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Coisa de adultos

Autor original: Marcelo Medeiros

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Eu comecei a trabalhar com nove anos, porque a minha mãe estava passando muita dificuldade. Como a minha mãe não estava trabalhando, eu pensei: eu vou ter que trabalhar. E aí as amigas da minha tia estavam na rua, eu perguntei: ‘se vocês estiverem precisando de alguma ajuda, eu posso ajudar. Vocês podem me chamar’.


Uma delas me chamou para ajudar e eu fui. Eu ia para a escola de manhã e ajudava ela à tarde e ela não me pagava em dinheiro. Ela mandava mantimento para a minha casa e me dava roupa e sapato. Um dia eu tive que ir ao dentista e eu não sabia a hora e fiquei na rua. Mais tarde, quando eu fui lá na casa dela, ela falou que não precisava mais. Ela me xingou e eu pensei: ‘como ela falou que não precisava mais de mim, eu não fui mais para a casa dela’”.


O relato acima foi escrito por Aline, de 13 anos e moradora de Belo Horizonte para a ONG Circo de Todo Mundo. Ela é uma das 502 mil crianças e adolescentes que trabalham em casas de família no Brasil, muitas vezes sem receber salário e tendo sua educação prejudicada. É também alvo das ações da recém lançada Campanha Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente no Trabalho Doméstico, promovida em conjunto por Cedeca-Emaús, Circo de Todo Mundo, Centro Dom Helder Câmara (Cendhec), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Unicef e Save the Children.


A campanha pretende agir em cinco eixos: informação, fortalecimento institucional, legislação, intervenção direta e comunicação. Dados sobre trabalho infantil doméstico apontam a existência de aproximadamente 502 mil crianças em situação de exploração – o que contraria a Convenção 138 da OIT, da qual o Brasil é signatário. O documento proíbe o trabalho de jovens com menos de 16 anos, a não ser na condição de aprendizes. Pesquisas empreendidas pelos membros da campanha descobriram também que 95% desse universo de crianças trabalhadoras é composto por meninas, a maioria vinda do interior em busca de uma vida melhor na casa de estranhos ou mesmo de parentes. “É uma relação de ambigüidade entre educação e trabalho”, diz o coordenador de erradicação de trabalho infantil da OIT, Renato Mendes.


O fortalecimento institucional das entidades que participam da campanha vem sendo feito desde 2001 com organizações sociais que possuem projetos envolvendo o público da campanha. Serão feitas ainda propostas de modificação na legislação trabalhista a fim de ampliar os direitos das domésticas e a introdução de um capítulo especial de proteção à adolescente doméstica.


As etapas seguintes terão caráter mais prático, envolvendo a intervenção direta e comunicação. Serão beneficiadas 850 famílias de Belo Horizonte, Recife e Belém a partir de atividades de ONGs como a mineira Circo de Todo Mundo, o pernambucano Cendhec e o paraense Cedeca. As três organizações foram escolhidas para executar e coordenar a campanha em suas cidades devido ao seu histórico de ações. A elas caberá estabelecer o modelo adequado de intervenção, organizar uma rede de proteção com o poder público e difundir as metodologias desenvolvidas. Haverá programas de geração de renda, assistência médica e de assistência social.


Na comunicação, estão sendo elaborados spots radiofônicos a serem veiculados em rádios comunitárias e já há um acordo com supermercados para que eles exponham e distribuam o material da campanha. Além disso, jornalistas serão capacitados para levarem adiante pautas pró-ativas.


Belo Horizonte


Na capital mineira a organização Circo de Todo Mundo dará atendimento jurídico, cursos e trabalho legalizado às crianças ou seus familiares. Em 2001, a organização encomendou à PUC-MG uma pesquisa sobre meninas que trabalhavam em domicílios. Das 510 entrevistadas, todas estavam em situação ilegal e não recebiam nem salário mínimo. “Elas tiveram seus direitos roubados”, lamenta Maria Eneide Teixeira, coordenadora geral da ONG.


Boa parte delas já está sendo atendida pelos projetos da Circo de Todo Mundo, inclusive Aline - a adolescente cujo relato iniciou este texto. São 87 bolsas de renda mínima de R$ 100 para 77 famílias, além de atividades educativas e culturais complementares para quase 400 meninas. Já há 100 crianças na fila de espera por mais bolsas.


Como parte de mobilização da campanha, a Circo de Todo Mundo já conseguiu produzir mil peças publicitárias a serem distribuídas em supermercados em breve. O “Baralho dos Mitos” terá em cada carta a história de um mito brasileiro, como o curupira, relacionado ao trabalho infantil doméstico. Cada peça estampará também frases como “criança precisa de proteção, não de patrão”. Apesar de ainda procurar mais recursos para produzir maior quantidade de baralhos, a Circo pretende focar seu trabalho nas jovens. “Nosso objetivo é provocar desejo de mudança nas participantes de nossos programas”, diz Maria Eneide.


Belém


Na região norte a campanha possui o mesmo perfil. O Cedeca-Emaús organizou as atividades em três etapas. Na primeira, realizada até agora, o foco foi a informação sobre a ilegalidade e os problemas gerados pelo emprego de crianças em residências. O lema é simples: “trabalho doméstico é coisa de adulto”. Foram distribuídas publicações com histórias de vida de crianças trabalhadoras. A segunda começa em abril e será mais agressiva, com estímulos à denúncia. Assim, as portas estarão abertas para a última fase, onde oficiais de justiça serão acionados e as ações partirão para outras cidades do estado.


Durante essas etapas a organização levará adiante seus programas de atendimento às famílias e de geração de renda, além de pressionar o poder público por intermédio dos Conselhos Tutelares. Hoje 200 meninas são atendidas por projetos do Cedeca, sendo que algumas já foram encaminhadas para empregos depois de mobilização do empresariado. No outro lado do problema, os municípios de Soure e Salvaterra –principais “exportadores” de crianças e adolescentes para Belém - são alvo de campanhas de fortalecimento da escola e da família para desestimular a migração. “Temos que deixar claro que trabalho doméstico não é trabalho para crianças”, diz Celina Hamoy, coordenadora do Cedeca-Emaús.


Recife


Na capital pernambucana, as atividades começaram cedo, em 2001, com uma pesquisa capitaneada pelo Centro Dom Helder Câmara (Cendhec). Foram entrevistadas 200 meninas que trabalhavam em casas de famílias de Recife, assim como foi traçado um panorama da sua situação. Os resultados foram editados no livro “Onde está Kelly – o trabalho oculto de crianças e adolescentes explorados no serviço doméstico do Recife”, lançado no mesmo ano. Estima-se que 18 mil crianças e adolescentes sejam exploradas no trabalho doméstico em Pernambuco, sendo que 42% delas estariam em Recife.


Com os dados na mão, foram feitas já em 2002 oficinas com 40 crianças. Elas tinham aulas sobre direitos e deveres – bases da cidadania. A avaliação positiva destas atividades resultou na ampliação do programa, que hoje conta com 40 meninas – 20 com menos de 16 anos e 20 com mais de 16. A previsão entretanto, é ampliar esse número para 247 jovens de 87 famílias recifenses. Para não criar empecilhos para as trabalhadoras, as atividades acontecem sempre aos sábados.


Além disso, estão sendo estudados três programas de rádios baseados em entrevistas com trabalhadoras, membros do governo e de organizações sociais que estejam por dentro do problema. “A comunicação é muito importante nesse processo”, ressalta Renato Marcelo Pinto, técnico do Cendhec.


 


Marcelo Medeiros

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