Por Flavia Fascendini com a colaboração de Maria Cruz CiarnielloQual é o papel dos Estados com respeito à reciclagem de computadores? Se a tecnologia não é neutra, a reciclagem da mesma também não o é. O presente artigo explora a faceta política da reciclagem de computadores na América Latina e localiza a região num mapa-múndi em que os movimentos transfronteiriços de resíduos informáticos geram grande polêmica.Quando alguém deixa de usar algo, sempre aparece outro que pode aproveitá-lo. Isso ocorre inclusive de um país a outro, com computadores e outras partes de equipamentos informáticos. E este processo, apesar de parecer simples, é em realidade muito complicado.O modelo de transferência de computadores do Norte para o Sul geralmente supõe a seguinte seqüência de atores: um doador estrangeiro, um sócio distribuidor, as organizações receptoras doadoras e as organizações beneficiárias.O doador estrangeiro é quem realiza a doação sem custo, depois de selecionar, embalar e transladar os equipamentos; o sócio distribuidor se responsabiliza pelo ingresso dos equipamentos, o recondicionamento e instalação do sistema operacional Linux e posterior monitoramento; as organizações receptoras doadoras incorporam estes equipamentos recebidos a seus projetos de inclusão digital, selecionando o público beneficiário e distribuindo os computadores; finalmente, as organizações beneficiárias devem encarregar-se da manutenção e de funcionar como provedoras para as pessoas usuárias que ali se aproximem para usar as máquinas.Limites ou contenção?Na Conferência Ministerial sobre a Sociedade da Informação realizada em 2008 em San Salvador se estabeleceu como uma das metas do Plano de Ação Regional visando 2010, promover o desenho de estratégias nacionais, a regulamentação sobre o manejo dos resíduos tecnológicos para responder ao impacto ambiental que causam e aproveitar seu potencial em programas de reciclagem e recondicionamento.Por sua parte a denominada Agenda 21, programa de ação surgido da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada em 1992 no Rio de Janeiro, Brasil, viabiliza mudanças nos padrões de consumo, redução, reutilização e reciclagem de resíduos sólidos. Algumas de suas propostas têm que ver com a promoção da aplicação de incentivos mercadológicos, econômicos e legais para a reciclagem, recuperação e uso repetido de material de lixo eletrônico.O Convênio da Basiléia é um tratado internacional assinado em 1989 e ratificado por todos os países da América do Sul, que procura diminuir tanto a geração como os movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e considera o lixo eletrônico dentro desta última definição.O artigo 14 do Convênio da Basiléia estabelece a criação de centros regionais de capacitação e transferência de tecnologia em função das necessidades específicas das diferentes regiões e sub-regiões. A representação regional para a América Latina do Convênio da Basiléia, o Centro Regional do Convênio da Basiléia para a América do Sul, encontra-se localizada na Argentina. “Cada centro de capacitação e transferência mantém sua autonomia. A idéia é que através do Centro se tente implementar uma política global”, afirma a Dra. Leila Devia, atual diretora do Centro Regional para a América do Sul.Um dos pontos que se destaca deste convênio é o que proíbe aos países ricos desfazer-se dos resíduos mediante seu transporte a países pobres. Este tratado monitora o impacto ambiental das operações de depósito, recuperação e reciclagem após o movimento transfronteiriço dos resíduos perigosos.Existem Estados exportadores de refugos perigosos, Estados importadores e Estados de trânsito, através dos quais se projeta efetuar um movimento transfronteiriço. É sabido que da Europa e dos Estados Unidos partem barcos com toneladas de lixo eletrônico, cujos destinos são fundamentalmente Índia, Quênia e China.Aparecem duas questões importantes que estruturam o Convênio da Basiléia: os países subdesenvolvidos têm uma capacidade limitada para manejar refugos perigosos e, ao mesmo tempo, uma preocupação latente por controlar o tráfico ilícito transfronteiriço dos mesmos. E apesar de que por um lado os países mais pobres têm a necessidade de receber doações de computadores, também apresentam por outro a necessidade de prevenir a entrada de lixo eletrônico.No Convênio da Basiléia não se faz distinção entre a eliminação e a reciclagem, o que significa que no mencionado tratado figuram indistintamente artefatos que se reciclam e que se eliminam. A América Latina se encontra nessa encruzilhada. Se bem que todos os países latino-americanos fazem parte do Convênio da Basiléia, ainda existe o risco de que se importem resíduos eletrônicos sob