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As ONGs e o novo governo

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Reuters

Ao longo de 2002, o então candidato a presidente da República Luis Inácio Lula da Silva se destacava na campanha eleitoral por priorizar em seu programa e discurso questões sociais, enquanto os de seus adversários era dominado pelo "economês", pelas preocupações com dívida externa, fórmulas panacéicas etc. Por fazer parte de uma opção política que nunca esteve no mais alto posto executivo e por ter uma idéia de governar balisada em valores diferentes dos que vinham guiando o país ao longo dos últimos anos, Lula representava a mudança. Resultado: o novo presidente recebeu o "confirma" de mais de 52 milhões de pessoas, 61,27% dos votos válidos nas eleições de outubro do ano passado. Lula chega à presidência consagrado como um dos maiores líderes políticos do mundo atual.

O sentimento de renovação nacional, intraduzível em números ou porcentagens, é o que realmente marca este período da História brasileira. Nas ruas e nas casas, ao votarem em Lula - o ex-sindicalista, não mais assustador como antes – as pessoas mandaram uma mensagem a quem quisesse ouvir: querem, sim, ser levadas em conta - acima de juros, dólares e números. Foi esse mesmo sentimento de renovação que pontuou a cerimônia de posse do presidente na quarta-feira passada, dia 1º de janeiro, quando milhares de pessoas se dirigiram à frente do Congresso Nacional para saudar e ver de perto Lula, com popularidade digna de Hollywood.

No discurso oficial, o pernambucano ressaltou a vontade de promover mudanças e ratificou algumas das prioridades e métodos que vão guiar sua gestão, os quais vem anunciando desde as eleições. Duas delas já são bem conhecidas: o programa Fome Zero e o pacto social. Este – que, segundo ele, "será decisivo para viabilizar as reformas que a sociedade brasileira reclama" - implica o encontro de representantes com naturezas, visões e interesses diferenciados - e a conversa e acordo acerca de prioridades, necessidades etc. É justamente esta possibilidade de diálogo e troca de idéias entre diferentes setores que mais chama a atenção na recém empossada gestão. Como aponta a antropóloga e estudiosa do terceiro setor Leilah Landim, "nunca houve no Brasil tanta possibilidade de interlocução, tanta abertura ao diálogo e permeabilidade às organizações da sociedade civil. Isto se mostra quando o Lula chama a sociedade a se unir e dialogar".

A expectativa de que o diálogo com a sociedade civil seja intenso encontra bases muito antes das eleições de 2002. Os fatos de o próprio presidente ser egresso de um movimento social - o sindicalismo - e ter um histórico de protagonista em mobilização da sociedade configuram o primeiro motivo para este pensamento. Além disso, seu partido, o PT, está historicamente ligado a movimentos sociais e muitos de seus membros são integrantes ou mesmo líderes de organizações da sociedade civil. "Muitos dos que estão perto dele vêm de movimentos sociais dos anos 70 e 80. Estas pessoas têm uma trajetória ligada à sociedade civil organizada", recorda Leilah.

Porém, fatos bem mais recentes alimentam essa expectativa. Em primeiro lugar, a natureza diversa dos membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) - que será o locus de debates e troca de idéias do pretendido pacto social. Dele participarão "empresários, trabalhadores e lideranças dos diferentes segmentos da sociedade civil", conforme explicou o presidente na posse, indicando que pretende instalá-lo já em janeiro. Em segundo lugar, Lula também demonstrou seu interesse em dialogar a sociedade, mais especificamente com as ONGs, quando visitou e chamou a colaborar a Associação Brasileira de ONGs (Abong) ainda em campanha.

O primeiro encontro com a instituição foi realizado no dia 5 de julho, por solicitação da coordenação da campanha de Lula e, além dos integrantes da Abong, estavam presentes representantes de organizações que trabalham com as mais diversas temáticas. O ato deixou uma boa impressão para as ONGs pois foi a primeira vez que um candidato à Presidência da República solicitou encontro com este setor. Na ocasião, o então candidato do PT disse que, se eleito, gostaria de estabelecer com as ONGs "uma parceria para realizar as mudanças necessárias no País". Sérgio Haddad, presidente da Abong, declarou no mesmo dia: "Acreditamos, e nossa prática tem demonstrado, que Estado e sociedade não necessariamente devem ser forças antagônicas". Tempos depois, no dia 7 de novembro, com Lula já eleito, o próprio Haddad e o secretário-geral da Abong, Jorge Eduardo Durão, participaram de reunião convocada pelo petista para começar a discutir o pacto social e a constituição do CDES.

Além da Abong, Lula também começou a conversar com outros segmentos da sociedade civil. Em 26 de novembro de 2002, encontrou-se com sindicalistas. Como resultado, foi criado um grupo de trabalho, que realizou sua primeira reunião no dia 11 de dezembro, para discussão de reforma sindical e trabalhista; previdência social e tributação, e geração de emprego e renda. A direção nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) - instituição que na década de 70 foi fundada com participação decisiva de Lula, que a presidiu e cuja imagem sempre foi muito ligada ao ex-líder - também já se reuniu depois de o encontro com o presidente, para debater a relação com o governo Lula.

