Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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O novo Código Civil brasileiro não é a única novidade, na área de Legislação, a trazer propostas de alterações legais que podem representar mudanças para as organizações não-governamentais. Dois projetos-de-lei (PL) que tramitam no Senado Federal pretendem regular e estabelecer novas normas para as ONGs – porém, fazem mais barulho do que efeito. Trata-se do PL 246/2002, de autoria do senador Mozarildo Cavalcanti (PFL/RR), presidente da recém encerrada CPI das ONGs, e do PL 227/1999, cujo autor é o senador Sebastião Rocha (PDT/AP). “No que eles tentam inovar, são inconstitucionais; no que tentam legislar, não inovam, repetem outras normas, porém com uma redação piorada”, define Eduardo Szazi, consultor jurídico do Grupo de Instituto, Fundações e Empresas (Gife).
O equívoco comum aos dois PLs que mais chama atenção é o fato de exibirem o termo ONG nas suas redações. “ONG não é uma figura jurídica. Existem associações e fundações. Eles pretendem regulamentar uma personalidade jurídica – ONG – que não existe”, enfatiza Paulo Haus Martins, consultor jurídico da RITS. Além destes, acumulam-se outros artigos escritos errada e ineficazmente.
O projeto-de-lei 246, de Mozarildo, parece ser uma conseqüência direta de seu trabalho à frente da CPI. Porém, ao tentar estabelecer aquilo que seriam regras mais rígidas para as organizações da sociedade civil, o senador escorrega já no artigo 1º, limitando de modo extremo a amplitude seu projeto. Diz o artigo: “Considera-se, para os efeitos desta Lei, organização não-governamental (ONG) a entidade enquadrada na Lei nº 9.790. de 23 de março de 1999”. A lei a que o artigo se refere é a que institui o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) – um título opcional para as organizações brasileiras. Hoje no Brasil, dentro de um universo estimado em cerca de 70 mil ONGs que trabalham pela promoção e garantia de direitos, menos de mil têm tal título. Ou seja, mesmo que sua proposta, apesar das controvérsias que pode gerar, seja aprovada, teria um universo de atuação muito limitado – onde se constata parte da ineficácia do PL.
“Se a intenção do projeto de Lei é ‘estabelecer condições para o registro, funcionamento e fiscalização das organizações não-governamentais’, deveria ter em mente o grande universo das associações e fundações brasileiras e não associar esse projeto de Lei a um termo sem ‘expressão jurídica’, que além disso, é equiparado a uma qualificação conferida pelo poder público através da 9790/99” diz Alexandre Ciconello, assessor jurídico da Associação Brasileira de ONGs (Abong) .
O artigo 2º prevê: “Em nenhum caso serão oferecidos à organização constituída no exterior direitos mais amplos a qualquer título, que os atribuídos às pessoas jurídicas consultadas sob a lei brasileira”. Isto já não ocorre. As organizações estrangeiras que querem atuar no Brasil dependem de autorização do governo brasileiro, cuja aprovação é dada pelo Presidente da República. Antes desta permissão, é demandado da embaixada brasileira no país de origem da entidade que investigue a mesma para que tal autorização seja concedida. Ou seja, o artigo prevê o que já acontece e ignora o rigor que já é aplicado à aprovação e funcionamento das ONGs estrangeiras no Brasil.
Os artigos 3º e 4º versam sobre a necessidade de “registro prévio” da ONG em “órgão governamental competente” e sobre o dever de as ONGs prestarem esclarecimentos acerca de suas “fontes de recursos, linhas de ação, tipos de atividades,[...], política de contratação de pessoal” etc. Segundo Alexandre Ciconello, estes artigos são uma das maiores expressões de inconstitucionalidade do projeto: “Toda associação ou fundação para iniciar suas atividades deve-se registrar no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, que é o órgão público competente para tal registro, segundo a Lei 6015/73 (Lei de Registros Públicos) e de acordo com as Leis de Organização Administrativa e Judiciária dos Estados e do Distrito Federal; além disso, as organizações já prestam contas a diversas instâncias: à Receita Federal, por terem CNPJ; aos Cadastros de Registros Mobiliários municipais, para se estabelecerem em um espaço físico, entre outros mecanismos de registro, transparência e prestação de contas.” No caso das Fundações, as mesmas dependem de atorização do Ministério Público para serem criadas e são auditadas pelo mesmo órgão em todas as suas atividades.
