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Correndo do tabaco

Autor original: Marcelo Medeiros

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Este ano entrou em pleno vigor a Lei 10.167/00, que proíbe qualquer propaganda de cigarros fora dos pontos de venda. Apesar de aprovada em 2000, só agora ela poderá ser aplicada plenamente. Os três anos de carência foram um pedido da indústria tabagista, que temia perder contratos e dinheiro já investido. Entretanto, com menos de três meses de estar plenamente válida, já se detectam tentativas de burlar essa norma em eventos culturais e esportivos, como o Grande Prêmio de Fórmula 1 brasileiro, que acontece em Interlagos, São Paulo, no dia 6 de abril. As empresas alegam que não estão patrocinando um evento, mas sim equipes e pilotos e que isso seria permitido pela lei.


Esse tipo de propaganda traz riscos para a saúde pública, pois atrai novos consumidores, principalmente os mais jovens, que associam o cigarro à excitação do esporte. Outras tentativas de promover o tabaco estão em andamento, apesar de ilegais. Todas, porém, devem acabar para o bem da saúde pública. É o que defende Tânia Cavalcanti, coordenadora do Programa Nacional de Controle do Tabagismo e outros Fatores de Risco de Câncer, do Instituto Nacional do Câncer, em entrevista à Rets. Para ela, a responsabilidade social das empresas tabagistas desaparece quando o lucro está em jogo e isso traz conseqüências também para a outra ponta da cadeia produtiva – os agricultores. De propagandas ao uso exagerado de agrotóxicos, passando pela venda de maços mais baratos em eventos patrocinados – inclusive a menores de idade -, a indústria, segundo Cavalcanti, está prejudicando demasidamente os cidadãos. Segundo ela, um passo importante contra as corporações foi a Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde, realizada de 17 a 28 de janeiro na sede da OMS, em Genebra. Tânia participou do evento e conta algumas de suas resoluções.


Rets - Em janeiro finalmente entrou em pleno vigor a lei 10.167/00, que proíbe todo tipo de propaganda de cigarro. Por outro lado já se sabe de movimentos para burlar a lei, como é o caso da Fórmula 1. Isso é verdade?


Tânia Cavalcanti - Já fui procurada por jornais para comentar esse assunto. A organização da Fórmula 1 contratou juristas para achar brechas na lei, que segundo eles, não era clara e dava margem a interpretação. Para mim, a legislação é clara – o patrocínio é proibido. A lei entrou em vigor em 2000, mas foi dado um prazo após negociações, das quais fiz parte assim como as empresas tabagistas, o governo e organizações sociais. Para minha surpresa, estou vendo que a corrida vai acontecer com patrocínio. O argumento usado é que não há patrocínio ao evento, mas, sim, às escuderias e uniformes dos pilotos. Por outro lado, a lei é clara. É proibida a propaganda, que só é permitida na parte interna de pontos de venda. Ou seja, é uma tentativa de infringir a lei, uma desmoralização. Nós discutimos, todos os segmentos interessados foram ouvidos – o Conar (Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária), patrocinadores e TVs. Até um debate na mídia foi feito e no final a lei foi aprovada com a modificação, com uma parte entrando em vigor só em 2003.


É uma situação complicada. A Bélgica foi pressionada e tirada do circuito de Fórmula 1. No Brasil, pelo menos para nós, não chegou nenhuma negociação de adiamento ou cancelamento da corrida. Na França, as marcas não aparecem, os carros vão para a pista com uma faixa em branco no lugar das marcas de cigarro. Por aqui, eles não tentaram negociar, foram logo em busca de brechas na lei. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) define propaganda como qualquer forma de divulgação, de acordo com a resolução 15 de 2003. Enfim, é uma clara violação à lei. Mas é bom salientar que a saúde pública não é contra a Fórmula 1.


Rets - Além da Fórmula1, há outras tentativas de burlar a lei?


