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Catando dignidade

Autor original: Julio Cesar Brazil

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Os participantes do I Congresso Latino-americano de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis mostraram que representam muito mais que trabalhadores lutando pela sobrevivência - como normalmente são enxergados. Discutiram organização dos movimentos nacionais, seu papel nas políticas de resíduos sólidos dos municípios, reciclagem de lixo, montagem de centrais virtuais de vendas, entre outros temas. Do congresso - realizado de 20 a 23 de janeiro e encerrado oficialmente na marcha de abertura do Fórum Social Mundial - ficou a certeza de que os catadores e catadoras de diversos países da América Latina não estão sozinhos em suas demandas e reivindicações e que é preciso se unir para concretizar as metas. É o que conta Alexandre Camboim, membro do Movimento Nacional dos Catadores (organizador do evento), em uma entrevista realizada minutos após a marcha do dia 23, em meio a gritos de guerra, despedidas e reafirmações de compromisso com o movimento.

Rets - Este congresso foi o primeiro congresso latino-americano. Qual a importância dessa troca de experiências?

Alexandre Camboim - Sobretudo enxergarmos como estão os companheiros da Argentina e do Uruguai, que estão em condições muito precárias. Os catadores do Uruguai estão catando para comer. Catam restos de comida e enchem o carrinho para levar para a família, ou seja, não pegam somente o cartão (papelão). A situação de miséria é grande. A repressão também. Por exemplo: na Argentina, em Buenos Aires, o governo, juntamente a uma multinacional, resolveu fazer o uso do comércio do material reciclado proveniente do lixo. Cresceu o olho. Uma multinacional quer utilizar isto porque com aquele problema econômico deles [a crise Argentina], o cartão teve uma alta tremenda e coletar este material dá um pouco mais de dinheiro. Então eles tentaram proibir os catadores de continuarem fazendo o serviço que sempre fizeram. Em vez de valorizar, de estabelecer novas formas de contrato, eles fizeram o contrário. Houve grandes conflitos na Argentina e no Uruguai por causa desta tentativa de repressão. Então, há bairros inteiros que proíbem os catadores porque são bairros de classe média ou têm um pouco de comércio e não querem que os catadores peguem este material. Acontece muita repressão – o que é ridículo. O mais interessante portanto é fazer a articulação, dar força ao movimento. Na América Latina, o Brasil é o país com mais força neste movimento.

Rets - Um dos pontos discutidos no Congresso foi a participação do catador ou da catadora nas políticas de resíduos sólidos. Como foi a discussão?

Alexandre Camboim - O nosso objetivo maior é gestão integrada e o controle da cadeia produtiva. O controle da cadeia produtiva para nós começa no trabalho que é feito pelos catadores nas ruas: catando, recolhendo, fazendo coleta seletiva na prática. Esse trabalho já data mais de 50 anos. Por exemplo: hoje nós tínhamos uma companheira de 70 anos puxando um carrinho na frente da coluna, mas ela estava até então no Congresso Latino-americano e caiu doente de fraqueza. Agora já está recuperada e estava puxando um carrinho na marcha [de abertura do Fórum Social Mundial]. São pessoas que há muito e muitos anos vêm contribuindo para a redução do volume do lixo nas cidades.

Rets - O que precisa ser feito no âmbito municipal para melhorar as condições de trabalho dos catadores?

Alexandre Camboim - É necessário que as prefeituras e os poderes públicos municipais compreendam que o catador, uma vez organizado em associação ou cooperativa, deve ser remunerado pelo volume de material que coleta nas ruas, criar uma nova forma de contrato. Para nós isto é um princípio básico. É um primeiro ponto. Outro ponto é a necessidade de levar em conta o catador, pois não é considerado. Muitas vezes é considerado até bandido, um lixeiro ou várias coisas ruins, são maltratados. Por exemplo: companheiros que estavam conosco na marcha, da Vila dos Papeleiros, quando não levam a carga para o sucateiro na quantidade que o sucateiro quer, apanham na cara, são obrigados a comprar no bar que é do sucateiro, a morar no barraco que pertence ao sucateiro, a usar o carrinho do sucateiro e por último ele vende o material que pertence ao sucateiro. Isto é, recoleta para este mesmo sucateiro. Ele não tem nenhuma autonomia.