a fachada de artefatos reutilizáveis. As crises econômicas nacionais são portas que se abrem para o anterior, desafiando ao máximo os mecanismos de auditoria e certificação que possam bloquear seu ingresso. Ante esta situação, podem usar-se duas saídas: outorgar à alfândega as ferramentas necessárias para distinguir entre artefatos usados reutilizáveis e resíduos eletrônicos destinados ao descarte, ou a proibição geral da entrada de qualquer tipo de artefato eletrônico usado no país.Alguns propõem uma terceira via, mais controversa, que se relaciona com outro ponto áspero do tratado: retirar dos resíduos eletrônicos o rótulo de resíduo perigoso. O argumento que respalda dita postura se baseia em que apesar de que o Convênio da Basiléia ser uma ferramenta para prevenir a circulação transfronteiriça desordenada de resíduos perigosos como os eletrônicos, outorgar o rótulo de “resíduo perigoso” ao lixo informático parece somente servir para dificultar ao extremo a circulação destes recursos, tão apreciados para muitas organizações que trabalham em seu recondicionamento.Devia responde ao anterior destacando que resulta muito difícil controlar o tráfico ilícito que provem de refugos encobertos, “geralmente resíduos que ingressam nos países importadores sob a etiqueta de reutilização, quando na realidade é muito difícil medir a solvência tecnológica destes aparelhos”.Neste sentido, Devia sustenta que apesar das realidades dos diferentes países da América do Sul serem distintas e em escala diferenciada, a situação é bastante similar no que diz respeito à importação de resíduos perigosos e ao manejo que em cada país se realiza dos mesmos.Um aspecto fundamental que destaca Devia é a notória falta de articulação entre os diferentes atores que atuam e intervêm num sistema de gestão. O que significa isto? A necessidade de “institucionalizar” tal sistema através do Estado.Desde 2008 na Argentina, vem se levando adiante um âmbito de discussão sobre um projeto de lei elaborado pelo senador Daniel Filmus, que espera ser discutido no Congresso Nacional. Desta discussão participaram diferentes atores que atualmente se ocupam da reciclagem e recondicionamento de material informático com fins sociais e educativos. “Dois anos atrás se deu uma interação bastante importante em relação ao tema do lixo eletrônico. Atualmente, o tema está um pouco relegado, mas igualmente seguimos trabalhando”, afirma Devia.A diretora do Centro Regional da Basiléia enfatiza a necessidade de promulgar uma lei nacional sobre gestão de resíduos de artefatos elétricos e eletrônicos (RAEEs) na Argentina, a qual permitiria instaurar um marco legal e institucional sobre um sistema de gestão que requer uma ação política do Estado. “O tema é acionar. O aporte de todos é importante, mas se não há um empuxo institucional, um planejamento, é difícil”, agrega.É possível encontrar uma situação similar no Brasil, onde o Senado tem em suas mãos um projeto de lei que estabelece prazo para que computadores, componentes de computadores e equipamentos de informática em geral comercializados no Brasil, atendam a requisitos ambientais e de eficiência energética.Na justificativa do projeto se argumenta que “como qualquer atividade humana, a produção, o uso e o descarte de computadores e outros equipamentos de informática produzem impacto ambiental”. E continua: “com a popularização dos computadores, tanto no âmbito profissional como no doméstico, problemas antes ignorados ganham escala e, por conseguinte, importância. Nesse contexto, três das questões mais importantes dizem respeito à presença de produtos perigosos; ao consumo e ao desperdício de energia; e à possibilidade de reciclagem de partes e componentes”.Estilo latinoamericanoÉ de amplo consenso que uma das mais exitosas experiências de recondicionamento de computadores na América Latina – se não a mais exitosa - é a do Computadores para Educar (CPE), levada adiante pelo Ministério das Comunicações, o Ministério da Educação Nacional e o Serviço Nacional de Aprendizagem do governo da Colômbia.Tal como se explica no sítio web do CPE, trata-se de um “programa de reuso tecnológico cujo objetivo é fornecer acesso às tecnologias da informação e comunicação às instituições educativas públicas do país, mediante o recondicionamento, montagem e manutenção de equipamentos, e promover seu uso e aproveitamento significativo nos processos educativos, através da implementação de estratégias de acompanhamento educativo e apropriação de tecnologias da informação e comunicação”.Os computadores descartados por entidades estatais e empresas do país são recebidos nos cinco Centros de Recondicionamento que foram inspirados na experiência do programa “Computers for Schools” do Canadá. Ali se recebem os equipamentos, são desmontados, suas partes são revisadas e direcionadas a diferentes seções de acordo com o tipo de peça que se trate. Uma cifra interessante: os centros têm a capacidade mensal de produção de mais de 1.500 computadores.Um aspecto interessante desta experiência é que se usam procedimentos e padrões muito precisos para todos os processos, desde o momento em que os computadores chegam ao Centro de Recondicionamento até que são entregues ao beneficiário, e isto é extremamente útil dada a enorme variedade de modelos e marcas de computadores recebidos. São seis os padrões técnicos que se utilizam para operar com os equipamentos recebidos e cada padrão se corresponde com um pacote de software que condiz com a capacidade do computador em questão, de forma tal que se consiga extrair do equipamento seu máximo rendimento.Em forma similar, o Projeto Computadores para Inclusão é uma iniciativa do governo federal do Brasil e outras entidades associadas, que oferece equipamentos de informática recuperados a telecentros comunitários, escolas públicas e bibliotecas para colaborar com sua informatização.Como funciona o Projeto CI? Órgãos governamentais e empresas privadas doam computadores e seus componentes aos denominados Centros de Recondicionamento de Computadores (CRCs), que são lugares especialmente preparados para receber, recondicionar, armazenar e entregar equipamentos, além de descartar em forma ambientalmente correta seus componentes não utilizáveis.Há CRCs em Porto Alegre, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, além de dois que se encontram em processo de abertura na Bahia e no Pará. Lá trabalham e são capacitados centenas de jovens que aprendem um ofício e ampliam suas perspectivas de inserção no mercado de trabalho, ao ganhar formação e experiência. As escolas públicas, bibliotecas e telecentros comunitários enviam seus projetos de inclusão digital para participarem de um processo de seleção para receberem os equipamentos recuperados. Até 2008, foram mais de 500 as iniciativas de inclusão digital beneficiadas pelo projeto.Por sua vez, o Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (INTI) da Argentina é um organismo público que conta com mais de meio século de história. Dentro do mesmo funciona o Subprograma Gestão Integral de Resíduos Sólidos Urbanos, que desenvolve intervenções locais para gerar consciência ambiental e um melhor tratamento dos resíduos, envolvendo a todos os atores participantes: vizinhos, organizações sociais, recicladores e governos municipais. Héctor González, coordenador do subprograma, destaca permanentemente o círculo virtuoso que se inicia com o tratamento de resíduos eletrônicos, seguido pelo cuidado com o meio ambiente, a geração de renda e a inclusão social.“A missão neste caso é contribuir para a qualidade de vida”, aponta González: primeiro, através da recuperação de equipamentos, que é um tema fundamentalmente ligado ao meio ambiente e que implica uma melhor disposição dos elementos perigosos e geração de possibilidades de trabalho. E, por outra parte, através da inclusão digital, “que significa docentes com possibilidades de capacitar-se melhor e transladar essa capacitação para os jovens e, segundo, educandos com possibilidade de aprender, o que lhes permite ter no futuro uma aptidão para o trabalho e possibilidades de inclusão”.“Sempre temos que ter uma posição política sendo um organismo público”, enfatiza o coordenador do INTI. Ainda mais clara deve ser no tema de resíduos de aparelhos elétricos e eletrônicos, pois como explica González, é um campo que “está meio indefinido”. “Como elemento em si mesmo é um resíduo domiciliar e como elemento desarmado contém elementos tóxicos. Então há uma zona cinza no meio com a que todo mundo pode fazer-se de distraído”.Agora: que papel assume as organizações sociais neste cenário? Será que são elas quem acabam arcando com as zonas cinza? O próximo capítulo desta investigação consiste numa entrevista a membros da Fundação Equidad da Argentina, uma entidade sem fins lucrativos que tentou, sem muito sucesso, articular-se com o Estado e conseguiu o contrário com as empresas.“O projeto que deu origem a este trabalho foi o ganhador da Bolsa AVINA de Investigação Jornalística. Os conceitos, opiniões e outros aspectos do conteúdo da investigação são responsabilidade exclusiva do autor e/ou meio”.“El proyecto que dio origen a este trabajo fue el ganador de las Becas AVINA de Investigación Periodística. Los conceptos, opiniones y otros aspectos del contenido de la investigación son responsabilidad exclusiva del autor y/o medio”.
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