Autor original: Julio Cesar Brazil
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Desde a Guerra do Golfo, há 11 anos, vêm crescendo os casos de câncer - desde leucemia até câncer na tireóide -, defeitos de nasceça e disfunções de fígado e rins entre a população iraquiana. As crianças são as mais atingidas. A provável causa é a utilização, por parte das tropas norte-americanas, de armas de urânio decaído - um material radioativo e altamente perigoso se ingerido ou respirado. A Campanha para Banir as Armas de Urânio Decaído se propõe a lutar para que estes armamentos não sejam mais usados pelo exército americano - que as empregou também em Kosovo e suspeita-se que tenha utilizado no Afeganistão. Atualmente, os principais esforços da campanha são para lançar luz sobre a questão e mobilizar o máximo de pessoas possível para que se manifestem contra o uso das armas de urânio decaído. A estratégia consiste na difusão e venda do livro "Uma guerra nuclear diferente - as crianças da Guerra do Golfo", organizado por Takashi Morizumi (também da campanha) e a montagem de exposições de fotos que documentam as doenças em crianças e a falta de quipamentos e remédios enfrentadas por médicos em um país que sofre com sanções.
A Rets conversou sobre o assunto com o americano Steve Leeper, diretor-executivo da Global Peacemakers Association Atlanta, que está gerenciando as atividades da campanha nos EUA. A iniciativa surgiu através da sede da instituição, localizada em Hiroshima, Japão. Ele destaca a importância de levantar este tema agora, em um momento em que os EUA ensaiam um novo ataque ao Iraque - quando podem usar, de novo, armas com urânio decaído.
Rets - O que são as armas de urânio decaído e como elas agem?
Steve Leeper - O Urânio na natureza tem uma série de isótopos e os principais são o U-235 e o U-238. O U-235 é o que pode ser usado para bombas ou reatores de energia. Para estes fins, o urânio tem que ser "enriquecido". Isso significa tirar o 1% que é U-235 e deixar de lado os 99% que são U-238. Até bem recentemente o isótopo U-238 era descartado e estava apenas se empilhando como um lixo radiotivo de baixo risco em usinas nucleares em todo o mundo.
No entanto, os militares descobriram que o U-238 podia ser usado em armas. Isso solucionaria parte do problema sobre o que fazer com todo o lixo radioativo e pouparia muitos gastos com materiais para armamentos. Além disso, o U-238 resulta em uma ótima arma. Tem quase o dobro do peso de chumbo, o que significa que chega mais longe e atinge com mais força do que outras balas (penetrantes). Outra coisa que ajuda é o fato de pegar fogo no impacto. Dessa forma, quando um grande projétil com urânio decaído atinge um tanque, ele literalmente vai derretendo seu caminho dentro do tanque e põe fogo no seu interior. Também por causa da alta densidade do urânio decaído, ele representa um ótimo escudo, tanto que hoje em dia a maioria dos tanques norte-americanos têm proteção deste material.
O problema é que, quando o urânio decaído atinge algo com força e começa a queimar, ele cria uma nuvem de pó de óxido de urânio que paira no ar e depois se deposita nos tanques, corpos, roupas e no chão em torno do tanque. O perigo é que cada partícula naquela nuvem de urânio é radioativa. O governo norte-americano alega que o urânio decaído é seguro pois emite somente radiação alfa, e partículas alfa são detidas pela pele. Assim, segurar uma arma de urânio decaído não é perigoso. Entretanto, respirar partículas de urânio decaído é extremamente perigoso. Uma vez tendo entrado no seu corpo, as partículas de urânio decaído são mortais. Elas são muito mais pesadas do que partículas beta ou gama, portanto não vão longe, mas fazem mais estrago às células próximas de onde se encontram. Além disso, o urânio decaído é um metal pesado, quimicamente tóxico e radioativo. Assim, do mesmo modo que você pode ser envenenado por chumbo, você pode ser envenenado por urânio decaído ao respirar as partículas ou ao tocar um tanque destruído por urânio decaído e depois lamber seus dedos.
Soldados norte-americanos e britânicos que se movimentaram nos campos de batalha da Guerra do Golfo levantaram muita poeira de urânio e respiraram ou ingeriram o pó. Isso explica porque muitos deles têm altos níveis de urânio em seus corpos, o que causa toda sorte de problemas físicos. Uma razão de ser tão difícil comprovar essa teoria é o fato de a radiação poder chegar até as pessoas das mais diferentes maneiras. Pode-se ter problemas respiratórios, disfunções nos rins ou fígado, dor nas juntas, leucemia, câncer nos ossos, nos pulmões etc. É um problema extremamente peculiar e requer equipamentos e técnicas sofisticadas para investigação e até agora o governo dos EUA tem sido extremamnte resistente em fazer uma investigação mais séria. Assim, neste ponto não temos nenhuma prova precisa de que o urânio decaído é responsável pela Síndrome da Guerra do Golfo ou por todos os diferentes tipos de câncer e defeitos de nascença no Iraque. Mesmo assim, o urânio decaído é o principal suspeito. Por falar nisso, é importante comentar que centenas de milhares de soldados americanos estão doentes, e sete mil ou mais já morreram. Mais pessoas morreram por causa de urânio decaído depois da guerra do que na própria guerra.
