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Com poder, direitos e autonomia

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Embora muitas vezes as organizações da sociedade civil nem saibam, a prática de várias delas é marcada pela abordagem do empoderamento, um conceito cujo surgimento remonta à década de 70, mas cujos aspectos concretos provavelmente são executados há bem mais tempo. O termo vem do inglês "empowerment" e sua tradução mais frequente - empoderamento - muitas vezes é vista como incapaz de passar plenamente o amplo sentido do conceito. Mas, até o próprio conceito ainda é objeto de estudo e muitos debates, apresentando diferenças e flexibilidades de acordo com a pessoa que o estuda ou a organização que o pratica.

Na Academia, os estudiosos que mais são citados hoje em dia são Gita Sen e John Friedmann. Neste âmbito o empoderamento vem sendo discutido quanto à sua diferenciação da abordagem de direitos e quanto à apropriação indevida do termo por parte de governos e agências multilaterais. Motivo: na década de 90 o termo se popularizou e se utilizava o mesmo para justificar qualquer tipo de ação - principalmente aquelas empreendidas por governos e agências multilaterais. Ou seja, virou moda usar a palavra, o que gera atualmente uma discussão entre os teóricos da área - e até entre as próprias ONGs - sobre até onde a prestação ou promoção de serviços sociais básicos tem-se transformado de fato em um meio de empoderamento e não um fim em si mesmo.

Na prática, as discussões conceituais ganham corpo através de uma adaptação - às vezes deturpante, às vezes não - da abordagem ao trabalho de cada organização. No entanto, no dia-a-dia, esta possível “deturpação” pode até ser um fator positivo, pois - como é de se esperar quando se fala em uma abordagem que pretende chegar a pessoas e lugares, diferentes uns dos outros e ricos em suas diversidades - não existe fórmula. Não há como dizer que para promover o empoderamento é preciso fazer "a", "b" ou "c". A única coisa que parece permear toda prática que utiliza a abordagem é a noção de que ninguém empodera ninguém. As pessoas é que se empoderam.

Mas, afinal, o que é empoderamento? "Não existe uma fundamentação convencionada e definitiva sobre o assunto", explica Martha Antunes, integrante da equipe da ActionAid Brasil, entidade que utiliza a abordagem em suas atividades. Em resumo, trata-se de conscientização sobre direitos e sobre como se pode exercê-los para operar melhoras nas condições de vida de uma pessoa ou comunidade, jogando luz sobre as relações de poder que as colocam em situação de pobreza ou exclusão. "É um processo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades assumem o controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida e tomam consciência de sua habilidade e competência para produzir, criar e gerir", explica Jorge Romano, diretor-executivo da ActionAid Brasil, no livro Empoderamento e Direitos no Combate à Pobreza.

Ou seja, tem a ver com conscientização, noção sobre direitos e - principalmente - com a análise das relações de poder, como o próprio termo indica. "Empoderar", portanto, passa pela conquista de poder, entendido como a autonomia sobre os rumos e processos que influem na vida de uma pessoa ou comunidade. Não se trata apenas de conhecer direitos e exercê-los, mas também de construir novos direitos, influir em políticas públicas etc. É importante citar também que o empoderamento se caracteriza por não ser assistencialista: ao invés de prover às pessoas, pretende mostrar a elas as ferramentas, meios, benefícios e modos de obter por conta própria. Em outras palavras, não se trata de dar o peixe, mas de ensinar a pescar.

Dia-a-dia

Nas ações cotidanas, os modos de facilitação disto são variados e normalmente realizados em parceria com entidades de base que, por estarem próximas aos indivíduos, identificam mais sensivelmente as necessidades ou fatores de exclusão e pobreza de uma comunidade ou grupo da sociedade. O uso de metodologias é uma das formas de facilitação e algumas delas são a Diagnóstico Rápido Participativo (DRP), a realização de juris simbólicos e abertos ao público, cartelas, entre outras. Por mais que ajudem, as metodologias não devem ser o único modo de guiar determinado trabalho, pois assim se foge ao próprio objetivo do empoderamento - proporcionar mais autonomia às pessoas para decidirem sobre suas próprias vidas. Assim, a discussão junto com as pessoas sobre suas demandas, dificuldades e vontades é sempre um bom modo de direcionar o trabalho.

Um exemplo do que o empoderamento pode trazer de bom para comunidades é a experiência desenvolvida no município de Cabo de Santo Agostinho, interior de Pernambuco. Lá, o Centro de Mulheres do Cabo, apoiado pela ActionAid Brasil, conseguiu promover - junto com os moradores - uma transformação nas moradias da região periférica de Barbalho, onde moram cerca de 250 famílias, em um local onde antigamente funcionava um engenho. "As pessoas dizem que Barbalho era uma antes e agora é outra" relata Marlis Schmeing, alemã que há 16 anos está no Brasil e é educadora do Centro.

