Autor original: Viviane Gomes
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Carlos Penteado | ![]() |
![]() |
Um pedaço do Brasil Império continua vivo nas áreas rurais do Brasil - os quilombos. Não muito conhecidas ou divulgadas, tampouco valorizadas, as comunidades quilombolas - ou remanescentes de quilombos - perpetuam, quase 114 anos depois da abolição da escravatura, o modo de vida independente iniciado pelos negros e negras pioneiros que ousaram se rebelar contra a escravidão. No entanto, não sem algumas, ou melhor, muitas dificuldades, encarando preconceitos - não pela sua raça ou pela cor, mas pela forma de viver escolhida - e negligência dos poderes públicos, que deixam de cumprir o previsto na Constituição de 1988. Esta reconhece as comunidades remanescentes de quilombos e prevê que lhes sejam concedidos títulos de propriedade das terras em que vivem.
Existem hoje no Brasil 1.264 comunidades quilombolas inventariadas pela Fundação Cultutral Palmares, órgão governamental, ligado ao Ministério da Cultura, que tem entre suas atribuições encontrar mecanismos eficazes ao governo e à sociedade para a adoção de políticas afirmativas dos afro-descendentes. Nisto está incluído o inventário e o reconhecimento das áreas quilombolas. Hoje, apenas 42 são reconhecidas - o que significa que já foi elaborado um laudo antropológico sobre as mesmas e se reconheceu que, de fato, são remanescentes de quilombos. Ter o reconhecimento oficial, concedido pela Fundação Palmares, é um etapa para se chegar à titulação, condição em que se encontram apenas 38 comunidades, de acordo com os dados mais recentes.
Os números demonstram o que é experimentado na prática pelos quilombolas: a luta pela propriedade da terra - que a maioria ocupa há mais de 100 anos - é ainda o principal motivo de luta destas comunidades e de organizações que atuam em seu benefício. Esse problema é especialmente delicado, uma vez que as comunidades quilombolas dependem da terra para viver. Elas se sustentam através da agricultura de subsistência e vendem os excedentes para terceiros. É aí que reside a principal atividade econômico-social dessas comunidades, que, portanto, são duplamente ameaçadas com a possibilidade de perderem suas terras.
O antropólogo Aniceto Cantanhede, que desenvolveu pesquisas em seis comunidades quilombolas do Maranhão, lembra outras características que definem dos territórios remanescentes de quilombos. "O uso da terra é coletivo, com as pessoas trabalhando juntas nas plantações. Além disso, pessoas da raça negra são predominantes, mas existem indivíduos de outras raças. O principal fator de entrada destas pessoas nas comunidades é o casamento." Além disso, a religião predominante em praticamente todas as comunidades é o catolicismo, até por necessidades históricas de adequação vivenciadas por estas pessoas, desde a época escravocrata. Apesar disso, as práticas de religiões de matrizes africanas persistem na maioria dos grupos. "Existem os terreiros de tambor de mina ou terecô, que são os termos pelos quais é conhecido a umbanda no Maranhão", explica Cantanhede, com base nos estudos realizados por iniciativa da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e o Centro de Cultura Negra do Maranhão. Por causa da não-regularização fundiária de muitas comunidades, seu índice de acesso a políticas e serviços públicos é baixíssimo, até por influência dos donos das terras em que estão situadas.
Direito à terra
A Constituição de 1988 reconheceu, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos." Isto, no entanto, tinha de ser regulamentado por uma outra lei, que especificasse como isto seria feito. Em 2001, foi editado um decreto presidencial - o de nº 3.912, de 10 de setembro daquele ano - para cumprir tal função. O ato, no entanto, estabelece algumas normas que por um lado não agradam aos principais interessados - os quilombolas - e, por outro lado, não levam em conta as limitações de alguns órgãos do próprio governo em regularizar as terras.
Ao definir que a Fundação Palmares ficaria responsável desde a elaboração de laudos étnicos, culturais, históricos e sócio-econômicos até a conferência de titulação das terras demarcadas e provimento do registro no cartório de imóveis, o decreto não considera as limitações do órgão. "A Palmares não tem infra-estrutura à altura da demanda. Não temos recursos para indenização nem pessoal suficiente para estes processos de desapropriação", diz Luiz Fernando do Rosário Linhares, diretor de Proteção do Patrimônio Afro-descendente da Fundação. Além disso, as críticas mais comuns ao decreto defendem que é competência do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) tocar os processos de desapropriação de terras e titulação das comunidades.
Desde 1997, tramitava no Congresso Nacional o substitutivo da Câmara dos Deputados ao projeto-de-lei (PL) do Senado nº 129, de 1995, de autoria da então senadora Benedita da Silva. O PL detalhava mais os procedimentos da declaração de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos. Previa que o pedido de titulação poderia ser requerido por representantes ou simples membros das comunidades, entidades representativas agindo em seu interesse e o Ministério Público. O conjunto de possíveis requerentes era mais amplo ou, no mínimo, mais detalhado do que o previsto no decreto 3.912: "o processo administrativo para a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário de suas terras será iniciado por requerimento da parte interessada".
Além disso, o PL estabelecia que órgãos federais e estaduais competentes poderiam conceder a titulação, não só o federal, como afirma o decreto. Outro fator positivo do projeto-de-lei é prever o envolvimento de órgãos de terras nestes processos, não uma fundação de natureza cultural como a Palmares. Ironicamente, depois de aprovado na Câmara e no Senado o PL foi vetado no dia 13 de maio de 2002.
