Autor original: Julio Cesar Brazil
Seção original: Artigos de opinião
Graciela Selaimen*
"No princípio, era o Verbo."
A despeito de qualquer interpretação religiosa, a afirmação com a qual o apóstolo João abre seu relato no Evangelho deixa perceber que a palavra - ferramenta da individuação que revela a expressão da vontade - é a chave que abre a porta para um entendimento de mundo. João não se refere apenas ao entendimento que predomina (no Ocidente em especial) nestes dois milênios de tradição judaico-cristã, mas se remete ao princípio - à origem do mundo, muito antes que alguém pudesse contá-lo e ordená-lo em tempos e teogonias.
Sem o verbo, sem a palavra, sem a expressão do desejo, sem a comunicação da vontade, não há mundo e não há indivíduo. Não há ordenamento no caos de todas as possibilidades, não há relação - que se constrói a partir da palavra e se consolida em Comunicação. Comunicar-se é ao mesmo tempo estabelecer uma diferenciação entre mim e o outro, experienciar episódios de re-conhecimento, encontrar pontos de interesecção, estabelecer identificações - não importa qual seja a linguagem. Comunicar-se é mais que direito: é necessidade.
Da necessidade ao direito
Sendo a Comunicação uma necessidade humana que, uma vez não atendida, põe em risco a manutenção da vida e o bem-estar do indivíduo, evidentemente é um direito - fundamental e inalienável, que permeia todos os outros direitos humanos e é condição primordial para o exercício destes.
Saindo da reflexão em torno dos textos tradicionais e da construção de sistemas de pensamento - que dá margem a investigações instigantes e busca de significados, mas não é o objetivo deste texto -, é interessante identificar momentos de afirmação do direito à Comunicação, fazendo um apanhado da história recente.
Há mais de 50 anos o direito à Comunicação é reconhecido no ordenamento jurídico em diversas instâncias. A ONU, em dezembro de 1946, "reconhece a importância transversal da comunicação para o desenvolvimento da humanidade, enquanto
um direito humano fundamental - no sentido de básico - por ser
pedra de toque de todas as liberdades às quais estão consagradas as Nações Unidas...fator essencial de qualquer esforço sério para fomentar a paz e o progresso no mundo..."¹ . Vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 19º afirma que "todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão".
A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, em seu artigo 13º reafirma a Comunicação como um direito quando determina que "toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Este direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha". A Convenção também introduz a noção da responsabilidade do ato de comunicar, ao expressar que "o exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; (...)". Estende-se, desta forma, a idéia da Comunicação como um direito individual, para a percepção de que se trata de um direito também social, ao qual correspondem deveres para com o conjunto da sociedade e consequências, em caso de abuso.
No ordenamento jurídico brasileiro, especificamente a Constituição de 1988 afirma no Título II (Direitos e Garantias Fundamentais), capítulo I (dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) inciso IX do artigo 5o que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Mais adiante, no título VIII (que trata da Ordem Social), o capítulo V é dedicado à Comunicação Social, mas desta vez o legislador concentra-se mais sobre normas do que sobre princípios. O interessante é ressaltar que a Comunicação consta na Constituição Federal como um direito fundamental que deve ser garantido.
Tendências da modernidade e depois
Apesar da preocupação de organismos internacionais que atuam na área dos direitos humanos e mesmo de legisladores em situar a Comunicação como direito fundamental e assegurá-lo através do ordenamento jurídico, as forças do mercado e a ordem dominante - que vem, num
crescendo, impondo os interesses econômicos acima dos interesses humanos - têm os meios de comunicação como um de seus principais instrumentos. A capacidade de convencimento e sedução da mídia permite que o discurso dominante imiscua-se de tal forma nas mais diversas culturas, que cria uma cultura própria - convencendo indivíduos de que antes de qualquer coisa, são consumidores e estabelecendo padrões de comportamento fora dos quais a saída é o exílio no deserto do não-pertencimento.
Da mesma forma que outros direitos humanos, o direito à Comunicação é constantemente violado, em função de interesses comerciais e de exercício de poder. A diversidade cultural, a livre expressão de pessoas e comunidades, a autenticidade, o fortalecimento de identidades locais, o acesso a canais de comunicação são valores e direitos massacrados em benefício de "verdades" fabricadas/simuladas por umas poucas empresas que decidem e impõem padrões estéticos, culturais, de consumo, de comportamento e mesmo modelos de relações humanas - que devem valer para todas as pessoas, em todo o planeta. Essa violência vem fantasiada de cultura, moda, notícia ou entretenimento, que estabelecem um cenário para o mundo e determinam se há guerra ou paz, se cada um de nós é feliz ou não, em última instância. Discordar dessa lógica é muito arriscado. O preço, mais uma vez, é a radicalização da exclusão.