Para Ciconello, o mais importante, no entanto, é mostrar a inconstitucionalidade dos artigos. “Esta redação da lei vai contra o artigo 5º da Constituição Brasileira, que garante que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”
Além disso, o artigo 5º da Constituição também garante que as associações só poderão ser dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, transitada em julgado, o que anularia o previsto no artigo 7º do PL 246 e o torna, também, inconstitucional: “A qualquer tempo, de acordo com a conveniência do órgão competente, a autorização de funcionamento de ONG poderá ser cassada se ela descumprir requisitos legais ou atentar contra a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes”. Esclarece Paulo Haus: “O texto do PL diz basicamente que é ilegal quando for ilegal. Qualquer instituição – governamental ou não, com ou sem fins lucrativos - que atentar contra a ordem pública, os bons costumes e a soberania nacional será punida nos termos da legislação brasileira. Além disso, uma nova lei não pode contradizer o que está previsto na Carta Magna brasileira. Ou seja, não poderá ser cassada a autorização de uma organização sem um julgamento.”
O senador Mozarildo Cavalcanti foi procurado desde o início de dezembro para comentar sobre o PL 246. Em nenhum momento respondeu às tentativas da redação da Rets.
PL 227 pretende regulamentar ação das organizações estrangeiras
O outro projeto-de-lei que tramita no Senado e diz respeito às organizações não-governamentais, mais especificamente as estrangeiras, é o de número 227, proposto pelo senador Sebastião Rocha em 1999. Os 13 artigos da proposta se dedicam a regular as atividades das ONGs estrangeiras no Brasil. Porém, o PL 227 incorrem em erro grave: se forem estrangeiras e tiverem a autorização do governo federal para atuarem no país, as instituições continuam sujeitas às leis de seu país de origem no que se refere a regras de registro e funcionamento – e no Brasil já existe a norma “Autorização para funcionamento no Brasil de Sociedades Civis, Associações e Fundações Estrangeiras”, do Ministério da Justiça.
Se forem instituições brasileiras e parte de redes internacionais, como é o caso do Greenpeace Brasil e do WWF Brasil, são organizações brasileiras como outra qualquer e estão sujeitas à legislação brasileira – o que significa, antes de mais nada, que estão sujeitas à Constituição brasileira. Sendo assim, muitas das regras que estabelece o PL 227 na intenção de regular as ONGs estrangeiras no Brasil desrespeitam, assim como o 246, a Constituição, que determina, é bom repetir, que é “vedada a interferência estatal” na criação de associações.
“Com a autorização, a entidade não perde o seu caráter de estrangeira. Quaisquer prerrogativas conferidas às associações nacionais, que forem além do regime comum de direito privado, somente serão extensíveis às associações ou fundações estrangeiras autorizadas se houver reciprocidade de tratamento nos seus países de origem para as associações ou fundações brasileiras, ressalvados os casos em que a lei brasileira não permitir, expressamente, a concessão da vantagem ou prerrogativa (como é o caso, por exemplo, da declaração de utilidade pública federal Lei 91/35)”, esclarece Ciconello. Já Szazi acredita que “naquilo que pretende legislar sobre as organizações estrangeiras, o projeto-de-lei do senador Sebastião Rocha de certa forma repete o que está presente na Lei de Introdução ao Código Civil, que trata, entre outras coisas, das organizações estrangeiras e que não foi revogada com a entrada em vigor do novo código, agora em janeiro”.
O que estes projetos-de-lei podem significar na prática?
Se aprovados, os PLs podem ter alguma conseqüência prática para as ONGs? “O efeito deve ser muito mais o de assustar. Muitas organizações vão correr para se registrar nos tais ‘órgãos competentes’ que prevê o PL 246. Farão isso para não terem problemas, para se resguardarem”, acredita Paulo Haus. Szazi destaca a importância de que tais projetos não sejam aprovados, não pela burocratização que representam, mas porque “eles violam garantias constitucionais dadas às associações”.
O anacronismo e inconformidade dos projetos-de-lei acabam por revelar que os legisladores brasileiros que se propõem a elaborar leis para o terceiro setor não estão cientes dos aspectos e características do mesmo na atualidade. Para Ciconello, da Abong, isto é o “indicativo de que existem parlamentares que pensam deste modo”, pouco inteirados sobre as próprias leis brasileiras e sobre o terceiro setor. Szazi concorda – “estes dois PLs mostram que há senadores alheios ao debate legislativo do terceiro setor no país”.
Tanto para Haus, quanto para Ciconello e Szazi, não são necessárias novas leis para regular, criar novos órgãos de controle e, assim, burocratizar o terceiro setor. “Se há algo a ser feito, é a melhor aplicação das leis. Isto é um problema tipicamente brasileiro: é fácil fazer leis, difícil é fiscalizar”, defende Eduardo Szazi. Para ele, “as normas já existentes são extremamente detalhadas, regulam o fluxo de divisas bens e pessoas e são muito melhores que estes dois PLs”.
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