Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Mais de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo. A maioria delas está nas áreas rurais de países em desenvolvimento, a exemplo do que acontece no Brasil. Cerca de 30 milhões de pessoas morrem anualmente por causa da fome e suas consequências mais imediatas. E, como vem alertando o relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, desde que assumiu sua função, em fevereiro de 2002, a agricultura mundial é capaz de alimentar cerca de 12 bilhões de pessoas - o dobro da população da Terra hoje em dia. "Assim, a morte por fome não é inevitável. É genocídio" é a sua opinião, que vem sendo expressa em artigos, relatórios oficiais e palestras.
Por causa desta realidade, que atinge cerca de 40 milhões de brasileiros, o combate à fome foi estabelecido como prioridade absoluta do novo governo federal. O programa Fome Zero, iniciativa pela qual o esforço será concretizado, foi lançado oficialmente na quinta-feira, 30 de janeiro, com uma convocação a toda a sociedade para participar desta grande força-tarefa. E, a julgar pela aprovação que o Fome Zero tem recebido da opinião pública - 87,3%, de acordo com pesquisa da CNT/Sensus, publicada em final de janeiro - a sociedade está disposta a dar sua contribuição.
Algumas instituições da sociedade civil organizada já vinham participando do processo, ao ajudarem na elaboração de algumas propostas do Fome Zero, durante o período eleitoral. É o caso do COEP - Comitê de Entidades no Combate à Fome e da Ação da Cidadania, duas entidades que vêm atuando ao longo da década passada para erradicar a fome.
Com a configuração do programa recém-lançado, a sociedade civil, através ou não de suas organizações, poderá participar do Fome Zero. Na prática, as entidades participarão - ou melhor, já estão participando - através do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), do qual fazem parte representantes não só do Coep e da Ação da Cidadania, mas também pessoas como a Dra. Zilda Arns, presidente da Pastoral da Criança; o ex-jogador e presidente da Fundação Gol de Letra, Raí, etc. Ao todo são 62 membros vindos de ministérios, entidades civis ou observadores.
Os representantes participarão das reuniões bimestrais (ordinárias) do Conselho, nas quais serão coordenadas ações por grupos de trabalho. Já foram definidos dois: um para elaborar a estratégia de segurança alimentar para a próxima safra agrícola, que começa a ser colhida em maio, e outro que vai tratar da participação da mulher no combate a fome. Existe ainda a previsão para se criar conselhos locais. Os Copos - Conselhos Operativos do Programa Fome Zero, de caráter provisório, servirão para formatar os Conseas municipais. É através da comunicação com todos estes conselhos e de atividades próprias que a sociedade civil organizada poderá influir, propor, participar e ajudar no Fome Zero.
Para Maurício Andrade, coordenador geral da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, as pessoas não devem ficar esperando que só o governo aja. "Todos têm o compromisso de participar. É fundamental que a sociedade civil cumpra com o seu papel de acompanhar, cobrar, exigir", afirma Andrade. Ele acredita que os dez anos de experiência da Ação da Cidadania, principalmente com a promoção de campanhas como o Natal sem Fome, podem servir de ajuda para algumas das ações do Fome Zero. "Temos mais de sete mil comitês e um banco de dados único com pessoas abaixo da linha da pobreza", lembra.
Ações do programa
Apesar de as informações mais difundidas desde o anúncio do programa serem as que dizem respeito às atividades emergenciais, é bom lembrar que a iniciativa prevê três tipos de ações: específicas (para atender diretamente as famílias que não se alimentam adequadamente hoje), estruturais (voltadas para as causas mais profundas da fome e da pobreza) e locais (que poderão ser implantadas pelas prefeituras e pela sociedade civil).
Atualmente, a operacionalização dos cartões-alimentação está no centro das discussões tanto da grande mídia quanto dos técnicos do programa. No entanto, o aspecto mais trasformador do Fome Zero, que é a elaboração de mudanças estruturais definitivas para erradicar o problema a longo prazo, não está sendo tão debatido quanto as ações paliativas - que aliviam o estômago de quem não come diariamente.
A erradicação da fome estará presente de forma transversal em todas as instâncias do governo. Criação de empregos, educação de qualidade, saúde digna, salário e renda são algumas das diretrizes que possibilitarão que o objetivo seja atingido. Motivo: fazer com que as pessoas garantam sua alimentação por si próprias, sem precisarem eternamente de doações ou assistencialismo. Para tanto, medidas com tais fins estão previstas no Fome Zero e o Consea terá o dever de debatê-las. É neste ponto que, levando suas experiências e propostas, as organizações da sociedade civil poderão contribuir de fato - e de forma determinante, pois será nos fundamentos - para a construção de uma política nacional de segurança alimentar.