Apesar das dificuldades ainda encontradas, as comunidades quilombolas não desistem de ver suas terras regularizadas. Um exemplo disso é o trabalho que a Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO), realiza no Pará. O estado é um dos que mais têm comunidades quilombolas, contando com cerca de 250 destes grupos, de acordo com o projeto Mapeamento de Comunidades Negras Rurais conduzido pelo NAEA/UFPA. Lá, a ARQMO, que congrega 28 comunidades, já conseguiu a titulação para 18, em um trabalho desenvolvido desde 1989. "Das dez restantes, cinco já estão com os processos encaminhados e cinco estão dentro de unidades de conservação, o que dificulta o procedimento", explica Silvano Silva Santos, um dos coordenadores da associação e ele próprio um quilombola.
Ele lembra também que o número relativamente alto de comunidades quilombolas tituladas entre as associadas (algo pouco comum) se deve ao fato de terem começado muito cedo a luta pela regularização da terra. "Começamos um ano depois da Constituição, em um momento em que ninguém sabia o que eram os quilombolas, muito menos como fazer para desapropriar as terras em função deles", conta ele, que também recorda que está no Pará a primeira comunidade que obteve a propriedade da terra, a Boavista, em 1995. "Na época, como tudo era novo, tivemos que ser criativos. Batemos o pé e seguimos até hoje", orgulha-se. A ARQMO chama a atenção pelo pioneirismo e pela boa articulação de seus membros, moradores de áreas rurais, onde a informação e a conscientização sobre direitos não chegam com facilidade ou rapidez.
Meio ambiente e articulação política
Trabalho semelhante desenvolve a Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (ACONERUQ), no Maranhão. O estado é outro que conta com um dos maiores contingentes de grupos quilombolas. "A terra é nossa primeira e segunda mãe. E é por ela que nós lutamos", declara Ivo Fonseca, coordenador da ACONERUQ e egresso do quilombo de Frechal. Ele conta que esteve semana passada em Brasília, se reunindo com representantes do Incra e o recém-empossado presidente da Fundação Palmares, o professor e historiador Ubiratan Castro, para "discutir novos rumos" para os processos de regularização das terras de comunidades quilombolas.
Ivo - que desde 1974 está envolvido em ações para regularizar a terra em que vivem os remanescentes de quilombos - conta que no Maranhão eles são confrontados com outros problemas, não só a propriedade dos territórios. "Dependemos da terra para sobreviver. Os latifundiários estão desmatando as terras que cercam as nossas, transformando em pastagens e comprometendo a biodiversidade da região", denuncia o coordenador da ACONERUQ. Por causa de situações como a relatada, Ivo acredita que não basta se preocupar só com a luta pela terra, mas também com o tripé Educação, Cultura e Meio Ambiente.
No estado do Rio de Janeiro, os moradores da fazenda São José da Serra, quilombo existente há mais de 140 anos em Valença, enfrentam condições ainda piores. Os cerca de 150 moradores são todos descendentes da mesma família - a Nascimento. Na época do Império, o então proprietário da fazenda e dos escravos que nela viviam, doou verbalmente parte da propriedade para a família Nascimento. Entretanto, isto nunca foi concretizado no papel. Há dez anos, a fazenda foi vendida. "Nesse ponto, os moradores tiveram a certeza que jamais aquela promessa seria cumprida", diz Marcos André, coordenador do Grupo Jongo da Serrinha, organização que há quatro anos desenvolve atividades junto à comunidade quilombola. Os novos proprietários da fazenda não permitem a agricultura familiar, deixando os membros do grupo carentes do mais básico para sobreviver - alimentos para comer e, possivelmente, vender. Segundo Marcos André, o Jongo da Serrinha capacita os quilombolas da região, promove atividades culturais ligadas às suas raízes e contata autoridades públicas locais e federais, alertando-as para a situação dos moradores da fazenda São José da Serra e a necessidade de regularização de sua terra.
Um dos filhos mais ilustres da fazenda é Antônio Nascimento - ou Toninho, como prefere ser chamado. Filho de dona Zeferina, matriarca da família Nascimento, Toninho extrapolou as fronteiras do quilombo e das ações meramente de pressão empreendidas pelos que lutam em prol da regularização da terra e se tornou o primeiro vereador negro de Valença e, atualmente, Secretário de Cultura da cidade. Relata isto sem convencimento, consciente de que tem muito o que fazer pelos familiares do quilombo da fazenda São José. Além de já ter conseguido levar a luz elétrica para o local - o serviço só chegou há menos de seis meses ao local - teve sucesso também em levar programas governamentais de que nem a cidade de Valença desfruta. "As pessoas vivem praticamente na miséria. Elas até plantam algumas coisas, mas precisariam da ajuda do governo para conseguir vender e melhorar um pouco de vida. No entanto, o quilombo já conta com o cheque-cidadão [benefício concedido pelo estado do Rio de Janeiro], o que Valença não tem", lembra. Aos 55 anos, Toninho fala com a obstinação de adolescente e faz questão de registrar sua crítica quanto "aos negros e negras que conseguem posição e não fazem nada, esquecendo do passado. O discurso muda e traem a confiança de quem os colocou lá". Está registrado.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer