Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Artigos de opinião
José Saramago*
Eles acreditavam que nós tínhamos nos cansado de protestar e que havíamos lhes deixado livres para seguir na sua alucinada carreira pela guerra. Eles se enganaram. Nós, os que hoje estamos nos manifestando, aqui e em todo o mundo, somos como aquela pequena mosca que, obstinadamente, volta uma e outra vez a fincar seu ferrão nas partes sensíveis da besta. Somos, em palavras populares, claros e precisos, para que entendam melhor, a mosca do poder.
Eles querem a guerra, mas nós não vamos deixá-los em paz. Nosso compromisso, ponderado nas consciências e proclamado nas ruas, não lhes fará perder vigência e autoridade (nós também temos autoridade), nem a primeira bomba nem a última que venha a cair sobre o Iraque.
Não achem, os senhores e as senhoras do poder, que nos manifestamos para salvar a vida e o regime de Saddam Hussein. Eles mentem com todos os dentes que têm na boca. Nós nos manifestamos, isso sim, pelo direito e pela justiça. Nós nos manifestamos contra a lei da selva que os Estados Unidos e seus aliados antigos e modernos querem impor ao mundo. Nós nos manifestamos pela vontade de paz, de gente honesta e contra os caprichos belicistas de políticos ambiciosos e o que lhes falta em inteligência e sensibilidade. Nós nos manifestamos contra o concubinato dos Estados com os superpoderes econômicos de todo o tipo que governam o mundo. A Terra pertence a todos os povos que a habitam, não àqueles que, com o pretexto de uma representação democrática e descaradamente pervertida, afinal, lhes exploram, manipulam e enganam. Nós nos manifestamos para salvar a democracia em perigo.
Até agora, a humanidade tem sido sempre educada para a guerra, nunca para a paz. Constantemente nos aturdem as orelhas com a afirmação de que, se queremos a paz amanhã, não teremos mais remédio a não ser fazer a guerra hoje. Não somos tão ingênuos para acreditar em uma paz eterna e universal, mas, se os seres humanos têm sido capazes de criar, ao longo da história, belezas e maravilhas que nos dignificam e engrandecem, então é tempo de botar a mão na mais maravilhosa e charmosa de todas as tarefas: a incessante construção da paz. Mas que essa paz seja a paz da dignidade e do respeito humano, não a paz de uma submissão e de uma humilhação que diversas vezes vêm disfarçadas com máscaras de uma falsa amizade protetora.
Já é hora de as razões da força deixarem de prevalecer sobre a força da razão. Já é hora do espírito positivo da humanidade que somos dedicar-se, de uma vez, a sanar as inúmeras misérias do mundo. Essa é sua vocação e sua promessa: não pactuar com supostos ou autênticos "eixos do mal".
Bush, Blair e Aznar estavam falando sobre o divino e sobre o desumano, seguros e tranqüilos em seu papel de poderosos feiticeiros, especialistas em truques e conhecedores eméritos de todas as propagandas enganosas e de falsidade sistemática, quando, um despacho oval, onde se encontravam reunidos, informou a terrível notícia de que os EUA haviam deixado de ser a única grande potência mundial. Antes que Bush pudesse pôr a primeira carta na mesa, o vosso presidente, José María Aznar, foi rapidamente declarar que essa nova grande potência não era a Espanha: "Te juro, George", disse. "Meu Reino Unido também não", completou rapidamente Blair, para cortar a nascente suspeita de Bush. "Se não é tu, nem tu, quem é, então?", perguntou Bush. Foi Colin Powell, mal acreditando no que estava pronunciando sua própria boca, quem disse: "A opinião pública, senhor presidente".
Já devem ter compreendido que esta historinha é uma simples invenção minha. Peço, portanto, que não lhe dêem importância. Mas que atentem ao que já é uma evidência para todos, a mais exaltadora e feliz evidência destes conturbados tempos: os encantamentos de Bush, Blair e Aznar, sem querer, sem propô-lo, por suas más ações e piores intenções, têm feito surgir, espontaneamente, um gigantesco, um imenso movimento de opinião pública, um novo grito de "Não passarão", que com as palavras "Não à guerra" corre mundo.
Não há nenhum exagero em dizer que a opinião pública mundial contra a guerra se converteu em uma potência com a qual o poder tem que contar. Nós enfrentamos deliberadamente aos que querem a guerra. Dizemos: "Não". E se ainda assim seguem empenhados em seu demente afã e desencadeiam, uma vez mais, os cavalos do apocalipse, então lhes avisamos desde agora que esta manifestação não é a última, que continuaremos os protestos durante todo o tempo que dure a guerra, inclusive mais adiante, porque, a partir de hoje, já não se tratará simplesmente de dizer "Não a guerra". Trata-se de lutar todos os dias e em todas as instâncias para que a paz seja uma realidade, para que a paz deixe de ser manipulada como uma realidade, para que a paz deixe de ser manipulada como um elemento de chantagem emocional e sentimental com que se pretende justificar guerras. Sem paz, sem uma paz autêntica, justa e respeitosa, não haverá direitos humanos. E sem direitos humanos, todos eles, um a um, a democracia nunca será mais do que um sarcasmo, uma ofensa à razão.
Nós que estamos aqui somos uma parte da nova potência mundial. Assumimos nossas responsabilidades. Vamos lutar com o coração e o cérebro, com a vontade e a ilusão. Sabemos que os seres humanos são capazes do melhor e do pior. Eles (não preciso agora dizer seus nomes) escolheram o pior. Nós escolhemos o melhor!
*Intervenção do escritor português José Saramago, na manifestação contra a guerra em Madri, no dia 15 de março.
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