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Pedidos de paz e consolidação

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

O Fórum Social Mundial (FSM) não é mais o mesmo: cresceu e apareceu. Na terceira edição do evento, ocorrida em Porto Alegre de 23 a 28 de janeiro, foram aproximadamente 100 mil pessoas de mais de 150 países participando. Destes, 4 mil eram jornalistas - "mais que na Copa do Mundo", destacaram com orgulho os organizadores. O mais importante, no entanto, não foi o número de pessoas que tomou as ruas da capital gaúcha, mas a qualidade do que discutiram e, principalmente, até onde foram ouvidas. Esta edição do FSM ficou na memória dos participantes como o momento em que seus apelos chegaram mais longe, sua visibilidade esteve mais clara e sua legitimidade, mais consistente.


Alguns pontos foram recorrentes no Fórum Social Mundial 2003. O grande foco, no entanto, foi a oposição a todos os tipos de guerra, que mereceu inclusive posicionamento oficial da organização do evento. A própria Marcha de Abertura do Fórum teve a paz como tema. Bandeiras e faixas com dizeres de repúdio aos conflitos dominaram a multidão de 70 mil pessoas, que caminhou do Mercado Público Municipal de Porto Alegre ao Anfiteatro Pôr-do-Sol. Durante os painéis, conferências, mesas, oficinas e testemunhos do FSM, o tema também foi pauta principal, mesmo naqueles que não eram dedicados especificamente a este assunto. Os motivos são óbvios: a iminente guerra contra o Iraque, os incessantes conflitos no Oriente Médio, a militarização em várias partes do mundo etc.


A tônica primava pela lógica: "Se queremos paz, não temos que preparar a guerra. Se queremos paz, temos que preparar a paz", afirmou o teólogo Leonardo Boff na conferência Paz e Valores, para um Gigantinho lotado, com mais de 15 mil pessoas, num dos mais disputados acontecimentos do Fórum. A multidão compareceu para escutar, além de Boff, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a pesquisadora indiana sobre conflitos e paz, Radha Kumar, e o sociólogo suíço e relator da Organização das Nações Unidas para o Direito à Alimentação Jean Ziegler. Todos foram unânimes em dizer que é através da promoção da paz que se chegará à paz. Kumar lembrou a todos que "é preciso não só se opor à guerra, mas falar positivamente sobre paz e sobre como se pode conquistá-la".


Discurso semelhante teve o músico e compositor Marcelo Yuka. Ex-baterista da banda O Rappa, ele é autor de diversas músicas contra a violência urbana. Acabou sendo vítima da própria ao levar nove tiros em novembro de 2000. Convidado a falar um pouco sobre sua história, Yuka fez lotar a 5ª sala do Acampamento da Juventude no dia 25 de janeiro, quando centenas de jovens queriam escutar o que o músico, hoje em dia na cadeira de rodas, tinha para contar. Entre os temas, um que não podia faltar: a violência. Ao falar sobre modos de se acabar com ela, seja urbana ou militar, Yuka considerou prioridade a exigência de medidas concretas. "É muito bonito ficarmos saindo à rua, vestidos de branco. Mas é preciso pedir medidas concretas. E, na minha opinião, a primeira deve ser o fim do livre comércio de armas de fogo", ressaltou. Trazendo no pescoço um pano símbolo do povo palestino, Yuka pedia paz no Oriente Médio e dizia não à guerra que os EUA pretendem iniciar contra o Iraque - conforme contou à Rets, depois do testemunho.


Chamou atenção ao falar sobre guerra o conferencista italiano Vittorio Agnoletto, do Fórum Social Italiano. Ele defendeu, na mesa de diálogos e controvérsias "Em oposição às guerras do século XXI, como construir a paz entre nós?", que a guerra é parte inerente ao sistema neoliberal e que ela seria uma forma de globalização do neoliberalismo. No caso específico da guerra ao Iraque, muito se comentou sobre suas motivações econômicas. Eduardo Galeano, por exemplo, fez críticas sutis ao afirmar que a indústria do petróleo "move a sociedade de consumo, derruba governos, fabrica guerras e faz a água desaparecer". Jean Ziegler, relator da ONU para alimentação, condenou a guerra e os interesses velados que estão por trás dela. O sociólogo chamou Bush de "o Pinochet que está na Casa Branca" e afirmou serem os atentados de 11 de setembro pretextos para o presidente norte-americano "encobrir os crimes de Sharon contra os palestinos e os de Putin contra os chechenos".


Globalização e neo-liberalismo


O neoliberalimo e a globalização neoliberal também estiveram bastante presentes nos eventos. Além de Agnoletto, já comentado, outros fizeram críticas duras ao modelo que domina boa parte do cenário político-econômico do mundo. O italiano Fausto Bertinoti foi um destes. Membro do Partido da Refundação Comunista, o militante afirmou que se passa hoje por uma crise na democracia a nível global, em decorrência da globalização, que seria incompatível com a democracia. "Trata-se de um verdadeiro eclipse na democracia".


