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Justiça: o sonho dourado de Carajás

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








A palavra eldorado vem do castelhano e significaria “o dourado”, ou o “país do ouro” (“lugar imaginário onde os conquistadores espanhóis supunham ir encontrar abundância de ouro e pedras preciosas”*). Mais tarde passou a significar, em sentido figurado, um lugar de “delícias e abundância”. Na tarde de 17 de abril de 1996, Eldorado dos Carajás, no Pará, foi tudo menos um lugar dourado ou de delícias. Lá se fizeram presentes violência e morte. Mais especificamente, 19 mortes – todos trabalhadores sem-terra, acampados desde o dia anterior na curva do “S” da estrada estadual PA-150. O episódio ficou conhecido como o massacre de Eldorado dos Carajás e marcado pela agressividade gratuita da Polícia Militar paraense e pela inconsistência no processo judicial que se seguiu (classificado como viciado, por parte de algumas organizações de direitos humanos). Estas marcas permanecem até hoje, às vésperas do aniversário de sete anos da ação, mesmo tendo ocorrido o julgamento, cuja sentença está sendo recorrida.

Os trabalhadores faziam um protesto pacífico pedindo a reforma agrária prevista em lei; pediam especificamente a desapropriação da Fazenda Macaxeira, em Curionópolis (PA), a qual haviam invadido em março. Mais de mil pessoas iniciaram uma marcha até a capital do estado, Belém, e se estabeleceram na auto-estrada que liga o nordeste ao sudeste do estado – a PA-150 – e é considerada a estrada-tronco do Pará. No dia 16 de abril, receberam a visita de um oficial da Polícia Militar para o qual fizeram pedidos, entre os quais veículos para transportá-los até Belém. É o que conta o advogado e coordenador de Direitos Humanos do Movimento dos Sem-Terra (MST), Nei Strozake: “Um oficial da PM foi ao local, ouviu os pedidos deles e mais tarde telefonou para um dos líderes informando que eles teriam o transporte, por exemplo, no dia seguinte e pedindo que desobstruíssem a estrada”, diz. Foi o que aconteceu. No dia 17, no entanto, foram informados, também por oficiais da PM paraense, de que não teriam mais aquilo que fora garantido no dia anterior. Por volta das 12 horas daquele mesmo dia, voltaram a obstruir a PA-150. Cerca de cinco horas depois, tomavam lugar os tiros, os gases lacrimogêneos e o desespero.


A ordem era desobstruir









A ação foi justificada pela ordem de desobstruir a rodovia dada pelo então governador Almir Gabriel à Polícia Militar. Este, na época, alegou ter ordenado a liberação da estrada, não as mortes. A interpretação da ordem, no entanto, produziu vítimas. O principal oficial à frente da operação, o coronel Mario Pantoja (condenado posteriormente), disse que cumpriu as ordens e que os primeiros disparos teriam vindo do grupo dos sem-terra. Os relatos dos trabalhadores que sobreviveram ao massacre, no entanto, dão conta de que a polícia atirou primeiro.

Testemunhos à parte, uma prova poderia esclarecer a dúvida (em torno da qual girou grande parte do processo judicial): uma fita com imagens gravadas pela TV Parauapebas nos momentos do confronto. Analisando estes registros, a perícia da Unicamp (assinada pelo perito Ricardo Molina) conseguiu identificar que os primeiros disparos vieram da Polícia Militar. Isso era suficiente para definir quem estava falando a verdade e quem não, no processo judicial. A fita foi retirada do processo em junho de 2001, pela juíza Eva do Amaral Coelho, que determinou nova perícia na fita de vídeo. Isso aconteceu poucos dias antes de uma audiência marcada para o dia 18 de junho, a qual não aconteceu, tendo sido suspensa por ordem do Superior Tribunal de Justiça, depois de pedido dos assistentes de acusação e entidades de direitos humanos.

Faz-se necessário voltar um pouco no tempo e esclarecer sobre o andamento do processo judicial. Em maio de 1996 foram divulgados os laudos da perícia judicial sobre o massacre. Os sem-terra haviam sido mortos com tiros à queima-roupa, pelas costas ou na cabeça e com golpes de machado e facão. Em junho o Ministério Público denuncia 155 PMs. Desde o primeiro juiz do caso, Laércio Larêdo, de Curionópolis, até o último juiz que o assumiu (menos de uma semana antes da audiência), Roberto Moura, seis magistrados estiveram encarregados de julgar o processo. Cerca de 20 juízes não aceitaram presidir o julgamento por terem simpatia aos policiais envolvidos e aversão ao MST e aos trabalhadores rurais. (Veja mais sobre as idas e vindas do processo judicial na matéria “Cronologia do Processo”, cujo link está ao lado).

Erros e responsabilidades esquecidas

Por histórias como estas é que as organizações de defesa dos direitos humanos classificam o processo como viciado. Questiona-se desde a imparcialidade dos juízes até a condução das investigações. Por conta disso, a principal reivindicação, atualmente, por parte de várias dessas entidades – principalmente o MST – é que o caso seja transferido para a esfera federal. “O estado do Pará é um dos focos mais graves de luta pela terra e de violação dos direitos humanos. É necessário fazer uma avaliação sobre a conivência entre fazendeiros, poder judiciário e autoridades”, diz Andressa Caldas, diretora jurídica do Centro de Justiça Global, entidade que tradicionalmente acompanha e denuncia crimes contra os direitos humanos no país. Andressa também é da opinião de que o processo deveria ser transferido para o Poder Judiciário Federal.