Tânia Cavalcanti - Várias. A indústria sempre procura formas alternativas de propaganda, como festas. Recentemente minha filha esteve em um evento onde artistas de circo, bailarinos e outras pessoas vestiam roupas com marcas de cigarro. E os maços eram vendidos ainda mais baratos! Veja bem, não é patrocínio do produto, mas da empresa que o fabrica. Outro exemplo é a inauguração de restaurantes com o nome da corporação. Há ainda a divulgação via cadastro. Algumas revistas vêm com encartes onde os leitores enviam termos de aceitação de recebimento de propagandas. Mas não há controle de idade. São vários caminhos para se chegar ao consumidor final, principalmente os jovens.


Rets - É possível mensurar as conseqüências da associação da imagem dos cigarros com eventos culturais e esportivos?


Tânia Cavalcanti - A revista inglesa The Lancet recentemente publicou uma pesquisa feita entre crianças fãs de F-1 e as que não assistiam corridas. As que assistiam tinham mais probabilidade de fumar do que as outras. O interesse dos fabricantes de cigarro na F-1 é porque há retorno. Houve mais esclarecimentos a partir dos processos que correram na Justiça norte-americana contra as empresas. Um funcionário furtou documentos que lhe pareciam suspeitos e com conteúdo perigoso e um dia entregou à imprensa. Um deles dizia que “estamos na Fórmula 1 não por causa do esporte, mas porque nos juntamos a ele para fazer publicidade de nossos produtos”. A F-1 tem visibilidade mundial, logo seu retorno é de ouro –associar o produto ao ídolo, à roupa, marca a criança como se aquilo fosse um ideal de vida.


Na questão cultural, há uma associação com momentos de prazer. Minha filha é fumante, foi a um evento onde havia cigarro mais barato e gente bonita. É uma representação positiva da marca. As propagandas não falam da vantagem de um produto sobre outro, mas os liga a modos de ser. O Marlboro é com corrida, com uma vida country, o Free com liberdade, por exemplo.


Rets - Há um acordo entre a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) e a União Européia que estabelece 2006 como prazo final para a propaganda de cigarros. Em casos contrários haveria expulsão do circuito. Valeria a pena esperar?


Tânia Cavalcanti - Em negociações em bloco há países com leis mais avançadas e outros menos. O que não quer dizer que países que queiram avançar não avancem. Flexibilizar vai fazer mais jovens se associarem ao cigarro. É o esporte ideal para patrocínio. Tem glamour, é excitante e depois do futebol é o esporte mais assistido do mundo. O que podemos esperar?


O GP deveria acontecer sem patrocínio. Outros aconteceram e a F-1 não faliu. Quando você bane propaganda, o consumo diminui.


Rets - Como você avalia a lei? Ela será eficiente no Brasil?


Tânia Cavalcanti - Baseada na experiência de outros países, acredito que sim. A Finlândia, por exemplo, baniu a propaganda em 1978 e, em 1996, verificou que o consumo havia caído 37%. Na Nova Zelândia, baniram em 1990 e houve até agora 21% de diminuição no consumo. Até o Banco Mundial recomenda o banimento. A restrição faz diminuir o consumo. Ceder novamente seria um contrasenso para um país reconhecido pelo trabalho antitabagista como o Brasil.


Rets - Que outras ações poderiam ser tomadas para evitar novos fumantes?


Tânia Cavalcanti - A educação nas escolas e aumentar o preço dos maços via impostos. O cigarro ainda é muito barato. O Brasil é um dos países que mais taxa o tabaco, mas como o custo é baixo, ele termina barato. Há ainda o contrabando, mas a Receita Federal já está agindo. O contrabando, aliás, é um problema de saúde pública pois faz entrar produtos mais baratos e com “qualidade” duvidosa. Digo qualidade entre aspas pois a questão é entre pular do décimo ou do nono andar.