Os municípios têm que reconhecer a importância do trabalho dos catadores. Por exemplo, Porto Alegre coleta – tendo uma frota toda especializada de coleta seletiva, com toda uma campanha pública - o equivalente a 70 toneladas/dia. Os catadores, com seus carrinhos e carroças, coletam mais de 140 toneladas. Se nós multiplicarmos estas 140 toneladas pelos U$ 56, que é o custo de cada tonelada, nós vamos ter mais de US$ 7 mil que se economiza por dia aqui na cidade com o trabalho voluntário dos catadores. É disso que nós estamos falando.

Rets - O que são estes U$ 56?

Alexandre Camboim - A prefeitura gasta isso para cada tonelada de coleta seletiva. No entanto, o catador faz a coleta e não recebe nada por isso. Ele coleta muito mais do que a prefeitura, mais que o dobro. Porém, a cadeia produtiva não é somente catar na rua. A gente quer condições de classificar, de poder organizar o material nos diferentes tipos e comercializar diretamente com a indústria e também poder industrializar os materiais ou pelo menos parte deles. Nós pretendemos partir para a própria reciclagem dos materiais. Nós entendemos que podemos trabalhar com a separação do lixo. E se economizaria toda uma etapa de trabalho, que é muito penosa para o catador: a coleta é feita geralmente à noite, transportando muito peso; é uma atividade perigosa devido ao tráfego de veículos etc.

Rets - Participaram muitos profissionais técnicos do congresso?

Alexandre Camboim - Muitos participaram de forma voluntária e até militante. Porém tem um critério. Sempre nos preocupamos, no entanto, de preservar o espaço do técnico e do catador. Os companheiros se reúnem de forma autônoma, definem o conjunto das ações que é importante para nós e depois sentamos juntos com os técnicos e discutimos o que queremos. Por outro lado, nós temos técnicos que são militantes do movimento e receberam inúmeras propostas para secretarias de governos e não aceitaram para manter a fidelidade com o movimento, ou seja, não aceitaram entrar para o governo. Esses técnicos garantem para nós o tipo de linha que a gente quer para este movimento.

Rets - O que você acha que mudou na consciência dos catadores com o Congresso?

Alexandre Camboim - Eu acho que os nossos companheiros que estão nas associações, que têm participado mais, tiveram a convicção fortalecida. Em várias cidades temos a convicção sendo fortalecida dia-a-dia. Os catadores têm se organizado em núcleos de base do movimento. Por outro lado, aquelas que estão chegando, que vieram para o encontro da América Latina ou até os daqui do Brasil... foi algo que encantou o pessoal. Os participantes se emocionaram, choraram, riram, brincaram, dançaram e discutiram coisas que nunca foram discutidas com justiça no ambiente de trabalho ou na cidade em que se vive. Ou seja, nunca se pensou o que de fato é o nosso direito. O que é esse nosso direito. A pessoa se considera até então lixo como o lixo que carrega e de repente se vê com companheiros e não com técnicos de apoio, mas com o rapaz que puxa o carrinho, que trabalha na reciclagem nos galpões de triagem, discutindo o que são os nossos direitos.

Rets - Como surgiu o Movimento Nacional dos Catadores?

Alexandre Camboim - O movimento surgiu a partir do primeiro congresso nacional no ano retrasado, em junho de 2001. Este congresso contou com representação de 16 estados, 1.600 delegados e 180 apoiadores técnicos. O objetivo foi dar maior organização, institucionalidade ao movimento. Formamos uma comissão nacional composta por representantes dos estados e sou um dos delegados do Rio Grande do Sul.

Rets - O movimento tem conquistado vitórias para os catadores?

Alexandre Camboim - A nossa atuação até agora foi no sentido de poder organizar os catadores que já participaram do primeiro congresso [nacional] e buscar melhores condições de trabalho e de vida. A maioria dos catadores está nas ruas, nos lixões e está numa fase bem inicial de organização. Por outro, a busca da formação, de capacitação para os trabalhadores. Há ainda a intervenção em nível nacional, buscando a definição de uma política nacional de resíduos sólidos. Uma política que garanta a inclusão do catador no processo de gestão integrado dos resíduos em todo Brasil.

