Autor original: Julio Cesar Brazil
Seção original: Artigos de opinião
Maria Cláudia Cardoso e Marcio André dos Santos*
O decreto-lei que obriga que as Universidades estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF) adotem cotas para candidatos que pertençam a grupos discriminados vem gerando expressivas críticas e, como já esperado, muita polêmica. Cedendo ao conjunto de reivindicações dos movimentos negros por políticas públicas de ação afirmativa e as resoluções que propõem medidas de discriminação positiva para negros – da qual o Brasil é signatário -, o governo do Estado do Rio de Janeiro estipulou que o concurso para o vestibular de 2003 destas universidades deveriam reservar 40% de suas vagas para alunos que se autodeclarassem "negros" ou "pardos". A lei estipula ainda que sejam destinadas 50% das vagas para alunos oriundos de escolas públicas.
Passo importante na redução da desigualdade no acesso ao ensino superior público, há, porém, um sério problema no que tange à formulação da lei. Estabeleceram como equivalentes dois padrões classificatórios para legislar em favor dos beneficiários da política de cotas que dificulta sobremaneira sua implementação: um baseado na noção de "cor" (pardo) e outro na idéia de identificação racial (negro). O IBGE usa como critério classificatório a noção de "cor" estabelecendo basicamente cinco categorias censitárias: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. No entanto, para os movimentos negros e parte dos especialistas na questão racial, a idéia de "cor" é apenas mais um dos componentes utilizados para auferir a idéia de "raça" e, mesmo assim, não é um critério objetivo válido. Para definir "raça" são utilizados outros tantos elementos, tais como: ancestralidade, matriz cultural, identidade etno-racial e o sentimento de pertencimento a um grupo que historicamente partilha a mesma experiência de discriminação e subordinação racial. Evidentemente que tal noção não se estende a todo e qualquer contexto social, sendo entendido somente no interior de relações sociais específicas.
Para reduzir margens de arbitrariedade e erro, a lei poderia ter sido formulada da seguinte maneira: "Serão reservadas cotas de 40% para candidatos autodeclarados "negros"; especificando que são considerados "negros" aqueles inseridos no conjunto de noções "definidoras" de "negritude" citado acima. Vale salientar que este mesmo conjunto de noções é pertinente na construção de uma identidade branca ou indígena, exceto pelo sentimento de subordinação racial no caso dos brancos no Brasil. Por outro lado, salientamos que não nos cabe invalidar o sistema de classificação por cor utilizado tradicionalmente pelo IBGE; no entanto, acreditamos que este critério não dá conta da complexidade da composição étnica brasileira.
Suponhamos que diante da reflexão desenvolvida acima tenhamos resolvido a questão da classificação etno-racial, porém nos deparamos com um outro problema que é o questionamento por setores da sociedade sobre a ampliação do número de vagas para o grupo negro. O estabelecimento do percentual de 40% para negros na UERJ e na UENF corresponde aproximadamente ao contingente populacional de negros (conjunto de "pretos" e "pardos") no estado, verificado no último censo do IBGE (2000). Portanto, a legitimidade da lei de cotas se estabelece dentro da compreensão de uma lógica matemática simples, a de que devemos ter pelo menos 40% de negros nos cursos das já citadas universidades – ainda que a cota racial não seja necessariamente a mais adequada medida de ação afirmativa existente. Interessante notar que os protestos contrários às cotas geralmente ignoram – ou omitem – o fato de que mais de 70% das vagas nas universidades públicas estejam concentradas para o grupo branco. Afinal, cotas resolveriam, isoladamente, o problema da exclusão dos negros da universidade? A resposta não poderia deixar de ser negativa, na medida em que cotas e mesmo outras ações afirmativas não visam modificar estruturalmente o sistema vigente no ensino superior. Ao mesmo tempo são medidas revolucionárias, pois colocam na ordem do dia a responsabilidade do estado e da sociedade brasileira com a redução da desigualdade entre negros e brancos e põem a nu a perversidade do racismo.
Dito isto, analisemos a questão do "mérito". Sabemos que segundo as diretrizes do MEC o aluno(a) estará apto(a) para freqüentar uma universidade, se ele(a) concluir o Ensino Médio e for aprovado(a) no vestibular. O vestibular foi criado para comprovar conhecimentos básicos - o chamado "mérito" - adquiridos ao longo da trajetória escolar, estabelecendo uma pontuação mínima para o ingresso. Em outras palavras, as cotas visam possibilitar o ingresso daqueles alunos que numa outra situação – por exemplo, num vestibular para medicina menos concorrido em outro estado – atingiriam a média necessária para cursar o ensino superior e não o fazem porque disputam vagas com alunos que tiveram condições de estudar em escolas com padrões de ensino comparados ao das elites européias. Será que os tais cursos de "prestígio", muito concorridos nos grandes centros urbanos e com menos procura nas outras regiões, formam profissionais desqualificados nestas regiões? Ou seja, acreditamos que não há relação direta entre a pontuação obtida no exame de vestibular – se elevada ou não - e a qualidade da formação profissional futura, o que não nos redime do questionamento e da cobrança por um ensino fundamental e médio com mais qualidade. As cotas não fraudam e nem põe em risco o princípio ideológico do mérito estabelecido, o que é uma pena.
Corroborando do pensamento do compositor Marcelo Yuka, "paz sem voz não é paz, é medo". É tempo de deixarmos de silenciar injustiças cometidas em nome de uma suposta igualdade formal que nunca contemplou os negros, salvo algumas poucas exceções (Milton Santos, Muniz Sodré, Benedita da Silva, Paulo Pahim ...). Vale lembrar que tais exceções não são válidas para comprovar a eficácia da mobilidade social, através de políticas universais - vide a situação de subordinação social em que se encontra a maioria da população negra deste país. Sendo assim, acreditamos que as leis que propõem políticas específicas, neste caso em especial as reservas de vagas por cotas na UERJ, devem ser entendidas como um esforço conjunto da sociedade fluminense na tentativa de diminuir as desigualdades sociais e raciais no estado. Numa perspectiva positiva, o grupo hegemonicamente privilegiado (brancos), erroneamente considerado prejudicados, estariam contribuindo para reparar injustiças históricas. Ainda com a letra de Yuka perguntamos: "Qual a paz (social) que eu não quero (nós, cidadãos) conservar pra tentar ser feliz?"
*Maria Cláudia Cardoso é historiadora e Marcio André dos Santos é cientista social, ambos formados pela UERJ.
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