Rets - Onde este tipo de arma está sendo usado - ou onde foi usado ao longo os últimos anos? Quais são os países que produzem e usam armas de urânio decaído?
Steve Leeper - As armas de urânio decaído foram usadas pela primeira vez durante a Guerra do Golfo, em 1990-91. No mínimo 320 toneladas (alguns falam em 800) foram usadas no Iraque. É uma quantidade muito grande. Para se ter uma idéia, a liberação de apenas alguns gramas deste material foi suficiente para fechar uma fábrica em Massachussetts. Os militares também admitem terem usado em Kosovo. Eles não confirmam ou negam terem usado no Afeganistão, mas muitas pesoas acreditam que sim. Eu li artigos na Internet relatando estranhas disfunções de saúde observadas no Afeganistão que são típicas da contaminação por urânio decaído, mas eu realmente não posso afirmar com certeza.
Até onde sei, os EUA são o único país que produz estas armas. Na Guerra do Golfo, tanto tropas americanas quanto inglesas usaram as armas. Alguns especialistas afirmam que equipamentos que utilizam urânio decaído já foram vendidos para cerca de 17 nações. Ao que tudo indica, vários outros países possuem os armamentos hoje em dia. Então, de agora em diante, sempre que houver guerras com tanques envolvidos, provavelmente haverá contaminação por urânio decaído.
Rets - O livro "Uma guerra nuclear diferente - as crianças da Guerra do Golfo", organizado por Takashi Morizumi, mostra uma realidade impressionante, ainda desconhecida pelo mundo - os efeitos das armas radioativas (especialmente em crianças) 11 anos depois de terem sido usadas no Iraque. Você pode nos falar um pouco sobre estes efeitos e a falta de recursos enfrentada por pais e médicos no combate aos males causados pelas armas de urânio decaído?
Steve Leeper - Médicos iraquianos têm notado já há algum tempo aumentos fora do comum nos casos de leucemia, câncer na tireóide, nos pulmões, de mama e defeitos de nascença. Em Hiroshima e Nagasaki ficou provado que estas doenças foram causadas pela radiação. Alguns dizem que os iraquianos estão supervalorizando e aumentando o problema como uma forma de macular a imagem dos EUA, mas repórteres japoneses (inclusive o Morizumi) acreditam que os médicos não estão trabalhando "para" o governo e confiam no que eles alegam.
A situação se complica muito devido à falta de medicamentos e equipamentos. Um recente programa de TV mostrou um repórter norte-americano que afirmava que os médicos iraquianos estão tentanto fazer tudo parecer pior, porém um jornalista japonês alegava ter testemunhado o penoso estado dos equipamentos nos hospitais. É razoável pensar que as sanções prejudicam o Iraque na obtenção de qualquer coisa para o tratamento de câncer - e todos concordam que o país em geral está sofrendo bastante com as sanções. Um repórter de Hiroshima que eu conheço me contou sobre ter presenciado a frustação de médicos lutando contra a situação. Ele não acredita que os médicos estejam falando por propaganda política. Eles estão sofrendo como seres humanos pela incapacidade de ajudar seus pacientes. Eu pessoalmente acredito nos repórteres japoneses que conheço, que contam como é difícil a obtenção de medicamentos - o que significa que os hospitais estão sobrecarregados com pacientes doentes, muitos deles crianças, a quem não se pode tratar apropriadamente pela falta de remédios e equipamentos. Todos que vão ao Iraque vêem a mesma realidade. A questão é: isto é real ou uma fabricação? Eu acredito que os fatos do caso estão documentados no livro de Morizumi. Mesmo que as estatísticas sejam de alguma maneira exageradas, parece inquestionável que o câncer e os defeitos de nascença cresceram drasticamente desde a Guerra do Golfo - e o urânio decaído é a melhor explicação.
Rets - Você pode nos contar um pouco sobre a Campanha para Banir as Armas de Urânio Decaído? Quais são os principais objetivos e atividades da campanha e que organizações estão envolvidas?
Steve Leeper - A campanha se concentra em tentar banir as armas. Já banimos armas químicas e biológicas. Mais recentemente banimos minas terrestres. Obviamente, as armas de urânio decaído são totalmente ilegais frente a qualquer regra do Direito internacional. Não há desculpa para o uso de uma arma que provoca aumento de casos de câncer e defeitos de nascença na população muitos anos depois de a guerra já estar encerrada. Apesar de isto poder ser considerado um crime de guerra, nós não estamos tentando fazer nada além de conseguir que sejam banidas. Nossa estratégia tem sido tentar jogar luz sobre a questão nos EUA. Acreditamos que se um número suficiente de americanos souber o que está acontecendo, eles vão se pronunciar e demandar o banimento das armas. Nós também vamos atuar eventualmente no resto do mundo porque é provável que se consiga formar uma grande coalizão internacional para pressionar pelo banimento. Como fizeram quando se baniu as minas terrestres, os EUA podem ignorar - mas nós queremos ao menos forçar aos EUA a fazerem isto sabendo da objeção do resto do mundo. Um dia, isto pode ajudar a forçar o país a arrumar sua bagunça.