A preocupação com o papel que a mídia vem desempenhando no fortalecimento de mecanismos de dominação e na formulação de um discurso único em detrimento da diversidade e da pluralidade estimulou organizações e ativistas na área da Comunicação oriundos de diversos países a criarem, no final de 2001, a Plataforma pelo Direito à Comunicação. Sean Ó Siochrú, um dos iniciadores da Plataforma, afirma: "Preocupam-nos algumas tendências na mídia e na comunicação como a concentração da propriedade, a crescente dominação de um modelo comercial, redução no espírito de serviço público, a dominação da mídia em países pobres por organizações estrangeiras motivadas por interesses econômicos, a paulatina eliminação de regulamentação a partir de um interesse público etc. Estas tendêcias implicam em enormes riscos que geralmente não são reconhecidos na relação com o desenvolvimento cultural, econômico e social"²
É lamentável descrever um cenário tão sombrio, mas cabe a quem escolheu a Comunicação como ofício tomar para si o dever de resgatar o direito, na medida do possível, na prática diária do trabalho com informação. E ampliar o esforço na tentativa de sensibilizar todos os que se dedicam à defesa da democracia, à conscientização sobre o exercício da cidadania, à formação de indivíduos críticos e conscientes.
Como afirmou Osvaldo León, da Agência Latino-Americana de Informação, em uma das conferências do Fórum Social Mundial de 2002, "deve ser articulada uma agenda social da comunicação, uma vez que esta é uma problemática de cidadania e democracia. Atualmente, no campo da Comunicação, o que conta é a lucratividade e não o interesse público. Este não é um assunto que deve ficar restrito aos profissionais de comunicação, mas deve, sim, envolver diversos atores preocupados em garantir que a comunicação seja tratada como um direito básico e necessário para o exercício de outros direitos humanos".³
No momento em que governos, 'empresas e organizações da sociedade civil se preparam para a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação4 - que acontece em dezembro de 2003, em Genebra, e em 2005, em Túnis - mais do que nunca é urgente estimular o debate em torno do tema Comunicação e suas implicações na conformação de um novo modelo de sociedade. Para aglutinar idéias e ações neste sentido, foi lançada a Campanha CRIS (em inglês, Communication Rights in the Information Society)5. Criada na mesma reunião que deu origem à Plataforma pelo Direito à Comunicação, a campanha surge com o objetivo imediato de articular organizações da sociedade civil e ativistas em todo o mundo, para garantir a defesa dos valores humanos e dos interesses dos cidadãos e dos processos democráticos na Cúpula da ONU. Os participantes da campanha - que está aberta para todos os interessados neste movimento - têm buscado incidir sobre a pauta do evento e garantir a participação efetiva da sociedade civil organizada nos processos preparatórios e na Cúpula, propriamente dita.
Está claro que é urgente a mobilização em torno da defesa do direito à Comunicação, mas também fica claro para os que se empenham nesta tarefa de que se trata de um grande desafio. Sensibilizar indivíduos e organizações sobre esta questão é mais difícil que mobilizar para a defesa de outros direitos humanos. A Comunicação ainda é vista como uma questão menos urgente - quando chega a ser cogitada - por governos e sociedade civil. A luta por este direito ainda é incipiente e é fundamental que todas as organizações da sociedade civil e pessoas dedicadas ao fortalecimento da cidadania - e não apenas aquelas dedicadas aos temas de mídia e comunicação - voltem sua atenção e uma parcela de seus esforços para garantir que o direito à Comunicação seja preservado.
"É preciso fazer a crítica consciente das ideologias podres; do capitalismo selvagem que está fundado no egoísmo e na competição dentro de cada um de nós; a crítica dos interesses comerciais e financeiros que movem a pseudo-cultura que circula nas rádios e TVs; é preciso fazer a crítica da burocracia abominável que engessa a criatividade e a alegria; a crítica às hipocrisias e ao cinismo que impedem que se possa falar o que se pensa, impedem que os dogmas sejam desmascarados. É preciso ousar mais. Para explorar outros assuntos diferentes dos clichês que saturam a grande mídia. Para aprofundar a análise dos temas, analisando o contexto, discutindo as causas e possíveis soluções. É preciso, antes de mais nada, ter coragem para se fazer a autocrítica, para debater publicamente que a miséria social (que só aumenta no mundo) tem sua origem no nosso egoísmo e na nossa vaidade.
Para pensar e discutir outro mundo, com mais solidariedade, mais respeito e mais paz, é preciso a coragem dos comunicadores.
Cor-Agem: Ação que vem do coração."
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* Graciela Selaimen é coordenadora da área de Informações da RITS - Rede de Informações para o Terceiro Setor. Este texto foi publicado originalmente no Manual de Redes Sociais e Tecnologia, publicação realizada pela Conectas Direitos Humanos Universais e pela Fundação Friedrich Ebert.
1 - Marcos Navas Alvear, Derechos fundamentales de la comunicación: una visión ciudadana, Quito, Ediciones Abya-Yala, 2002, p. 45.
2 - Em entrevista à Rets, janeiro de 2002 – http://rets.rits.org.br
3 - Rets, Cadernos Especiais, fevereiro de 2002
4 - Ver em http://www.itu.int/wsis
5 - Ver em http://cris.comunica.org/home_es.htm
6 - Ver em Feijão – conteúdos para comunicação – http://www.rbc.org.br/feijao
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |