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As discussões do Fórum de Quioto, a realidade dos ataques a Bagdá e os ensinamentos do Templo das Quinze Pedras

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Ninon Machado de Faria Leme Franco*

Fica difícil concentrar o foco nos resultados do III Fórum da Água de Quioto quando fotos publicadas em jornais do mundo inteiro estampam a mãe implorando por água para salvar o seu pequeno filho à beira da morte por sede e fome. Paradoxo quando um dos temas da agenda do fórum recém-terminado no Japão foi justamente água e pobreza e em que até materiais eram distribuídos com os dizeres “Gender, poverty, water - make the connections” (Gênero, pobreza e água – faça a ligação).

Além disso, os bombardeios sobre o território iraquiano começaram quando o III Fórum Mundial da Água já estava em curso nas cidades de Quioto, Osaka e Sigha, localizadas na Bacia do Rio Yodo. A comunidade internacional presente no Japão para o evento, cuidadosamente preparado durante os três anos antecedentes pelo governo e pela sociedade japoneses, não teve o devido peso para que as agressões bélicas ao Iraque fossem postergadas. Assim, do meio para o fim do fórum, suas notícias e seus resultados foram sobrepujados pela realidade que se vivia em terra não tão longe e que ficara mais perto pela ampla divulgação pelas TV internacionais.

Embora simbólico, pois reafirmava a importância da bacia hidrográfica como referência territorial, a dispersão do evento em três cidades, cujas distâncias efetivamente exigiam cerca de duas horas para os deslocamentos, foi uma das razões para que não se pudesse ter uma visão de conjunto do evento.

O motivo alegado para tal dispersão seria a massa de participantes – estimada pelos organizadores do evento em cerca de 15 mil pessoas, mais que o dobro do II Fórum da Água, em Haia, no ano 2000. Entretanto tal número de participantes, se comparado com os do III Fórum Social Mundial, de janeiro de 2003, e da Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, na África do Sul, em setembro de 2002, não é tão alarmante.

Comentaristas presentes em Quioto têm enfatizado que o fórum foi do setor de negócios - liderado pelo Conselho Mundial da Água e pela Parceria Global pela Água - e que promovia os resultados do Relatório Camdessus, indicando a privatização como única saída para investimentos e promoção das metas de água e saneamento para todos – previstas na Cúpula de Joanesburgo. Mas isto vem ocorrendo desde que o fórum teve sua primeira edição, em Marrakesh, em 1997. Participar do fórum é trazer para o evento, promovido pelas forças de mercado, outras visões e mesmo reações, como ocorrido em Haia e Quioto, inclusive por parte do governo brasileiro – que tanto numa como noutra reagiu a avanços das forças de mercado e à pressão de interesses dos estados ditos centrais. As investidas no sentido de tratar os rios e demais cursos d’água transfronteiriços, como rios internacionais, e enquadrar como direitos humanos – e não como direito do homem – o acesso de todos à água são temas em relação aos quais o governo do Brasil não transige e que provocam permanente reação em setores dominantes da comunidade internacional – não possuísse o Brasil uma das maiores reservas de água doce do mundo e compartilhasse com seus vizinhos do norte e do sul bacias da magnitude do Amazonas e do Prata e o Aqüífero Guarani.

Conteúdos

Quanto ao conteúdo do fórum, poderia ser considerado algum progresso com respeito à discussão e à promoção da perspectiva de gênero na gestão dos recursos hídricos, que vem sendo construída ao longo dos últimos três anos. Em Quioto, a perspectiva foi objeto de uma sessão que durou todo o dia 17 de março, teatralizada sob a forma de um Painel Arbitral (Gender in Court) presidido pela embaixadora da África do Sul em Haia, Priscilla Jana, e composto por representantes do Banco Asiático de Desenvolvimento, das Nações Unidas e dos governos da Holanda e da Grã-Bretanha.

Fátima Chagas, diretora de Programas da Secretaria de Recursos Hídricos, representando a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, atuou como uma das debatedoras, analisando os diversos casos apresentados para avaliação do Painel Arbitral. Nessa ocasião, foi comentado também o esforço do governo brasileiro em institucionalizar a perspectiva de gênero através da criação da Secretaria de Mulher, com status de ministério, a sua inclusão no Conselho Nacional de Recursos Hídricos e o compromisso da ministra do Meio Ambiente do Brasil de incorporar a perspectiva de gênero na gestão dos recursos hídricos. Na mesma ocasião, foi também anunciado o Programa Sede Zero.

De Haia para Quioto, o tema do gênero na gestão dos recursos hídricos tomou impulso a partir dos princípios incorporados à declaração de Haia e, posteriormente, nos eventos subseqüentes – em particular, a Conferência de Bonn sobre Água Doce, de 2001, e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em 2002.

Ainda no mesmo ano 2000, foi criada a rede mundial Aliança do Gênero e da Água, que nesse breve período de três anos participou de eventos e produziu resultados, entre os quais aqueles da conferência eletrônica sobre a Incorporação do Gênero na Gestão dos Recursos Hídricos, realizada simultaneamente para países e comunidades de língua inglesa, francesa, espanhola e portuguesa.

Por outro lado, as ONGs que no Fórum de Haia tiveram marcante atuação e que pressionaram pessoalmente o então presidente da Comissão Mundial da Água – I. Sereghaldin, também vice-presidente do Banco Mundial – em Quioto tiveram uma atuação mais ao estilo oriental, conduzida sob a liderança da Fresh Water Action Network (FAN), também criada logo após o Fórum da Água de 2000. Note-se que não havia representantes da sociedade organizada do Japão nas reuniões matinais de avaliação e de mobilização das ONGs.

Cenários

O Diálogo Água e Clima foi uma das reuniões interessantes do fórum. Houve contribuições importantes e inovadoras, como os mecanismos e serviços financeiros, inclusive seguro para proteção dos efeitos das mudanças climáticas, com a devida avaliação dos riscos, medidas preventivas e mitigadoras. Ao final, a proposta de criação de uma rede mundial Aliança da Água e do Clima.

Em Osaka aconteceu uma oficina sobre Partilha de Informação e Conhecimento promovida pela PSEAU, ONG francesa, parceira do Instituto Ipanema na Gender & Water Alliance. A oficina reuniu experiências na capacitação de pessoas para transmitir à comunidade informações essenciais quanto à gestão dos recursos hídricos e à busca de caminhos comuns. Minha parte foi comentar os resultados da conferência eletrônica sobre a Incorporação do Gênero na Gestão dos Recursos Hídricos e os efeitos sentidos com a divulgação de informações para uma restrita – mas considerável – comunidade que pode acessar os recursos da internet, enfatizando que fora um importante, mas ainda inicial, passo ao qual devem seguir outras atividades da GWA - em especial para alcançar as pessoas sem acesso à Internet e os analfabetos.

Balanço

Com inúmeros eventos ocorrendo simultaneamente, além das discussões tão ou mais interessantes que ocorriam nos corredores e salas de café, fica muito difícil avaliar desde logo os resultados do III Fórum Mundial. Talvez em 2006, quando ocorrer o IV Fórum, no Canadá, poderemos entender melhor o que ocorreu agora em Quioto.

Quioto – que em japonês quer dizer “Velha Capital” – acolhe vários templos e monumentos, muitos dos quais considerados patrimônio da humanidade, como o Templo Dourado Kinkaku-Ji. A cerca de 15 minutos de lá, está o templo budista Zen Ryoanji – o Templo das Quinze Pedras. Estabelecido em 1450, no topo do Monte Kinugasa, está cercado por uma linda floresta. No chão de pedras brancas estão assentadas 15 pedras escuras. Delas somente podem ser vistas, no máximo, 14 pedras, pois sempre uma, pelo menos, estará oculta.

Comparando metaforicamente os dois cenários, o virtual e efêmero do III Fórum Mundial da Água e o real e permanente do Templo das Quinze Pedras, Quioto pode ser visto de vários ângulos, mas haverá pelo menos um ainda oculto. Para mim, o fórum recém-findo contém muitas pedras ocultas – embora tenha sempre em mente as palavras de I. Sereghaldin ao abrir o II Fórum Mundial da Água, em 2000: “As guerras do século XXI serão pela água”.

*Ninon Machado de Faria Leme Franco é presidente do Instituto Ipanema.





A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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