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Para além da guerra e da paz

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião


João Craveiro*

A guerra no Iraque parece ter sido acompanhada por opiniões que se dividiram em duas classes distintas e mutuamente exclusivas: há aqueles que defenderam a guerra e que, logo, seriam contra a paz e há aqueles que se opuseram à intervenção militar, liderada pelos Estados Unidos da América, e, portanto, seriam os entusiásticos militantes da paz. Contudo estas distinções são demasiado simples e ocultam, na complexidade dos tempos modernos, as diversas formas de relação com o risco e o controle da violência entre os Estados.


Nem os ("mais fortes") exércitos contemporâneos se preparam unicamente para missões de guerra, devendo aspirar ao estabelecimento da paz no prazo mais curto possível e sob o discurso da promoção dos direitos de cidadania e da participação proto-democrática, nem os defensores do não recurso às intervenções bélicas podem aprovar a existência de regimes de déspotas que violam, constantemente, os direitos humanos e se perpetuam no poder com eleições (se as houver) onde recolhem 100% dos votos ou onde são os únicos candidatos.


Ambos os lados opiniosos, simplificados a favor ou contra a guerra, estarão, com certeza, de acordo de que é mais fácil ganhar a guerra do que ganhar a paz, e ganhar a guerra até parece não oferecer dificuldades quando se assiste a um tão grande desequilíbrio entre os beligerantes. Como aconteceu com as opiniões favoráveis à guerra, também as posições do lado da paz, agora transformadas em estranha unanimidade, merecem ser discriminadas nas suas diversas tonalidades.


Mesmo no seio das nações, que cedo apelaram a uma solução pacífica, subsistiam posições que outorgavam uma intervenção militar no Iraque se esta resultasse de uma decisão tomada no âmbito do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Mais radicais (?), algumas outras posições recusavam qualquer intervenção militar, mesmo sob o patrocínio da ONU, como aconteceu entre os dirigentes bloquistas portugueses que se opunham a qualquer ato de força. Com este "radicalismo" de absoluto fervor contra as intervenções da ONU, bem podiam os timorenses aguardar mais algumas décadas (ou séculos?) por militares indonésios voluntariosos e promotores das liberdades democráticos em Timor-Leste... Mas as ambigüidades não ficam por aqui: entre as nações exaltadas como defensoras da paz contam-se aquelas que colonizaram e massacraram outros povos e etnias, realizaram as últimas experiências reais e nucleares no sul do Pacífico, longe da sua pátria da fraternidade, e invocando a coesão nacional e a defesa dos seus interesses não hesitaram em invadir o Tibete ou a Chechênia...


Do lado dos beligerantes ocidentais e atuais agressores também as posições não podem ser inteiramente sobrepostas numa única tonalidade sem admitir algumas diferenças de conteúdo: os americanos reservam para a ONU um papel secundário no pós-guerra, enquanto que a Grã-Bretanha parece inclinar-se mais para revalorizar a função das Nações Unidas. Do lado precoce da paz e na defesa serôdia da ONU, os líderes russo, francês e alemão sublinham, já o sabemos, o papel vital das Nações Unidas para a reconstrução do Iraque.


Uma coisa é certa: a própria ONU está colocada em xeque e parece incapaz de responder satisfatoriamente, quer em caso de guerra, quer em caso de paz. O secretário de Estado americano, Colin Powell, já alertou para a necessidade de se procurar um quadro legítimo de intervenção pós-guerra, mesmo que isso implique mais do que uma resolução do Conselho de Segurança, mas reitera que o papel da reconstrução do Iraque cabe à coligação anglo-americana. De qualquer forma, tornou-se agora (mais) imperioso repensar os mecanismos de resolução, que dependem do Conselho de Segurança, e o papel da ONU no domínio do concerto entre as nações.


A Carta das Nações Unidas é explícita na defesa da soberania dos Estados. No entanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem legitimado o direito de ingerência, que a Carta exclui em nome da concórdia internacional. Desconhece-se ainda, num quadro global de emancipação de novos direitos, que outras modalidades de ingerência podem ser desencadeadas em futuros próximos, não já em nome exclusivo dos direitos humanos, mas em nome dos direitos da natureza e da biodiversidade e contra o perigo da (má) gestão da energia nuclear ou em nome da polissêmica qualidade de vida e ambiental universal...


A ordem pós-vestefaliana está definitivamente posta em causa pela multiplicação dos riscos e por uma crise política e ecológica global. Reclama-se, por isso, por novos instrumentos de ingerência legítima, para que as intervenções não possam ser tão facilmente ditadas por coligações de circunstância entre Estados-amigos ou com afinidades provisórias de interesse.


Recorde-se a (alguma) institucionalização do direito de ingerência, e na seqüência das ações ilícitas e voluntárias dos Médicos Sem Fronteiras violando o território do Biafra em 1968, tendo as Nações Unidas e conferências internacionais determinado e legitimado, progressivamente, a possibilidade de intervenção em desacordo com a soberania dos Estados. Recorde-se a conferência de Paris (1987), a resolução da ONU sobre o livre acesso às vítimas de catástrofes naturais, a abertura de "corredores humanitários" (resolução de 1990) e as ingerências, não propriamente em clima de paz, na Somália e na Bósnia-Herzegovina...


Se a ingerência forçada não for regulamentada de modo mais rigoroso, num quadro internacional de respeito pelos direitos humanos (e, em breve, provavelmente, em nome dos direitos da natureza e da biodiversidade!), e suficientemente aplicada após o esgotamento de outros mecanismos "mais ligeiros" de persuasão (sob o sufrágio de um renovado e alargado Conselho de Segurança?), a humanidade arrisca-se a cair no regime discricionário dos países mais poderosos, para não dizer dos Estados Unidos da América.


No entanto, não se pode mais confundir a integridade da pessoa humana com a integridade dos territórios políticos. Muito menos se deve permitir que a coberto de ações de "salvação" sejam as grandes empresas dos países "salvadores" a gerir os lucros da reconstrução e a explorar as matérias-primas e os recursos naturais das regiões "libertadas". Colocam-se, aqui, as questões da globalização moral de qualquer conflito e da exigência mesmo da administração partilhada dos territórios intervencionados.


Os ecologistas, desde cedo, venceram a equação do poder das fronteiras e o pavor de se confrontarem com as autoridades locais. À semelhança dos então Médicos Sem Fronteiras, as ações do Greenpeace e de outras organizações não-governamentais (ONGs) estimulam e reforçam uma consciência global em nome dos equilíbrios ecossistêmicos. Também a defesa dos direitos humanos necessita cumprir o desígnio que justificou que a sua Declaração fosse considerada "universal" (mais do que "internacional")...


A situação mundial apela a uma maior intervenção dos cidadãos de qualquer condição ou lugar e a uma multiplicação dos mecanismos de participação, onde, a par dos Estados, as ONGs tenham um papel fundamental na "governação" e na gestão dos problemas globais. E é porque os problemas são globais que as suas soluções se devem multiplicar por ações locais, para que os tiranos do Estado ou do mercado não possam mais ocultar-se por detrás da inviolabilidade das fronteiras ou do segredo dos negócios.


*João Craveiro é sociólogo português. Artigo publicado originalmente no ZonaNon.





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