Para Vera Tavares, presidente da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), é preciso salientar que outros fatores competem para a impunidade no Brasil de maneira geral: a morosidade do Poder Judiciário e a falta de controle da sociedade sobre ele – “não temos mecanismos de controle social da Justiça; não se tem uma ouvidoria”, ressalta. Ela acredita também que exista uma grande dificuldade, no caso do Pará, na condução de inquéritos policiais, que, segundo ela, são extremamente falhos, cheios de brechas. “Para mim, o inquérito policial é quase dispensável nos dias de hoje. Ele é insuficiente para a escalada da violência”, afirma.

Com relação a isso, Nei Strozake, do MST, indica alguns dos principais equívocos – propositais ou não – cometidos durante as investigações. “Todo o processo é defeituoso. Primeiro ponto: deveriam ter prendido todos os policiais envolvidos. Depois disso, seriam levantadas as provas. Isso não aconteceu. Deveriam ter sido feitos exames de pólvora nas mãos dos policiais, assim que possível. Nada impedia que isso fosse feito, mas não foi. Os próprios policiais descaracterizaram o local, o que dificulta. Deveriam ter recolhido os projéteis nos corpos dos mortos. Deveriam ter feito perícia nas armas dos policiais imediatamente. E deveriam ter feito identificações dos policiais com os sobreviventes. Com essas providências – conclui – poderia ter sido feito um processo mais justo”.

Além do processo investigativo, questiona-se também o fato de não terem sido indiciados Almir Gabriel, que, como governador, representava o chefe maior da PM e deu ordens de desobstrução da rodovia; Paulo Sette Câmara, então secretário estadual de Segurança Pública, também responsável pela atuação da PM e que, para Strozake, deve “ir preso pela ausência de comando”; e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – a quem, de acordo com o posicionamento do núcleo de Direitos Humanos do MST, faltou vontade política para proceder com a Reforma Agrária. “Ele é o primeiro responsável direto e político, por omissão. Deveria ser processado por ter se omitido, ou seja, por não ter cumprido o mandato constitucional de realizar a Reforma Agrária”, afirma Strozake, para quem deveriam ser condenados também todos os policiais que estavam presentes e não provaram que fizeram qualquer coisa para impedir que os trabalhadores fossem executados.

Vera Tavares lembra também que a polícia paraense é despreparada para atuar em episódios como o que resultou no Massacre de Eldorado dos Carajás. “A corporação é violenta e a prática das polícias é reduzir a questão agrária a uma questão meramente policial; não a consideram uma questão social, que de fato é”, diz a presidente da SDDH.

As condenações, os absolvidos e as reivindicações

Dos 155 PMs inicialmente indiciados, 142 foram julgados: alguns morreram, alguns não foram localizados e dois alegaram insanidade mental. Apenas duas pessoas foram condenadas, em maio de 2002 – o coronel Mário Pantoja e o major José Maria de Oliveira, oficiais em posição de comando na ocasião do confronto. O crime é homicídio qualificado. José Maria recebeu 158 anos de prisão; Pantoja, 228: 12 anos de punição para cada um dos 19 trabalhadores assassinados. Já o capitão Raimundo Almendra Lameira, outro PM em posição de comando na ocasião, foi absolvido. Na primeira fase do julgamento, em agosto de 1999, os três oficiais haviam sido absolvidos. O Ministério Público e os advogados de instituições da sociedade civil que estavam auxiliando o MP entraram com um recurso para afastar o juiz Ronaldo Valle do processo e com outro recurso para anular a decisão. Conseguiram. (Para saber mais sobre os detalhes de todo o processo, veja a matéria “Cronologia do Processo”, cujo link está ao lado).

Com relação à sentença dada no ano passado, o Ministério Público e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos recorreram. Querem que os policiais também sejam condenados. “Além disso, nos somamos ao pedido de que o julgamento deste tipo de crime passe para a esfera federal, como querem outras organizações que acompanham este caso”, afirma Vera, da SDDH. A defesa do Coronel Mario Pantoja também recorreu da sentença divulgada no ano passado – quer que ele seja absolvido. Pantoja aguarda em liberdade a decisão sobre o recurso.

Depois de tantas idas e vindas, com apenas duas pessoas tendo sido condenadas, a sensação de injustiça é o sentimento que se destaca entre as pessoas e organizações que se envolveram no caso. A lembrança de 19 pessoas mortas não deixa esquecer isso. Porém injustiçados são também os mais de mil sobreviventes do episódio. Muitos ficaram feridos e mantiveram seqüelas ou tiveram mutilações; 69 recebem um “acompanhamento médico muito aquém do que deveriam”, segundo Nei Strozake. Alguns familiares de vítimas recebem uma compensação financeira mensal por parte do estado Pará.

Enquanto novos capítulos de briga judicial são esperados na odisséia que viraram os desdobramentos do massacre de Eldorado dos Carajás, o episódio gerou estatística difícil de ser batida. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra divulgados recentemente, o ano de 1996 continua registrando o maior número de assassinatos em conflitos por terra desde que a instituição começou a fazer a contagem, décadas atrás: foram 46 mortes naquele ano. O episódio no interior do Pará virou não só estatística e recorde. Virou também símbolo. Da luta pela defesa dos direitos humanos e dos próprios trabalhadores rurais – que não queriam ouro ou delícias, apenas terras e dignidade. E, agora, justiça.




(Em tempo: a desapropriação da Fazenda Macaxeira ocorreu um mês após o massacre.)


Maria Eduarda Mattar


 


* Dicionário de Português Porto Editora.

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