Entre o que ficou decidido está a atuação com "autonomia em relação ao governo, mantendo-se protagonista na defesa dos interesses estratégicos e imediatos dos trabalhadores", segundo nota oficial, e a formação de comissões, coordenadas por membros da Executiva Nacional, para acompanhar de perto e influenciar nas reformas que o governo implementará. As seis comissões tratam, entre outras coisas, das tais reformas estruturais "que a sociedade brasileira reclama". São as já famosas reformas tributária, trabalhista, da previdência social, política e, claro, agrária.

Esta última, por sua vez, faz lembrar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que há anos apoia e é apoiado pelo PT e que também se manifestou logo depois das eleições sobre seu posicionamento com relação ao novo governo. Em carta dirigida ao presidente e à população, o movimento declara: "Nós nos engajamos em todas as campanhas eleitorais, desde 1989, para que houvesse mudança. Agora, nos sentimos orgulhosos e vitoriosos por termos elegido o presidente Lula. [...] Para nós, o inimigo é o latifúndio, e o governo Lula vai desempenhar um papel fundamental para democratizar a propriedade de terra no Brasil". O tom da carta reitera o apoio institucional do MST ao petista e dissipa algumas suspeitas de estremecimento de relações levantadas durante o período eleitoral, quando o PT, por intenção de não se atrelar a atos radicais, teria ensaiado um afastamento. Agora, estas suspeitas parecem meras intrigas da oposição.

E, como a prioridade de governo já foi declarada - o combate à fome - a nova gestão também já fez contato com a Ação da Cidadania, que há dez anos vem se destacando pelo esforço em levar a possibilidade de alimentação decente e regular a cada brasileiro. Em novembro, o coordenador geral da entidade, Maurício Andrade, encontrou-se com Lula para discutir, entre outras coisas, a possibilidade de colaboração e aproveitamento da experiência da Ação da Cidadania no programa Fome Zero. Por exemplo: o banco de dados de entidades receptoras das doações da campanha Natal sem Fome poderia ajudar a mapear corretamente os famintos no Brasil. A intenção do novo governo é mobilizar absolutamente toda a população do país em um grande "mutirão nacional contra a fome", como convocou mais uma vez Lula no dia 1º. Conclamou ele: "Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome, teremos motivos de sobre para nos cobrir de vergonha [...] Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional".

Desafios

Porém, esta possível maior aproximação que se desenha entre entidades e movimentos da sociedade civil e governo tem aspectos que merecem ser analisados. Dois dos mais importantes são as possibilidades de perda de distanciamento crítico e de autonomia - duas coisas que se mesclam e que seriam ocasionadas justamente pela festejada aproximação com o governo. Ora, se se aproximarem do governo através de parcerias ou simplesmente debates, pelo fato de estarem comprometidas ou por estarem próximas e engajadas na obtenção de soluções conjuntas para problemas sociais, podem perder a capacidade de ver criticamente e exercer o controle sobre o poder público. Não por quererem, mas por estarem envolvidas com o governo, com as situações.

Para Jorge Eduardo Durão, da Abong, isto não é uma opção: "Não vejo nenhum risco, pois as ONG's têm uma sólida compreensão acerca da importância da autonomia da sociedade civil e compromissos programáticos que não se confundem com o horizonte de um único governo. Por exemplo, não podemos acreditar que a substituição do atual padrão de desenvolvimento e a plena realização dos direitos humanos em bases universais possam se realizar apenas através da ação do Estado e muito menos num ou dois mandatos presidenciais."

Muitas das organizações que poderiam correr este risco parecem estar cientes. O MST deixou isto claro em sua já citada carta endereçada ao presidente e ao povo brasileiro e seu líder nacional, João Pedro Stédile, reitera: "Nosso papel como movimento social é continuar organizando os pobres do campo, conscientizando-os de seus direitos e mobilizando-os para que lutem por mudanças. Manteremos autonomia em relação ao Estado, o que é necessário, mas contribuiremos em tudo o que for possível com o novo governo, para que possamos atingir a tão sonhada reforma agrária". O movimento não pretende deixar de levar adiante seus métodos e inclusive entregou uma lista de reivindicações ao presidente assim que ele foi eleito, na qual mencionam as demandas já apontadas nos anos que antecederam Lula.

Já Maurício Andrade, da Ação da Cidadania, é a primeira vez em que um presidente aponta como prioridade a fome, o fato de ela ser indigna e de se precisar garantir pelo menos que todos comam. "Mas, a sociedade não pode achar que o Estado fará tudo, não pode só esperar do novo governo. Ele não é Deus. As pessoas não podem deixar de tomar responsabilidade, cumprir com sei papel, acompanhar, exigir. As ONGs precisam ter a capacidade de serem interlocutoras deste novo governo".

