Autor original: Marcelo Medeiros
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No dia 5 de dezembro, jovens de São Paulo lançaram um manifesto (ver link ao lado) contra o modo que a televisão apresenta a periferia e seus moradores. As principais queixas são sobre a construção de estereótipos, o excesso de violência veiculado nas telas e a busca desenfreada pela audiência. Os autores do texto fazem parte do Centro Nacional de Formação Comunitária (Cenafoco), programa do Instituto Sou da Paz que reúne moradores de bairros pobres da capital paulista em cursos anuais.
São cinco grupos, cada um com 30 alunos em média, discutindo os problemas de suas comunidades com vistas a se tornarem lideranças. Durante as atividades do curso de formação de 2002, os jovens se uniram a alunos de um colégio particular, que por sua vez desenvolviam atividades com a ONG TVer. A partir daí, passaram a debater a programação televisiva e seu enfoque da periferia. Como atividade final do curso, a turma do Jardim Ângela - um dos bairros mais violentos da capital paulista, localizado na zona sul de São Paulo - decidiu escrever o manifesto e foi prontamente apoiada pelas demais. Foi feito também um abaixo-assinado, a ser passado aos moradores dos bairros participantes no programa do Instituto Sou da Paz.
Em entrevista à Rets, Josilandia Gonçalves, 21 anos, moradora do Jardim Ângela e participante do Cenafoco há sete meses, fala sobre o manifesto, mídia e preconceito.
Rets - Por que redigir um manifesto?
Josilandia – Porque chegar e mudar a situação atual da televisão é difícil. O manifesto é a melhor maneira de se mostrar contra o que está aí. Está tudo errado, até mesmo o uso da palavra periferia, que é tirada de seu contexto real. Imagine um cara que comete um assassinato. Para os programas, ele é só isso. Ninguém fala que ele não teve emprego e estudo e possui uma família desestruturada. Há também as conseqüências dessa imagem negativa. Vamos procurar emprego e dizemos que moramos em outro lugar, em algum bairro vizinho ao Jardim Ângela, que já foi considerado o mais violento do mundo. Mas aqui tem muita coisa boa, que não é mostrada.
Rets - O que a TV mostra?
Josilandia – Só a violência. Tenho críticas ao filme Cidade de Deus, aos programas Turma do Gueto e Cidade Alerta [ambos da Rede Record]. São produtos de muita audiência, que mostram a periferia de forma limitada e inclusive os periféricos gostam. O manifesto é para mostrar que não é preciso se esconder com vergonha do que aparece, você é o seu bairro.
Rets - Como encarar o fato de programas que denigrem a periferia serem muito assistidos por ela?
Josilandia – Falta consciência. A periferia é uma massa que pensa ‘tenho minha casa, minha família, minha televisão’. Mas o vizinho e o traficante do lado não importam. Alguns moradores acham bonito ver sua casa na TV, mesmo que seja em condições ruins. Não se importam muito com a mensagem. Mas quando o filho vai procurar um “trampo” [trabalho], a história é sempre a mesma - o bairro onde moram acaba fazendo diferença e operando negativamente.
Rets - Se o problema é falta de consciência, como fazer para a periferia conquistá-la?
Josilandia – Quando pensamos em fazer o manifesto, a idéia era não parar por aí. As emissoras passam a mensagem de que não interessa quem você seja, você precisa da televisão de qualquer forma. Muita gente acha divertida esta dependência. Não estamos falando para não assistir à televisão como solução. Afinal, se fizemos um manifesto contra o modo que a TV nos mostra é porque assistimos à programação. A diferença é que não concordamos. Queremos debater, fazer críticas à televisão. Se as pessoas passarem a assistir seus programas criticamente, estaremos satisfeitos.
Rets - Que tipo de crítica?
