Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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“Nos vários depoimentos dos peões que fugiram da fazenda, a tragédia é a mesma daquela vivida pelos trabalhadores da Flor da Mata: na viagem do Mato Grosso até o Pará, muito sofrimento e maus tratos, mal-alimentados e doentes, comendo farinha e água durante todo o percurso e sempre sofrendo constantes humilhações. Na fazenda, moraram em barracos de lona preta improvisados na mata, bebiam água podre e fétida, contraíam malária, infecções renais e várias outras doenças devido às más condições de vida impostas a eles. Para se manterem vivos, se alimentavam com suprimentos comprados na cantina da fazenda, onde o cantineiro nunca informava os preços.
Como quase todos os trabalhadores nessas circunstâncias são analfabetos, o roubo e a exploração são práticas costumeiras. Ao término da derrubada ou roço de um lote, ao procurarem os fiscais para o acerto de contas, o cerco se fecha. Ao invés de dinheiro/saldo a receber, todos têm dívidas a pagar, contraídas na cantina. Para saudá-las a solução é recomeçar o árduo trabalho de roço ou derrubada de mais e mais alqueires de mata.
O texto acima é parte de um relato feito pela Comissão Pastoral da Terra, regional de Tucumã e Xinguará, em março de 1999, referindo-se ao resgate de 175 peões (consta, no entanto, que foram levados para o local 215 homens) trabalhando em situação análoga à escravidão, na fazenda Agropecuária Maciel II, município de São Félix do Xingu, no sul do Pará. Os trabalhadores, resgatados pelo Grupo Móvel de Fiscalização – ligado à Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho –, foram aliciados no Mato Grosso, nas cidades de Confresa, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu e em outras da redondeza.
Essa realidade persiste até hoje em várias fazendas do interior do Brasil. A Lei Áurea pode ter acabado com a escravidão na forma como era praticada durante os séculos XVI, XVII, XVII e XIX. Porém uma forma contemporânea de escravização domina as mesmas terras que no passado recebiam escravos comprados dos navios negreiros vindos da África. Hoje, a “mercadoria” é atraída, não comprada. As formas de manter as pessoas em cativeiro são mais sutis e, talvez por isso mesmo, mais perpetuadoras da situação – posto que podem não causar a revolta clara e de identificação direta que a escravidão de outras épocas gerava.
Atualmente, o trabalho escravo no Brasil é praticado majoritariamente em grandes propriedades rurais e em carvoarias (estas em menos quantidade), especialmente no sul do Pará, no Maranhão e em Mato Grosso. Caracteriza-se pela atração de pessoas – humildes, pouco letradas e trabalhadoras rurais – por parte de intermediários conhecidos como “gatos”. Estes normalmente recrutam as pessoas em regiões distantes daquela em que a atividade forçada vai se realizar e, muitas vezes, embriagam os trabalhadores antes de transportá-los. Chegando às fazendas ou propriedades, os trabalhadores descobrem que terão que pagar pela viagem. O trabalho, exaustivo, comumente é de derrubada de matas para a formação ou limpeza do pasto; como só lhes são dados água e farinha (quando isso acontece, caracterizando um claro prejuízo à saúde deles), são obrigados a comprar alimentos e outras coisas nas cantinas dentro das propriedades, onde não se sabe o valor das mercadorias. Como os trabalhadores, via de regra, são pessoas humildes, pobres, que têm somente suas honra e dignidade para preservar, vêem-se moralmente obrigados a pagar, mesmo que as tais dívidas sejam falsamente ou involuntariamente construídas. Assim, permanecem nas fazendas. Assim se constrói o ciclo vicioso que os prende cada vez mais. Assim, esquecem porque chegaram ali, esquecem o que é liberdade, e muitos se esquecem de ter esperança. Ou seja, a ferramenta que coage os trabalhadores a permanecerem nas fazendas não é a arma, mas a dívida. A violência de outrora se transmutou em crédito. Há, no entanto, relatos de assassinatos de trabalhadores que terminaram o mês com saldo a receber. É, como se vê, um sistema quase feudal, em que os donos das terras fazem as regras do que se passa ali dentro.
A situação, distante e até impensável para quem vive nos grandes centros urbanos, é combatida majoritariamente por órgãos ligados à questão do trabalho e do emprego, como o Ministério do Trabalho, os tribunais regionais do trabalho e a Organização Internacional do Trabalho (OIT, que dedicou o ano de 2001 ao combate ao trabalho escravo). De fato, trata-se de uma nítida violação dos direitos trabalhistas. Porém, muito antes e muito mais do que isso, o trabalho escravo é uma aviltante violação dos direitos humanos. De cara, fere a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos seus artigos II ("toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração [...]"), III ("toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal") e IV ("ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas"), entre outros. De resto, fere a dignidade, a auto-estima, a saúde e a esperança das pessoas submetidas a essa situação.
Ignorância e partida para ação
“Não necessariamente estas pessoas sabem que estão sendo submetidas a trabalho escravo. Além disso, é humilhante, por isso é difícil as pessoas reconhecerem e dizerem que estão ou estavam sendo mantidas como escravos”, diz Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha “Olho aberto para não virar escravo” da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A iniciativa é fruto de um trabalho da Pastoral cujo início remonta à década de 70. Hoje em dia, a campanha é referência nacional no que se refere ao combate ao trabalho escravo, desenvolvendo materiais de conscientização dos trabalhadores rurais, acolhendo aqueles que fogem das fazendas, encaminhando denúncias e compilando informações e números sobre a prática no país.
Os mais recentes, referentes ao ano de 2002, serão publicados em livro agora em abril. De acordo com os dados coletados pela CPT no ano passado, há 5.559 trabalhadores em situação análoga à escravidão – destes, 58 são menores de idade. “Isso é só a ponta do iceberg”, diz Frei Xavier, lembrando duas informações importantes: primeiro, estes números são reflexo do que foi relatado à CPT por trabalhadores fugidos ou por agentes da própria instituição, no ano de 2002. Ou seja, são apenas as informações obtidas no ano passado, podendo a realidade ter números muito mais expressivos e cruéis. Segundo: dificilmente se tem o real diagnóstico da prática no país, pois são relatos verbais ou testemunhos de órgãos fiscalizadores que não dão conta de abranger todos os lugares em que se pratica o trabalho escravo no Brasil. Porém estima-se que no total existam cerca de 25 mil pessoas trabalhando como escravos.
O Pará concentra o maior número de casos: 117 entre os 147 (cada caso refere-se a uma fazenda com trabalho escravo, podendo haver, no entanto, reincidência), tendo o estado 4.333 trabalhadores escravos. Em seguida vem o Maranhão, com 12 casos, envolvendo 432 pessoas, e o Mato Grosso, com 11 ocorrências, atingindo 723 trabalhadores. O principal alvo da prática são homens de 16 a 60 anos.
A situação levou a OIT a dedicar o ano de 2001 ao combate ao trabalho escravo. No Brasil – onde foi identificado que as leis eram duras, mas sua execução, ilusória – a OIT empreendeu ações, como a cooperação técnica com o governo brasileiro, traduzida no Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil. “A idéia é ajudar a otimizar as ações de repressão”, explica Patrícia Audi, coordenadora do projeto. Segundo ela, as atividades já realizadas, como a 1ª Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo”, ocorrida em 2001, ajudaram no sentido de os vários atores envolvidos no combate à prática perceberem que é preciso maior envolvimento e integração. Além disso, da iniciativa também surgirá um banco de dados a ser entregue ao governo brasileiro, reunindo informações do Ministério Público Federal, do Sistema Judiciário, da Polícia Federal, do Grupo Móvel de Fiscalização, do Ministério Público do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego e da CPT. Outra contribuição produzida no âmbito da cooperação técnica entre a OIT e o governo é uma pesquisa, prestes a ficar pronta, que, segundo Patrícia, ajudará no entendimento das causas do trabalho escravo no Brasil, ao traçar um diagnóstico completo sobre a prática.
No Maranhão, os absurdos do trabalho escravo motivaram a criação do Fórum Permanente de Erradicação e Combate ao Trabalho Escravo e Semi-Escravo no Maranhão, criado em dezembro de 2002, durante o 1° Seminário sobre Trabalho Escravo e Semi-Escravo no Maranhão. A idéia surgiu no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região, porém a intenção é que a entidade – que estará se concretizando (com aprovação de estatuto etc.) nos próximos dias – seja independente e agregue o maior número de instituições e pessoas interessadas possível. “A formação desta iniciativa segue o exemplo construído pelo Fórum pela Erradicação do Trabalho Infantil, aqui do Maranhão, que foi iniciado pelo Tribunal do Trabalho e hoje caminha sozinho. A intenção é que com o fórum pela erradicação do trabalho escravo aconteça o mesmo: ele ganhe vida própria, com a participação de ONGs etc.”, diz Edivânia Katia, do Tribunal Regional do Trabalho. Ela conta que uma das atividades que a novidade pode trazer de melhor é a concretização da Vara Itinerante do Trabalho, uma unidade móvel que poderá acompanhar as operações de fiscalização em fazendas.
Combate: entraves e impunidade
Mas esta dedicação ao extermínio do trabalho escravo é relativamente recente no país. Até a década de 90, o trabalho escravo sequer era reconhecido no Brasil como prática comum que é. Foi em 1995, com a criação do Grupo Móvel de Fiscalização, ligado à Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho, que a situação ganhou maior reconhecimento oficial. O grupo faz inspeções in loco, surpreendendo as fazendas das quais se tem denúncias de que existiria trabalho escravo. A unidade se caracterizou desde o início pelo sigilo das operações de fiscalização, pela centralização do comando, pela rapidez nas operações e pelo envolvimento da Polícia Federal, entre outros aspectos. A CPT diversas vezes acompanhou as operações do grupo e retirou daí muitos dos dados que divulgou.
