Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Artigos de opinião
Helena Matos*
A incidência de atos infracionais praticados por adolescentes vem crescendo nos últimos anos e, por esse motivo, tornando-se uma séria preocupação, não somente para suas famílias, autoridades competentes bem como para a sociedade, de uma forma geral, que sofre as consequências dessa violência. Por outro lado, registros do Juizado da Infância e da Juventude dão conta de que a maioria das infrações estão relacionadas, direta ou indiretamente, ao tráfico de drogas e que, com idade cada vez mais baixa, jovens e até crianças estão sendo atraídos para o mundo do crime.
Essa realidade faz com que aqueles que são popularmente denominados “pivetes” despertem cada vez maior temor e sejam encarados, pela sociedade, como pessoas perigosas, que devem ser excluídas de seu convívio através de internação em instituições corretivas. O adolescente, principalmente o proveniente de camadas mais pobres da população, não só é agente da violência, mas também vítima, como demonstram os dados oficiais. Segundo estes, um em cada dois brasileiros mortos entre 15 e 24 anos é assassinado. O Estado do Rio de Janeiro detém o triste recorde no cenário nacional apresentando o maior número de mortes. A situação no Brasil é tão grave que o número de jovens assassinados aqui é superior ao dos países que se encontram em estado de guerra.
O tráfico de drogas convoca cada vez um número maior de crianças de até doze anos. Esta é a sua força de trabalho preferencial, porque pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o menor só é considerado infrator a partir dessa idade. Até esse limite de idade não pode ser punido, e é encaminhado para os conselhos tutelares sendo posteriormente interno em abrigos, de onde pode sair a qualquer momento. Muitas vezes as crianças e adolescentes entram no tráfico por falta de expectativa profissional. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (Ibiss), 12.527 crianças e jovens de 8 a 18 anos trabalham hoje no tráfico de drogas em 232 favelas cariocas, sendo 5.773 com idades entre 15 e 17 anos. Nesta mesma faixa etária — segundo a pesquisa de empregos do IBGE de 2002 no Rio de Janeiro — estão empregados no mercado regular apenas 1,1% do universo de 287.837 adolescentes. Conclui-se que: menos de 3.200 jovens trabalham regularmente sem risco de serem presos ou mortos. A mesma sociedade que por um lado busca medidas paliativas para solucionar problemas da mais alta relevância, por outro, através delas tenta se eximir de qualquer responsabilidade no que tange à disparidade social que diariamente atua como uma fábrica de excluídos.
Ao ser promulgado em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) teve como propósito primordial oferecer proteção integral à criança e ao adolescente. Há, porém um abismo entre a lei escrita e sua execução, entre seu ideário e o que realmente se passa com relação às crianças e adolescentes em seu cotidiano. A situação é ainda mais complexa em relação ao adolescente em conflito com a lei. Considerados delinquentes, esses jovens geram sentimentos e reações hostis de parte da população e até mesmo de autoridades que teriam a função de protegê-los e educá-los. Estes não levam em conta as deficiências do Estado assim como não analisam o contexto sócio-econômico, político e cultural em que vivem os adolescentes mais pobres que são exatamente os que lotam as unidades ditas de ressocialização de jovens. Frente a um problema tão complexo como esse, é mais fácil culpar a família que não educou direito, o tráfico que arrebanhou o adolescente ou o próprio adolescente, por ter “má índole”. Parece não haver consciência da omissão de responsabilidade da própria sociedade civil bem como do Estado, havendo uma inequívoca negação quanto à enorme disparidade na distribuição de renda existente no Brasil. Fatores como a pobreza, apelo constante da mídia para a ilusão de ascenção social rápida, busca de tranquilização e auto-afirmação através do consumo da droga, falta de espaço e escolarização para um trabalho minimanente qualificado, incapacidade governamental para prover os mais pobres de condições mínimas para construção de uma vida digna, infância carente em todos os sentidos, insegurança própria da idade e violência como pano de fundo desse cenário lançam o adolescente no palco onde, através do ato infracional, coloca em xeque uma sociedade que o havia marginalizado desde o seu nascimento, saindo da invisibilidade para tornar-se um sintoma social.
O consumo e a venda da droga, responsável pela maioria dos atos infracionais, se revela, do ponto de vista individual, uma poderosa arma utilizada pelo jovem, a favor da negação de conflitos, medos e angústias, prestando-se ainda a expressar a rebeldia e a transgressão. Frequentemente esse adolescente que se insere no universo do tráfico de drogas, adota como ídolo, o marginal, o traficante, que surge no cenário da sociedade como o anti-herói e galga rapidamente a notoriedade através dos meios de comunicação. Impõe-se pela força, por despertar medo, deter o poder e o controle sobre sua comunidade, muitas vezes preenche a função paterna, quase ausente na construção da identidade de muitos adolescentes. É exatamente esse personagem que, muitas vezes, o jovem em conflito com a lei vai utilizar como figura identificatória; é ele que impõe limites de forma tirânica com objetivo de manter seu poder.
O adolescente pobre que busca o caminho do tráfico de drogas é, dentre outros fatores, fruto da histórica desigualdade social e de oportunidades existente em nossa sociedade e que vitimiza, há quinhentos anos, a população mais desfavorecida. Esse jovem é construído a partir da exclusão social em que vive, segundo a qual, conceitos como cidadania e manutenção de direitos humanos quase que só são utilizados no que se refere às classes média e alta, principalmente de cor branca.
* Helena Matos é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica e presidente do Fórum de Ação Social (www.fas.org.br.).
Este texto é um resumo da dissertação de mestrado "Sob as Penas da Lei: O Adolescente Sob Risco Social e Seu Contexto Familiar", apresentada por Helena em janeiro de 2003 como conclusão do curso de Mestrado em Psicologia da PUC-Rio.
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