Nossos ativistas estão limitados a imprimir os livros e usar todos que conhecemos para tentar vendê-los. Também estamos ajudando a montar exposições de fotos - já tivemos três na Califórnia até agora e um set de fotos está sendo encaminhado para Chicago, onde vão ficar até 10 de fevereiro. Depois, irão para Atlanta. É impressionante quantas pessoas leram o livro e decidiram que têm que fazer alguma coisa a respeito. O que elas fazem é encomendar um monte de livros e distribuem ou vendem a todos que conhecem. Não se trata de uma ação organizada. Simplesmente está acontecendo. Muitas livrarias, organizações pela paz, instituições iraquianas de advocacy, entre outras, entraram em contato e encomendaram livros, mas não sabemos o que estão fazendo. Em setembro passado eu tinha 2.800 cópias do livro. Agora tenho uma. Espero conseguir mais, pois estou recebendo solicitações a todo momento.
Não há nenhuma outra organização envolvida. A Global Peacemakers Association Atlanta está gerenciando as atividades nos EUA, mas somos uma organização nova que conta com apenas cinco pessoas no momento. Muitas pessoas estão participando individualmente porque se sensibilizam com as fotos. Neste ponto, estamos apenas difundindo o livro e procurando por aliados. Esperamos transformar nossa ação em um esforço mais organizado de lobby nas Nações Unidas ou no governo norte-americano. Mas ainda estamos conhecendo as pessoas e construindo nossa rede de trabalho.
Rets - Nós estamos em um momento especialmente delicado - o Congresso norte-americano aprovou uma resolução garantindo ao presidente Bush poder para atacar o Iraque sem consulta. Quais são as possibilidades de que o exército dos EUA use armas de urânio decaído? O que os ativistas e as ONGs podem fazer para mostrar aos EUA e ao resto do mundo a urgência de lutar contra este tipo de arma?
Steve Leeper - Tem um grupo de Hiroshima no Iraque agora investigando a situação. É uma certeza virtual que os EUA vão atacar o Iraque e usar mais armas de urânio decaído, prejudicando seriamente ainda mais a população que já sofre bastante. O mais importante é gerar discussão em torno disto. A maioria dos americanos nunca ouviu falar em urânio decaído. Precisamos fazer manifestações sobre o assunto, pois este é um ponto onde o complexo industrial militar norte-americano é muito vulnerável. O que eles fizeram foi criminoso, atroz e cruel. Nós precisamos de alguma forma fazer com que cada cidadão dos EUA saiba o que está acontecendo. Também precisamos pressionar pela realização de investigações científicas decisivas para provar quão perigoso o urânio decaído é.
Rets - Como as pessoas podem se envolver na campanha? Vocês apóiam ou estimulam a multiplicação da iniciativa em outros países?
Steve Leeper - Pretendo partir para um tour de palestras na Inglaterra agora em 2003. Há muitos veteranos da Guerra do Golfo por lá que estão cheios de urânio e doentes. Nós enviaremos livros para qualquer lugar que se peça e, se possível, apoiaremos a realização de exposições de fotos. Temos dois conjuntos de 50 fotos, mas estão comprometidas por algum tempo com pessoas aqui nos EUA. Seria o ideal se pessoas em outros países comprassem suas próprias fotos e fizessem suas exibições. Nós ajudaremos do melhor modo que pudermos, mas já gastamos muito com as nossas próprias fotos e na impressão dos livros. O que nós precisamos é que as pessoas organizem reuniões para esclarecimento sobre urânio decaído e consigam que outras pessoas façam o mesmo. Precisamos de doações para outras exposições de fotos e que as pessoas discutam o assunto o máximo possível - presencialmente, na Internet, como puderem.
Rets - Existe alguma ação para ajudar as crianças iraquianas? O que pode ser feito para ajudá-las? Existe algum grupo articulado em torno desta questão?
Steve Leeper - Além da nossa campanha, os grupos que estão se esforçando para ajudar o Iraque são o Voices in the Wilderness e o International Action Center. Ambos estão lutando contra as sanções e enviando pessoas para o país para testemunharem e tentarem prevenir os bombardeios. Na verdade, muitos deles chegam a levar objetos para o Iraque e doam para as pessoas com necessidades - mas seus esforços são apenas uma gota no oceano. Hoje em dia há muitas pessoas atuando no combate às sanções e tentando prevenir a próxima guerra. Não há palavras para enfatizar suficientemente como é importante que as pessoas - mais especificamente os cidadãos norte-americanos - escrevam para os representantes do Congresso, para o presidente e participem de encontros, manifestações, marchas e comícios nas comunidades em que vivem. Nós precisamos trazer milhões de pessoas para as ruas. Qualquer coisa que cada um puder fazer para ajudar nisso será mais do que bem-vindo.
Tradução: Maria Eduarda Mattar
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