"As ações emergenciais têm que ser desenvolvidas com a perspectiva de promoção da cidadania, para no futuro as pessoas atendidas poderem dispensar o programa", afirma Chico Menezes, membro do Consea, diretor do programa de Segurança Alimentar do Ibase e coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional. Para ele, uma das prioridades deve ser a criação de empregos, para que a política pública seja "libertadora" e transformadora da realidade brasileira. Segundo Menezes, é preciso também se manter atento "à qualidade da alimentação e adequação nutricional, não só à carência calórico-proteica". Na sua avaliação, se o programa cumprir tudo a que se propõe, é possível que em quatro anos se concretize o enfrentamento emergencial da fome no país.
Para Daniel Souza - filho de Betinho, um dos coordenadores da Ação da Cidadania e também membro do Consea - este é o momento certo para a sociedade civil operar mudanças estruturais no Brasil. "Existem duas coisas: as ações mais imediatas, de distribuição de cartões-alimentação, e, paralelamente, o mais importante, que é promover mudanças estruturais nas políticas públicas brasileiras, para que no futuro não tenhamos mais que promover campanhas contra a fome", afirma.
Reforma agrária e agricultura familiar
Uma das prioridades apontadas por vários dos membros do Consea é a famosa reforma agrária. Não só porque o Brasil é um dos únicos países no mundo que ainda não fizeram uma reforma agrária de fato, mas também porque o país pode aproveitar muito mais seu potencial de terras e trabalhadores rurais do que faz atualmente. E também porque, afinal de contas, é da agricultura que vêm os alimentos.
Daniel Souza é um dos que defendem a priorização da reforma agrária nas ações estruturais do Fome Zero. "O Brasil é um dos únicos países em que isso ainda não foi feito. A reforma agrária gera comida, emprego e renda e faz a terra ser ocupada de forma mais produtiva", diz Daniel, para quem se as ações emergenciais do Fome Zero forem cumpridas como idealizadas, é possível que em dois ou três anos não existam pessoas passando fome no país.
Além disso, o estímulo e fomento à agricultura familiar que tem sido a bandeira de algumas organizações pode finalmente vir a ser privilegiado. É o que acredita Dirceu Dresch, coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf-Sul) em Santa Catarina. Segundo ele, vai ser um bom momento para mostrar que a agricultura familiar não se trata somente de estímulo aos pequenos produtores rurais e que implica uma série de outros fatores que contribuem para a melhoria das condições sociais no campo.
"Ela é estratégica para diminuir a concentração de renda, valorizar o ambiente rural, contribuir para a diminuição do êxodo rural, promoção do desenvolvimento local, estímulo à agroecologia e ao turismo rural, entre outros exemplos", destaca. Dresch também ressalta que os desafios são fazer com que o estímulo chegue de fato às quatro milhões de famílias que operam em regime de economia familiar (e, não, aos 500 mil produtores patronais do país); e encontrar melhores modos de armazenagem dos alimentos. A Fetraf-Sul também está representada no Consea, através de seu coordenador-geral, Altemir Tortelli.
Participação cidadã
E como o cidadão que não está vinculado a nenhuma entidade da sociedade civil pode participar desse esforço? De várias formas. Em primeiro lugar, procurando se informar sobre a criação de conselhos em sua cidade. Outro modo é procurar os comitês municipais ou regionais e ONGs que atuam no combate á fome e procurar saber mais sobre as formas de participação. Chico Menezes, do Ibase, acredita que é preciso, entretanto, prosseguir com cautela. "O discurso de Lula foi muito no positivo no sentido de deslocar a prioridade para a área social e criou expectativas de participação nos indivíduos. E o próprio programa Fome Zero não estava preparado, desenhado para todo este interesse. Temos que baixar a ansiedade e começar pequeno - o que não deve servir como desestímulo", avalia.
Daniel Souza ressalta que a participação das pessoas vai depender da área em que atuam e que o principal é que os cidadãos estejam sempre atentos às possibilidades. "Se a pessoa for um artista ou atuar na área cultural, por exemplo, pode usar isto para abrir, levar outras pessoas. É preciso estar sempre antenado, acompanhando as ações do programa", afirma. Para ele, o cidadão não pode ficar esperando, deve partir para a ação, cobrando e acompanhando.
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