Marlis se refere às reformas nas casas da região, antes deterioradas e em péssimas condições. No processo, foi utilizado um fundo de microcrédito, para o qual todas as pessoas que o utilizam contribuem de volta, nem que seja um valor simbólico, a fim de manter o mesmo sempre ativo, podendo ajudar mais gente. Caso não fosse operado desse modo, o fundo, cujos recursos iniciais foram fornecidos pela ActionAid, poderia ter simplesmente ajudado a poucas pessoas e, uma vez que a verba tivesse terminado, outras pessoas não teriam suas casas também reformadas. Os moradores de Barbalho participam do processo - não só por terem apontado as reformas nas casas como a necessidade principal - mas tomando parte em uma pequena comissão comunitária que escolhe quem deve receber os recursos, quanto deve contribuir de volta etc. Atualmente, são cinco pessoas na comissão - quatro mulheres (apenas uma com segundo grau) e um homem.

Outra experiência que utiliza a abordagem do empoderamento é o programa de Democratização do Orçamento, do Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas (Ibase). Leonardo Méllo, coordenador da iniciativa, explica que, apesar de o assunto democratização do orçamento ser uma contribuição identificada pelo programa - e não necessariamente pelas pessoas - a intenção ao levar o programa para alguma comunidade ou organização de base é fazer com que os mesmos possam utilizar o que for aprendido para ajudar nas suas vidas e, não, se tornarem especialistas. "Não queremos que as organizações parceiras se tornem 'orçamenteiras'. Queremos que continuem trabalhando com as mesmas coisas que já trabalhavam, mas que possam fazer análises do orçamento e ter mais sucesso ao abordar o poder público para discutir políticas públicas", afirma.

Ele lembra a experiência desenvolvida em São João de Meriti, Baixada Fluminense, onde o programa de Democratização do Orçamento, através de dinâmicas como a Prefeito por um Dia, acabou ajudando na criação de propostas elaboradas pela própria comunidade e apresentadas ao poder público estadual. Na avaliação de Leonardo com base nas experiências do programa que coordena, a participação das pessoas proporcionada pela abordagem de empoderamento tem aumentado. "Posso parecer benevolente, mas acredito que as pessoas estão se interessando mais por temas como políticas públicas, estão mais politizadas e participando de discussões que afetam a vida delas", afirma.

Já Orlando Júnior, da Fase - instituição que há anos realiza uma linha de trabalho que condiz com a abordagem de empoderamento - acredita que não é a participação que tem aumentado - mas o eixo de participação que mudou. "O padrão de associativismo mudou muito. Não vemos mais tantas pessoas ligadas às associações de moradores clássicas, mas, sim, envolvidas com ONGs. O tecido associativo está mais complexo", afirma. E é justamente para fortalecer este tecido é que a Fase direciona suas atividades, de gamas e objetivos variados. No entanto, apesar da variedade, as ações da organização são orientadas para o fortalecimento das organizações de base e das pessoas.

Orlando ressalta o papel de organizações como a Fase, que propõem e levam temas que identificam como importantes para as entidades de base, as quais, sem este auxílio, possivelmente não atentariam para certas questões. "A palavra-chave é interação", destaca. Para ele, o salto de qualidade das ações de empoderamento acontece quando os cidadãos se sentem agentes portadores de direitos e capazes de acioná-los. "O maior resultado é fazer cada vez mais pessoas se sentirem agentes de políticas".

Quebradeiras de coco - mas pode chamar de formuladoras de políticas públicas

Foi isso que aconteceu na região de Mearim, interior do Maranhão. Lá a cultura de quebra de coco-babaçu é grande entre as mulheres, sendo possível produzir 68 tipos diferentes de produtos a partir da palmeira de coco-babaçu, incluindo óleo, farinha, carvão etc. O problema é que a maioria das árvores está cercada ou dentro de propriedades particulares. Assim, o acesso das mulheres às palmeiras muitas vezes era proibido. Apesar de existir uma lei estadual no Maranhão - datada de 1997, que permite a atividade de agro-extrativismo, mesmo em propriedades particulares – os donos das áreas em que ficam as árvores queimavam as palmeiras, derrubavam, colocavam produtos químicos e lançavam mão de outros meios para impedir a entrada das mulheres nas suas propriedades.

É aí que entra o trabalho de articulação da Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), aliado à vontade de mudança das quebradeiras. “Com a proibição, elas começaram a se reunir e perceberam que são fortes, juntas”, relata Jaime Conrado, coordenador técnico da Assema. A entidade auxiliou as mulheres na discussão sobre o assunto, na elaboração de propostas de lei e na articulação das comunidades. Resultado: uma lei que não só garante acesso das mulheres aos babaçuais, mas proíbe queimadas, derrubadas e utilização de produtos químicos foi aprovada em quatro municípios da região de Mearim: Lago do Junco, Lado dos Rodrigues, Esperantinópolis e São Luiz Gonzaga. Em mais duas cidades as leis estão em processo de votação.

“Por não conhecerem, as pessoas não reivindicam seus direitos. É preciso abrir os olhos para eles. Hoje em dia, não só as quebradeiras, mas todas as pessoas das comunidades demonstram mais consciência política - e isso não se resume a reivindicações. Elas estão participando mais de tudo que diz respeito à coletividade”, testemunha Jaime. Ele lembra que atualmente existem quebradeiras em postos chave, cita o exemplo de uma que se tornou vereadora e ressalta que já existe o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco-Babaçu, que vai discutir junto ao Ministério do Meio Ambiente políticas semelhantes a serem implementadas em todo o país. “Ou seja, é um exemplo de uma ação localizada que vai resultar e influir em uma política nacional”, diz ele, orgulhoso.


Maria Eduarda Mattar

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