atividades desse contingente recém-chegado à terra.

A proposta teve ainda uma característica particular: sua divulgação foi precedida de uma interpelação direta do governo aos intelectuais envolvidos com o tema. Vários deles foram chamados a debates com o ministro, para que se posicionassem a respeito. Dessa forma, quando o plano foi anunciado, contava com adesões de segmentos que tinham um papel importante na própria constituição dos termos do debate sobre a questão agrária.

É nesse contexto geral, marcado por ações intensas do Executivo, visando retomar a iniciativa política no que se refere à questão agrária e, ao mesmo tempo, mudar o próprio perfil do que tradicionalmente havia sido a intervenção federal sobre o tema, que se apresentou a proposta de criação de um Banco da Terra no Brasil. É ainda nesse quadro que se entende o teor das reações ao que se convencionou chamar de reforma agrária conduzida pelo mercado.

*Leonilde Servolo de Medeiros é doutora em Ciências Sociais e professora do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

O texto é um extrato do capítulo A reforma agrária através do mercado: contexto político e contornos, do livro "Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado no Brasil". A produção da obra recebeu apoio do Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social (Unrisd). Para ler a íntegra do capítulo, faça o download do arquivo.


 





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