Neste contexto de democracia em xeque, muito foi falado sobre o papel dos movimentos sociais e o dever de estes permanecerem autônomos e mobilizados, mesmo quando candidatos que apóiam chegam ao poder - caso do Brasil, onde muitos movimentos e organizações apoiavam há anos o PT e o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O sindicalista sul-africano Willy Madisha, da Central de Trabalhadores da África do Sul, relatou a experiência em seu país, que, em 1994, elegeu um candidato de esquerda para o poder. "Achamos que a partir daí tudo seria fácil", lembra ele. Madisha passou à Rets a mensagem que ele deixa para os movimentos sociais brasileiros: "Os movimentos sociais não podem se desmobilizar; devem continuar se articulando em torno de temas importantes, agindo e cobrando do Estado". Sobre o assunto, Leyla Daklhi, da Aprendizes de Agitadores pela Nova Resistência Global (AARRG), defendeu que os movimentos sociais e partidos têm que criar novas formas de ação, baseadas na articulação. Os dois palestraram na mesa “Lacunas e tensões entre movimentos sociais, partidos políticos e instituições políticas: como enfrentar estas questões para alcançar uma democracia participativa?".


Mário Soares - ex-presidente de Portugal e idealizador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - lembrou na mesa de diálogo e controvérsia "Um outro mundo é possível?" aquilo que a maioria das pessoas esquece: o que faz avançar o mundo são as idéias, não o dinheiro. Segundo ele, é preciso que as sociedades se levantem para conter as forças do Império e nesse processo os movimentos sociais - assim como os políticos - são fundamentais.


A ONU e as "três coroas"


Como já havia sido anunciado pelos organizadores do FSM na época do lançamento da terceira edição, em setembro de 2002, o encontro também serviu para discutir a legitimidade das Nações Unidas. Desde que suas conferências mundiais começaram a perder valor prático - ou seja, não resultando em ações efetivas por parte de governos - elas começaram a ser questionadas e, com isso, a própria ONU. O exemplo mais retumbante foi a Rio+10 - ou Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável -, ocorrida entre agosto e setembro de 2002. A cúpula se caracterizou pela falta de articulação no processo preparatório e, pior ainda, pelas tentativas de se tentar regredir em alguns pontos acordados desde a ECO-92.


Pela fraca atuação da ONU não só neste processo, mas em várias outras ocasiões, é que ela recebeu críticas como a verbalizada por Fausto Bertinoti: "A ONU já não conta - foi substituída pelos EUA". Seu compatriota, o italiano Vittorio Agnoletto, também foi veemente ao falar sobre o órgão: "Sabemos que se a ONU quer ter algum papel no futuro, não pode aceitar a guerra que querem os EUA". Como se vê, as críticas endereçadas à ONU questionavam especialmente sua condução dos processos quando estes envolvem os Estados Unidos. Muitos questionaram os "dois pesos e duas medidas" da organização.


Sobre isso, Agnoletto defendeu que "se os inspetores de armas devem visitar o Iraque, devem também inspecionar as armas nucleares e biológicas dos EUA. E não estou brincando quando digo isso. [...] Como esta mesa é de controvérsia, gostaria de trazer um pouco dela. Por que a ONU não faz nada há mais de dez anos sobre o embargo dos EUA ao Iraque? E por que mantém as sanções?" Já o belga Elio di Rupo, vice-presidente da Internacional Socialista, sustentou que "é preciso ampliar a composição da ONU - que tem um Conselho de Segurança com apenas cinco países. Além disso, na ONU deviam estar não os governantes e, sim, as pessoas que conhecem as realidades dos países, que provêm da sociedade civil". Outro fato bastante alardeado é que os países que têm poder de veto no Conselho de Armas da ONU são justamente os países que mais produzem armas - revelando, no mínimo, uma dualidade de interesses destas nações.


A estrutura e a importância do FSM 2003, no entanto, permitiram que algumas destas críticas fossem rebatidas - ou que ao menos se tentasse fazê-lo - em Porto Alegre mesmo: estava no Fórum o sub-secretário geral da ONU para assuntos econômicos e sociais, Nitin Desai. O indiano compareceu representando o secretário-geral do órgão, Kofi Annan, que enviou uma carta na qual apoiava e encorajava o Fórum. Desai respondeu a algumas das críticas dizendo que a paz tem sido a tônica e objetivo da ONU. Não convenceu muito ao público, que em uma das mesas de diálogo e controvérsia pedia a participação efetiva dos cidadãos nas Nações Unidas e não dos governantes. "Como fazer?", perguntou de volta. De qualquer maneira, Desai fez questão de apontar a relevância do Fórum Social Mundial e o projeto de um mundo novo que se tenta construir. "O próprio fato de eu estar aqui mostra que as Nações Unidas já estão ouvindo Porto Alegre", disse ele à Rets, assegurando que ia levar ao órgão os pedidos e críticas que lhe foram confiados pelos participantes do FSM.