Desde 1999, no entanto, o Grupo Móvel vinha sendo alvo de críticas que davam conta de que a intensidade e o interesse da unidade teriam diminuído (críticas levantadas pela CPT, que tinha interesse que o grupo continuasse com a eficiência dos primeiros anos). “Mas hoje, com a mudança de governo, a situação já está melhorando. As atividades foram reaquecidas, principalmente respeitando aspectos como sigilo e centralização, que fizeram do grupo móvel um agente de mudança”, diz Frei Xavier. Desde o início das atividades da unidade, os resgates nas operações de fiscalização foram cada vez mais numerosos – o que contribuiu não só para a “libertação” de pessoas como para se ter uma melhor idéia da situação real (por exemplo: locais de maior incidência, características etc.) Só nestes três primeiros meses de 2003, o Grupo Móvel já resgatou mil trabalhadores em situação de escravidão.
Por parte dos órgãos governamentais, além do reaquecimento do Grupo Móvel, a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou em março o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. O programa traz uma série de medidas a serem empreendidas pelos diversos órgãos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, pelo Ministério Público e por entidades da sociedade civil brasileira, a fim de não só combater, mas acabar de fato com o trabalho escravo no país. Isso passará por alterações legislativas, ações específicas de conscientização, capacitação e sensibilização, melhorias nas estruturas do Grupo Móvel e da polícia, entre outras. Porém aspectos que não podem ser esquecidos nesse esforço de combate são: a punição efetiva dos agentes, fazendeiros, empresários ou quaisquer pessoas que imponham a outro ser humano uma situação de escravidão e o encaminhamento e a reinserção do trabalhador resgatado.
Quanto ao encaminhamento de pessoas resgatadas de situação de escravidão, duas normas recentes se encarregam de dar o apoio legal a atividades de reinserção: a Medida Provisória nº 74, de 23 de outubro de 2002, que altera a Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, para assegurar o pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado da condição análoga à de escravo; e a resolução nº 306, de 6 de novembro de 2002, que estabelece procedimentos para a concessão do benefício do seguro-desemprego ao trabalhador resgatado da condição análoga à de escravo. Elas são o reflexo de que a lei está mais preocupada e tendo mais cuidado com estas pessoas, desiludidas e sem trabalho, depois de resgatadas. Porém, para que a situação mude de fato, há que se atuar também no “cuidado” com a outra ponta da situação: os exploradores do trabalho forçado.
“A impunidade que veio se perpetuando tem duas causas: a falta de indignação e a falta de vontade política”, opina Patrícia Audi, da OIT, para quem este quadro deve mudar em breve. A falta de condenação dos proprietários de terras em que se pratica a escravidão contemporânea é uma das principais reclamações também da CPT: “Em 1995, foi criado o Grupo Móvel e este passou a ser a menina dos olhos do governo. A unidade é de fato uma peça central, mas é uma só. Tem que ser seguida por outras peças, que completem o trabalho, pois se não houver punição, nada muda”, defende Frei Xavier. Para ele, a falta de condenação dos responsáveis gera um sentimento de impunidade e “de total franquia, que incentiva a multiplicação dos casos”. Em alguns anos, da totalidade de resgates realizados pelo Grupo Móvel – sempre às centenas –, menos de uma dezena de pessoas foram condenadas. Em 2002, menos da metade das propriedades denunciadas com fundamentação foi fiscalizada pelo Grupo Móvel. Este grupo fiscalizou, no Pará, somente 36% das fazendas denunciadas (42 sobre 117) e libertou somente 31% dos trabalhadores (1.346 sobre 4.333). A falta de punição não só incentiva a multiplicação como permite a reincidência de um mesmo proprietário de terras.
Outro fator que contribui para a impunidade e para a reincidência do trabalho escravo é a naturalidade com que a prática é vista nas regiões em que acontece. “Com freqüência você vai ouvir um acusado justificar o que faz dizendo: ‘mas todo mundo faz’ ”, relata o coordenador da campanha da CPT. Além disso, não pode ser ignorado o fato de que a maioria dos fazendeiros faz parte da elite e tem influência nas camadas do poder – quando não o exerce diretamente, seja como deputado, senador, vereador etc. Isso acontece de forma mais clara justamente nas regiões Norte e Nordeste, como herança do coronelismo, quando os ricos e proprietários de terra eram os políticos, mandantes e governantes das cidades. Resultado: muitos fazendeiros acusados, inexplicavelmente, não são condenados, apesar de flagrantes e evidências.
“Vamos precisar de quanto mortos para que as pessoas sejam devidamente condenadas?”, pergunta Frei Xavier.
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