Cândido Grzybowski, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) é categórico ao defender a manutenção da autonomia das ONGs, o que para ele é fundamental. "Todas as vezes em que as organizações são cooptadas, perdem a confiança da sociedade e passam a ser meros veículos de recado", afirma. Isso não quer dizer que não possa haver relação. Significa que esta deve ser consciente. "Governo deve lembrar que manter as organizações autônomas e críticas é um privilégio da democracia", enfatiza Cândido.

Para Leilah Landim, o perigo de as organizações perderem seu espírito crítico e autonomia é inversamente proporcional à institucionalidade das mesmas. "É fundamental que as organizações defendam os interesses da sociedade civil e continuem vocalizando suas demandas", pede a antropóloga. João Felício, presidente nacional da CUT avisa: "Não somos governo e queremos colaborar, sem abrir mão de nossa ousadia nas ações sindicais".

Outra questão muito ligada à perda de autonomia é um possível esvaziamento das organizações com a fuga de quadros e cérebros das mesmas para o governo. Justamente pela equipe de Lula contar com pessoas ligadas a movimentos sociais, elas puxam outros integrantes de organizações da sociedade civil. A nomeação de Marina Silva como Ministra do Meio-Ambiente é exemplo disto, uma vez que a ex-senadora vem dos movimentos ambientalistas. O intento de aproveitar certas capacidades das pessoas do terceiro setor também é um motivo para que se as convide a participarem do governo. Seria um risco de as ONGs perderem alguns de seus principais líderes? "Pelo que conheço, acredito que existe no Brasil um conjunto de organizações consolidado, crítico e autônomo para não ser esvaziado", acredita Leilah. Se por um lado isto poderia ser ruim para as ONGs, poderia também ser essencial para que as demandas deste setor pudessem ser expostas dentro da estrutura governamental, não como solicitações externas.

Outro aspecto que não pode ser ignorado é o real papel das ONGs e movimentos sociais no novo governo. Apesar de Lula se mostrar completamente aberto à conversa, até que ponto o posicionamento das organizações vai ser levado em conta? Muitos apostam que a importância da participação das ONGs será muito mais consultiva, com as instituições sendo solicitadas a opinar sobre determinados assuntos – mas não necessariamente tendo suas posições como fiel da balança. Se isto de fato acontecer, reforçaria a importância de alguns integrantes de ONGs estarem dentro do governo, podendo propor internamente algumas das necessidades identificadas pelo terceiro setor.

De qualquer maneira, o simples fato de chamar para conversar e mostrar que valoriza a opinião e participação das ONGs e dos movimentos sociais já é um diferencial. "A constituição de um pacto social é uma novidade, pois temos um governo que não se afora tecnocraticamente dizendo que tem a solução para tudo. Ele propõe um método, que é o diálogo de diversos atores", lembra Cândido Grzybowski. Durão, da Abong, resume bem o que as ONGs podem esperar de fato do novo governo, mostrando-se ciente das dificuldades, porém valorizando a iniciativa da equipe do PT: "As ONGs esperam que o novo governo seja fiel a seu compromisso de mudança e estão conscientes de que há enormes obstáculos para a realização das expectativas e contradições entre objetivos de curto e longo prazo. Ainda candidato, Lula declarou em reunião com a Abong que em seu governo as ONGs seriam ouvidas em todas as etapas de formulação, implementação e controle social das políticas públicas e que não seriam ‘correias de transmissão das políticas do seu governo’, o que é muito bom. As organizações da sociedade civil podem contribuir para a construção do ‘pacto social’ ou de um novo ‘contato social’ com visões alternativas de desenvolvimento e seu acúmulo em relação às políticas públicas, mas não são atores de peso do ponto de vista do poder político para incidirem de forma decisiva nos acordos de curto prazo", analisa ele, desejando que o novo governo propicie parcerias estratégicas com as ONGs, superando, segundo ele, a prática neoliberal de falar em parcerias para justificar o recuo do Estado frente a suas responsabilidades sociais.

Duas formas de alavancar a atuação das ONGs no auxílio à solução de problemas sociais seriam o aproveitamento de algumas iniciativas bem sucedidas das mesmas e sua transformação em políticas públicas, quando fosse o caso e a criação de mais incentivos fiscais que ajudem as organizações a obterem financiamentos. Leilah aponta alguns dos mecanismos que considera interessantes – "o aprimoramento da legislação, o restabelecimento de incentivos fiscais para pessoas físicas doarem às instituições, abertura de canais mais amplos de financiamento, o aprimoramento da Lei das OSCIPs etc."

Ao que tudo indica, estas reivindicações também serão ouvidas pelo novo governo, pois Lula conta e quer ouvir a sociedade civil organizada. "Estamos em um momento particularmente propício, num momento raro na vida de um povo. Num momento em que o presidente da República tem consigo, ao seu lado, a vontade nacional [...] além do apoio da imensa maioria das organizações e dos movimentos sociais", declarou o pernambucano no dia 1º, para completar mais à frente: "Estamos começando um novo capítulo da História brasileira". Só esperemos que seja de um livro com final feliz.


Maria Eduarda Mattar

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