As críticas às Nações Unidas transbordavam para organismos internacionais e para as próprias relações entre países. "Vivemos em uma monarquia de três coroas que governam o mundo - o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial", disse Eduardo Galeano na concorrida palestra que proferiu. "Os parlamentos dos países foram substituídos pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela OMC", foi a opinião expressada por Fausto Bertinoti. Em um evento sobre a próxima reunião da OMC - a se realizar em novembro, em Cancún, México - os debates giraram em torno da articulação dos movimentos sociais para manifestarem-se contra a rodada de negócios, a exemplo das manifestações contra a rodada ocorrida em Seattle (EUA) em 1999. "Todos a Cancún", convocou o basco Paul Nicholson, da Via Campesina. A intenção é impedir o estabelecimento de regras que obrigariam os 148 países sócios a abrir ainda mais seus mercados, reduzir a zero a proteção a setores importantes da indústria, ampliar o direito dos detentores de patentes, entre outros. "Se vencermos essa batalha, e a OMC não conseguir se expandir, será um grande baque político para os governos dos países ricos", analisa Lori Wallach, pesquisadora do Public Citizen, uma organização situada nos EUA que fiscaliza instituições multilaterais.


É importante ressaltar que não só discussões acerca de paz, globalização, neoliberalismo, movimentos sociais, legitimidade da ONU e críticas à OMC, ao FMI e ao Banco Mundial estiveram presentes entre os eventos do FSM. Estes temas - por sua amplitude, atualidade e por darem margem a múltiplos debates - foram alguns dos mais freqüentes. No entanto, tópicos como diversidade, comunicação, migração, agricultura familiar, entre outros, também foram abordados - seja nos grandes eventos do Fórum (painéis, conferências, mesas e testemunhos) ou nas atividades auto-gestionadas (seminários e oficinas).


Legitimidade e mundialização


Nos eventos próximos ao encerramento do Fórum - e na própria cerimônia de finalização - a avaliação feita do evento foi a mais positiva possível. Em primeiro, porque o FSM se consolidou como processo, não só como um simples evento. Isto ficou patente na articulação dos fóruns sociais regionais e na consciência que perpassa toda a atuação tanto das organizações quanto das pessoas que participam do Fórum - ou aderem à ideologia do mesmo. Em segundo, porque o FSM cresceu em tamanho (foram 100 mil pessoas, o dobro do ano anterior), ganhou mais autonomia e reafirmou sua legitimidade. Como? As aparições e discursos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chavez ajudam a demonstrar isto. Provam que o Fórum é identificado como espaço de diálogo com as organizações da sociedade civil e movimentos sociais e como ambiente não só formador de opinião, mas representativo das mesmas e do projeto de mundo alternativo a que pretende chegar. Ou seja, é interlocutor digno de atenção "oficial" e de atenção. Além disso, o reconhecimento de sua importância por parte da ONU - e o envio de um representante por parte do órgão, o senhor Nitin Desai - também denota o reconhecimento do FSM por parte das grandes organizações internacionais. Como afirmou Kofi Annan na mensagem enviada aos participantes do Fórum, "todos os órgãos principais do sistema das Nações Unidas convergirão para fazer tudo o que for possível fazermos para ajudar. Mas nem nós, nem os governos, agindo de forma independente, terão êxito sem o seu envolvimento – vocês, as forças dinâmicas reunidas em Porto Alegre".


Fatos como estes fizeram os organizadores avaliarem muito positivamente o evento. "Antes de tudo temos que festejar o que estamos fazendo. O Fórum está se tornando uma grande onda de cidadania que está crescendo em todo o mundo”, disse Cândido Grzybowski, do Ibase e um dos membros do comitê organizador, na coletiva de encerramento. A confiança experimentada pelos organizadores é tão grande que o evento anual não mais se pautará pela agenda do Fórum Econômico Social, realizado em Davos - encontro para o qual o FSM nasceu como contraponto e ao qual sempre aconteceu simultaneamente. Outro fato que denota a convicção dos organizadores sobre a força do Fórum é a transferência da sede do próximo evento - que não mais será Porto Alegre, onde o Fórum foi inaugurado e cidade pelo qual muitas vezes é conhecido ao redor do mundo. A fim de ampliar a diversidade dos participantes, possibilitar a presença mais indivíduos asiáticos e contribuir para a mundialização do FSM, a próxima sede será a Índia. A mudança e a conseqüente possibilidade de diminuição de participantes não preocupam o comitê. “O número não é vital. O importante é o processo de mundialização”, disse Sérgio Haddad, da Abong, na coletiva de encerramento. Francisco Whitaker, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB, também integrante do comitê organizador, acredita que “a ida à Índia é um salto de qualidade”. Então, até lá.



Maria Eduarda Mattar

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