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Vida que segue

Autor original: Fausto Rêgo

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O rosto corado pelo sol, os poucos cabelos, a pele branca. Um dos braços se apóia em um galho de árvore; o outro, estendido, é abraçado por um uacari-branco – primata raro, de pêlo claro, cabeça calva e cara vermelha. A imagem, uma entre tantas, compõe um retrato fiel da integração do biólogo José Márcio Ayres com a natureza que sempre defendeu ao longo de 49 anos de uma existência prematuramente encerrada por um câncer, no dia 7 de março.

Foi justamente ao pesquisar o macaco uacari-branco para sua tese de doutorado pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, que Ayres chegou pela primeira vez à região que mudaria o rumo de sua vida, na confluência dos rios Solimões, Japurá e Paraná do Aranapu, no município de Tefé, no oeste do estado do Amazonas. O uacari é encontrado apenas na Amazônia e particularmente naquela região, conhecida como Mamirauá (palavra de origem indígena que significa filhote de peixe-boi).

Seu interesse por primatas vinha desde a infância. Em 1976, formou-se biólogo pela Universidade de São Paulo (USP). Aos 20 anos, tornou-se administrador do zoológico de Ribeirão Preto. Pouco depois, iniciou o curso de Mestrado em Ecologia do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde começou a orientar sua carreira para a gestão de unidades de conservação que pudessem frear ameaças à biodiversidade brasileira. O doutorado em Cambridge, finalmente, o faria encontrar-se com o seu ideal, materializado em um território de 1.124.000 hectares: a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

A luta pela criação da reserva teve início, formalmente, em 1985, quando a proposta de implantar uma área de proteção para o uacari-branco foi encaminhada à Secretaria Especial do Meio Ambiente. Cinco anos depois, com o decreto nº 12.836, de 9 de março de 1990, o governo do estado do Amazonas oficializaria a criação da Reserva Ecológica Mamirauá.

Mas havia ainda um problema: o status de reserva ecológica determinava que a população local deveria se retirar da área, contrariando o que José Márcio Ayres imaginara. "Manter as populações ribeirinhas será, neste caso particular, um aumento expressivo na fiscalização, que não poderia ser atendida de maneira eficiente pelos órgãos federais competentes", defendia.

Neide Esterci, presidente do Conselho Diretor do Instituto Socioambiental (ISA) lembra que o ambientalista recebeu duras críticas na época. "Os ‘conservacionistas mais radicais’ defendiam a intocabilidade necessária aos espaços protegidos", recorda ela em artigo publicado no site do ISA. Ayres, no entanto, rebatia argumentando que de outra forma seria impossível garantir a sustentação política de uma reserva localizada em uma área de várzea, de grande importância para a economia regional. Tornar o ser humano parte do processo teria, portanto, o duplo efeito de estimular a preservação ambiental e combater a pobreza.

Em 1996, a conquista: a área passou a ser denominada Reserva de Desenvolvimento Sustentável, o que garantiu a permanência dos cerca de 6 mil integrantes das comunidades locais. Para geri-la e tocar adiante o projeto, Ayres reuniu uma equipe de pesquisadores e criou a organização não-governamental Sociedade Civil Mamirauá – hoje Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. A ONG é responsável por uma série de atividades de pesquisa, educação, preservação e desenvolvimento regional a partir do manejo sustentável dos recursos naturais.

Andréa Pires, atual diretora de Alternativas Econômicas da entidade, conheceu José Márcio durante o mestrado na Universidade Federal do Pará (UFPA). Em 1992, convidada por ele, juntou-se ao grupo. "A reserva me seduziu, me cativou", confessa. Ela descreve o ex-mestre como uma pessoa que levava a vida em função dos próprios ideais e investia neles tudo o que ganhava.

Outro companheiro do Instituto Mamirauá, o biólogo Helder Queiroz, destaca no amigo o talento para criar estratégias que modificaram o cenário da conservação ambiental em todo o mundo e a sua imensa capacidade de aglutinação. "Márcio era capaz de juntar em torno de si um largo espectro de colaboradores de todas as áreas, dentro e fora da academia", relata. "Era este predicado que lhe garantia livre trânsito em todos os meios e respeito em todos os campos. Baseado nele, construiu uma rede de apoio singular que permitiu transformar em realidade suas idéias pouco ortodoxas".

Ayres recebeu inúmeros prêmios nacionais e internacionais, mas manteve a simplicidade que o fazia conviver com os caboclos como se fosse um deles. Em mensagem de condolências enviada ao instituto, a professora Jane Felipe Beltrão, do Departamento de Antropologia da UFPA, observa o tratamento dedicado ao biólogo pelos moradores da região. "Ele era reverenciado. Não era a reverência cultivada pelos sábios, mas por um igual que pelejava com eles pela manutenção da várzea, por uma vida digna, por um dia de chuva ou de sol sem temores", diz ela.

José Márcio Ayres foi responsável também pela criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, que, juntamente com Mamirauá e o Parque Nacional do Jaú, formavam um grande núcleo de preservação na floresta amazônica. Pesquisador do Museu Emílio Goeldi, de Belém, com diversos estudos publicados, o biólogo deixou uma obra ainda inédita no Brasil. Ele é um dos autores do livro "Grandes Áreas Naturais: as Últimas Áreas Silvestres da Terra", organizado pelas organizações Conservation International e Agrupación Sierra Madre.

Ao descobrir que tinha câncer, quase um ano e meio antes de morrer, Ayres começou a se preocupar com o futuro do sonho ao qual se dedicara de corpo e alma. "Uma das melhores contribuições que posso oferecer é fazer com que as coisas pelas quais eu tenho lutado se tornem mais independentes de indivíduos isolados", disse certa vez. "Durante os dias em que eu estava ausente para tratamento, assisti a meus colegas levarem o trabalho adiante. Isto tem sido muito gratificante. Muito do trabalho que nós temos feito juntos para proteger os recursos naturais e construir uma base para uma melhor estratégia de conservação está hoje bem enraizado na sociedade. Então, não será fácil retroceder".

De fato, a julgar pela determinação de seus companheiros, não há possibilidade de retrocesso. "O Mamirauá era a vida dele", afirma Andréa Pires. "E o Márcio é merecedor de todas as homenagens, uma pessoa de quem todos nós devemos nos orgulhar. Com sua morte, a gente tem um motivo, uma inspiração a mais, para dar continuidade a essa obra".

 


Fausto Rêgo

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