Outra coisa que queremos é agregar valor aos materiais e fazer com que um número maior de catadores ganhem mais. Por exemplo: uma garrafa de água mineral vendida prensada custa hoje 50 centavos e se paga 50, 60 centavos no atravessador ou na fábrica. Se moermos e lavarmos, conseguimos vender por R$ 1,20. Isso agrega valor ao trabalhador, tanto para catador de rua quanto o que tria, classifica dentro galpão e prensa. Esse trabalho possibilita que um catador que ganhava R$ 500, 600 passe a ganhar R$ 1.000, 1.500. Na verdade, vai alem: possibilita que dois ganhem R$ 500. Ou seja, mais catadores trabalham juntos, trabalhando menos, porém ganhando mais. Isso é estratégico. A parte mais pesada do ciclo da reciclagem está entre catar na rua, triar e vender para o comércio, que equivale a quase 90%. Os outros pouco mais de 10% estão na indústria, que só beneficia. É o atravessador e a indústria. Aí é o revés do lucro. Quando o catador ganha pouco mais de 10% do que vale este material, os outros ganham quase 90%. Queremos reverter este processo.

Rets - Quais são as principais experiências desenvolvidas pelos catadores de material reciclável no Brasil hoje?

Alexandre Camboim - Nós temos experiências em todas as áreas que reivindicamos como estratégicas. Por exemplo: em Belo Horizonte, 90% da coleta seletiva é feita por catadores de ruas organizados nas associações. Naquela cidade a gente conseguiu estabelecer com o município uma forma de contrato que possibilita desde o trabalho de formação político-cultural, trabalho de resgate cultural permanente dos catadores até a questão da habitação. No momento em que entra para o movimento, o catador se busca através da ocupação de prédio e da luta por moradia, educação, transporte, saúde e alimentação. Os restaurantes do movimento são dos catadores, mas vendem para a comunidade. Outro exemplo: o espaço cultural pertence aos catadores, mas é freqüentado por toda a comunidade. Por outro lado, nós temos várias experiências pequenas em que os catadores já estão industrializando. No Rio Grande do Sul, temos uma indústria que está sendo construída com capacidade de 100 toneladas/dia de reciclagem de plástico. Ou seja, não temos uma experiência que tenha começado em grande porte, mas várias pequenas atividades.

Rets - Quais têm sido suas formas de articulação e comunicação?

Alexandre Camboim - Contamos hoje com núcleos de apoio em vários locais e estamos definindo uma política de apoio. Técnico de universidades, técnicos na área da comunicação e da área da educação popular, da construção civil, ou seja, de todas as áreas de conhecimento que precisamos no cotidiano. Além disso, procuramos utilizar ao máximo as novas tecnologias. Nós já fizemos isso. Usamos e-mails para nos comunicar, inclusive com companheiros de fora do Brasil. A nossa maior intenção, que é um pouco mais complicada, é uma central de vendas virtual. Nós temos vários núcleos na região metropolitana de Porto Alegre e cada um tem capacidade diferente de recolhimento de materiais recicláveis. Esse material separado nós conseguimos vender para o atravessador ou para uma fábrica pequena. Para acessar a grande indústria que paga um valor maior, nós teríamos que vender em grandes cargas, fazer contratos de grandes quantidades por mês. Estes contratos não conseguem ser mantidos se não conseguirmos reunir esta carga, o que é difícil de se fazer em galpão central. Aí fazemos pela Internet. Além disso, teremos um poder de barganha mesmo com os médios atravessadores: vamos supor 200 toneladas de um material. Ele não compra de nenhum sem pagar o preço que o conjunto quer e sabendo que nós temos 200, 500 toneladas de um produto é importante e a tecnologia é uma forma de fazer isso.

*Alexandre Camboim é catador há sete anos, filho e neto de carroceiros. Chegou a trabalhar em uma metalúrgica e, depois que esta quebrou, voltou para a Vila dos Papeleiros e passou a organizar seus companheiros. Mora em Gravataí, região medignidadetropolitana de Porto Alegre.


Maria Eduarda Mattar

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