Josilandia – Não queremos deixar de assistir TV. É um trabalho muito grande. Veja a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), por exemplo; Muita gente não sabe o que é. No Jornal Nacional [da Rede Globo]falam de política internacional relacionada à Alca num bloco, mas não citam o nome do acordo. Em outras ocasiões, falam de importações, algo relacionado à Alca, mas não dizem nada. É a mesma informação, transmitida de diferentes maneiras.
Rets - E o abaixo-assinado?
Josilandia – Quando fizemos o manifesto, decidimos fazer também um abaixo-assinado para divulgar a idéia. Aí pensamos: "Qual vai ser nosso público-alvo? Gente como a gente?" Acho que só pessoas que pensem como nós não adianta. Vamos passar principalmente para crianças, que são quem vai sofrer com isso no futuro, e para os idosos, que são quem mais tempo passa em frente à TV.
Rets - Além da questão da vergonha - como no caso da busca de emprego, quando muitos dizem que moram em outro lugar - que efeitos a programação televisiva gera para a periferia?
Josilandia – Para a TV, todos os habitantes da periferia são malandros. Ninguém tem perspectiva de vida, todos falam alto etc. O manifesto é interessante porque veio daqui, da periferia. O meio televisivo cria imagens sem conhecer a realidade. Já tive seguranças andando atrás de mim em shoppings. Não sou negra – o que me daria muito orgulho se fosse -, não faço parte do estereótipo, mas mesmo assim, pelas roupas, jeito de andar, acabam me perseguindo. Ou seja, é o esteriótipo construído com ajuda da TV.
Rets - Como funcionaria o Código de Defesa do Telespectador que vocês porpõem?
Josilandia – No manifesto citamos um órgão de proteção do telespectador, um tipo de código de defesa, um ombudsman (ouvidor). Não é nada muito definido ainda. Só sei que o telespectador tem que ser ouvido. Talvez arrumar um advogado que corresse atrás de infrações. No lançamento do manifesto, muitos profissionais da mídia apareceram. Alguns acharam a idéia bacana, outros questionaram a viabilidade do projeto. Nosso objetivo agora é arrecadar o maior número possível de assinaturas.
Rets - Algumas emissoras vêm tentando colocar mais atores negros em papéis importantes - como de médicos, advogados etc - ao invés de sempre representarem papéis de empregados domésticos, motoristas, pessoas subalternas, enfim. Isso não é sinal de que as coisas estão melhorando?
Josilandia – Na novela [da Rede Globo] “O Beijo do Vampiro” há um médico negro. Todos os papéis são válidos. Um negro vai adorar ver outro em “papel de branco”. Mas acho que ele deve conquistar seu espaço por mérito e não para satisfazer pedidos. Não quero que haja negros na novela ou no jornal só para dizer que tem e as organizações pararem de perturbar. Sei que há muita gente boa e capaz de ter qualquer papel.
Rets - E como foi a experiência no Cenafoco?
Josilandia – Houve entrevistas para selecionar os participantes, mas eu entrei no programa indicada por um colega que trabalha no Instituto Sou da Paz. Não tinha idéia do que seria o curso. Duas vezes por semana nos encontrávamos para discutir cidadania, ler textos para entender melhor a comunidade. Depois fomos apresentados à equipe do TVer, do colégio Equipe, que é um colégio particular aqui de São Paulo. Ao final do curso, tínhamos que fazer um trabalho final. No caso da nossa turma, do Jardim Ângela, decidimos fazer um manifesto e as outras turmas também toparam.
Rets - O Equipe é um colégio particular, de classe média. Como foi o encontro de vocês, jovens da periferia, com eles?
Josilandia – Posso dizer que aprendemos com eles e eles muito mais com a gente. No primeiro encontro rolou um “climão”, um estranhamento. Cada grupo ficou num canto da sala, sem se olhar nem falar com o outro. O preconceito é mútuo, para ser sincera. "Boyzinho" é boyzinho, periferia é periferia e cada um na sua. Apesar da distância, nos descobrimos: as idéias batem, acabamos nos entrosando, tudo correu bem e os preconceitos caíram.
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