O acesso físico também deve ser dificultado. É importante que se cumpra a lei que proíbe a venda para menores. Há cigarro sendo vendido em prateleira de supermercados e em máquinas automáticas, que no Brasil ainda não existem, mas é uma das principais portas de acesso para menores. Estive em Genebra e fotografei uma máquina que vende biscoito de chocolate e maços de cigarro. Há uma movimentação para importar taismáquinas, mas já há um projeto-de-lei contra.


Rets - Qual é a sua avaliação sobre a Convenção-Quadro, que teve um encontro há duas semanas em Genebra?


Tânia Cavalcanti - A Convenção é um marco para a saúde pública. Ela não é um teto, é o mínimo que os países devem fazer. Quem puder banir, que bana. Os que tem limitação constitucional, que restrinjam. Uma das deliberações é que ao menos 30% das faces das embalagens de cigarro devem conter mensagens de advertência. Outra é a proibição de termos como “light”, que induzem a uma certa segurança. Os países devem procurar também políticas de taxação que aumentem os preços. Além disso, devem evitar o fumo passivo, proibindo o consumo em lugares fechados.


São iniciativas bastante positivas para os países que venham a adotá-las e o Brasil está entre eles. Por aqui, há 15 anos, a indústria sempre vetava qualquer tentativa de cercear a propaganda. Hoje, com esse documento, ela está acuada.


Rets - Como as empresas têm reagido a essas medidas?


Tânia Cavalcanti - Elas tentam dissuadir os Estados. Houve países que levaram representantes da indústria do tabaco à Convenção-Quadro. Os mesmos que tentaram emperrar a negociação. Eles tentaram negociar acordos voluntários ao invés de leis. Alegaram redução de empregos, falência de fumicultores etc. Mas o que se pretende é que as pessoas não morram de uma causa evitável. Não temos que ficar parados se alguém vai perder emprego. Aliás, essa redução já vem acontecendo há tempos, é um processo lento que envolve a automação da produção, por exemplo.


Rets - Como os fumicultores vêem essa questão?


Tânia Cavalcanti - Há uma associação, a Afubra (Associação dos Fumicultores do Brasil), que na verdade é porta-voz da indústria do cigarro no governo. Ela alega que as medidas irão prejudicar os fumicultores, mas representa a minoria latifundiária. A maior parte dos produtores é de pequenos agricultores, que desejam deixar a produção de fumo, mas ainda não encontraram outra cultura tão rentável. Porém, já há alternativas. O projeto Esperança, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, é um deles, onde os fumicultores deixaram de plantar fumo e estão dando certo. Mas eles possuem banco para financiar a produção, formaram uma cooperativa etc. A convenção estimula a busca de alternativas viáveis como esta.


Rets - Há problemas de saúde que acometem os agricultores de fumo?


Tânia Cavalcanti - Eles acabam absorvendo nicotina na colheita. Há 16 tipos de agrotóxicos exigidos para a qualidade do fumo. Essa cultura envolve basicamente agricultura familiar, que se utiliza de mulheres e crianças para baratear o custo. Por isso o maço sai barato. O uso de tantos produtos leva à intoxicação pela folha do fumo, que acaba provocando a doença da “folha verde”. É um fator a mais para repensarmos o consumo de cigarros. Fui à Santa Maria, em julho, para seminários que instruíam como substituir as culturas. A principal razão de abandono da fumicultura é o reconhecimento do mal que ela causa.


Rets - Há ações anti-tabagismo programadas para acontecer durante o GP de Fórmula 1 no Brasil, que será realizado no dia 6 de abril?


Tânia Cavalcanti - Não há nada programado, mas sabemos que ONGs devem fazer manifestações. A mídia deve cobrir o tema e a sociedade civil precisa dar suporte à causa. Quero que a Fórmula 1 aconteça, mas sem patrocínio de cigarros. Não desejo que ela acabe. Não podemos continuar a assistir à infração da lei.


Apesar do discurso de responsabilidade social das empresas de cigarro, quando há oportunidade de lucro, ninguém é responsável. Fico triste com isso, mas com a sociedade civil do nosso lado, ganha a saúde pública.


 


Marcelo Medeiros

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