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Projeto de lei 07/2003: mais controle sobre ONGs

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Nem só o projeto de lei (PL) 246/2002, nem só o 227/1999, dos quais a Rets tratou na sua edição de 10 de janeiro deste ano. Outro PL tramita no Senado com a intenção de estabelecer mecanismos de registro e de controle de organizações não-governamentais. Trata-se do PL nº 03, de 2003, cuja autoria é da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as ONGs, encerrada em dezembro de 2002, depois de quase dois anos de funcionamento – tendo sido instalada em 19 de fevereiro de 2001, com prazo de 180 dias para apresentar suas conclusões, foi prorrogada por duas vezes. Atualmente o PL está no Senado Federal, previsto para ser apreciado na sessão deliberativa ordinária do dia 23 de abril.

A razão de ser do PL 07/2003 é dispor “sobre o registro, fiscalização e controle das organizações não-governamentais” e dar “outras providências”, conforme indica seu caput. Ele foi um dos seis projetos de lei que surgiram da CPI, instalada para apurar denúncias veiculadas na imprensa a respeito da atuação irregular de organizações não-governamentais, sobretudo aquelas que atuam com questões ambientais e indígenas na região amazônica, e que acabou sendo pouco efetiva, como relembra Alexandre Ciconello, assessor jurídico da Associação Brasileira de ONGs (Abong): “A CPI não comprovou nada. Mesmo nos casos em que havia denúncias, estas não foram comprovadas, somente dois ou três casos de falsas ONGs – é bom lembrar”. De acordo com o próprio Alexandre, dos seis PLs que foram produzidos a partir da CPI, quatro são pouco significantes, não trazendo nenhuma mudança substancial para as ONGs. Porém dois seriam de maior relevância, com destaque para o 07/2003, o qual, segundo Ciconello, “tentaremos lutar para que não seja aprovado”.

O projeto de lei 07/2003 parece pecar na redação, dando margem a imprecisões, ou estabelecendo uma série de diretrizes que, em razão de diversas outras normas ou práticas, já são cumpridas. “O projeto de lei, em si, é deselegante, desrespeitoso à norma culta portuguesa, ignorante de direito e enganosamente eloqüente. Não passa de um misto de ilegalidade e ineficácia”, opina Paulo Haus Martins, advogado especializado no terceiro setor e coordenador da área de Legislação da RITS. Contradições são encontradas logo no artigo 1º, que diz: “Considera-se, para os efeitos desta Lei, organização não-governamental (ONG) qualquer instituição de direito privado, sem fins lucrativos, com finalidade social”.

“Nossa legislação prevê apenas dois formatos institucionais para a constituição de uma organização sem fins lucrativos: associação civil ou fundação. Esse artigo cria uma grande imprecisão na definição de ONG. Pelo PL, qualquer instituição de direito privado, sem fins lucrativos e com finalidade social seria uma ONG. Contudo, o Novo Código Civil define uma associação como a 'união de pessoas para fins não econômicos'. Pela nova sistemática do Novo Código Civil, as associações seriam uma ONG para os fins desse projeto de lei? E quanto à finalidade social? As associações comerciais e associações de interesse mútuo de seus associados teriam 'finalidade social'?”, questiona Ciconello.

ONGs já desempenham o que o PL estabelece

Outros pontos estabelecidos pelo PL 07/2003 chamam a atenção de especialistas na legislação que rege o terceiro setor, como a vinculação do início das atividades de uma organização à “inscrição junto ao órgão governamental competente, nos níveis federal e estadual” e a definição de que as ONGs prestarão “esclarecimentos sobre suas fontes de recursos, linhas de ação, tipos de atividades, de qualquer natureza, que pretenda realizar no Brasil, o modo de utilização de seus recursos, a política de contratação de pessoal, os nomes e qualificação de seus dirigentes e representantes e quaisquer outras informações que sejam consideradas relevantes para a avaliação de seus objetivos”.

O grande problema com a vinculação do início das atividades das ONGs à inscrição junto ao “órgão governamental competente” é que este não existe. E, como lembra Paulo Haus, a norma que estabelece a competência dos órgãos é a Constituição Federal, e não uma lei ordinária: “Não existe órgão governamental competente para classificar ou registrar ONGs ou qualquer outra pessoa jurídica. As competências dos órgãos governamentais são estabelecidas na Constituição. Não há lei ordinária que possa dispor em contrário, seja aumentando ou reduzindo competência”, diz ele. Além disso, a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, estabelece que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização”. Nenhuma lei ordinária pode desdizer a Carta Magna. Outro ponto que merece ser lembrado é que toda associação ou fundação, para iniciar suas atividades, deve se registrar no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, que é o órgão público competente para tal registro.

Já a definição de que as ONGs devem prestar esclarecimentos sobre suas fontes de recursos e o modo como são aplicados causa polêmica pelo seguinte motivo: elas já fazem isso, informando sobre a movimentação financeira para mais de um órgão governamental, além de fazê-lo para seus doadores. Por exemplo: para terem movimentação financeira, devem se inscrever no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o CNPJ, junto à Receita Federal. Para se estabelecerem em um espaço físico, devem se inscrever no Cadastro de Registros Mobiliários (CCM) junto à Prefeitura de onde se encontra sua sede. No caso das fundações, além de cumprirem as obrigações acima, devem obter previamente a autorização do Ministério Público, que deverá aprovar os seus atos constitutivos antes do registro. As ONGs são obrigadas também a prestar inúmeras informações a outros órgãos públicos, como, entre outras, o preenchimento da Declaração de Informações da Pessoa Jurídica, que deve ser prestada anualmente à Receita Federal, e a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que deve ser entregue anualmente ao Ministério do Trabalho, com informações e o perfil de cada empregado. Isto sem mencionar os casos em que as ONGs recebem recursos públicos nacionais, através de convênios, o que demanda uma exaustiva prestação de contas ao órgão concedente.

Além disso, estas definições do PL que se referem aos esclarecimentos sobre recursos tornam-se desnecessárias, uma vez que o Novo Código Civil, que entrou em vigor em janeiro, estabelece, no artigo 46, as regras para registro de associações, exigindo que se declare “o fundo social, quando houver”, “o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores e dos diretores” e “o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente”. Além disso, o artigo 54 do mesmo código obriga que os estatutos das associações contenham, entre outras informações, “os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados”, “as fontes de recursos para sua manutenção” e “o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos”. Ciconello ressalta que “não é possível que um projeto de lei regule uma matéria prevista no Código Civil sem expressamente se referir a este e expressamente emendá-lo”.

Muitos outros pontos do PL 07/2003 recebem críticas, como a própria justificativa do texto – cujo vocabulário Paulo Haus acredita que se assemelha ao da ditadura militar e cujas alusões ele classificou como “levianas e até, se incomprovadas, criminosas”. Ele acredita também que o texto demonstra claramente que os parlamentares que o elaboraram não conhecem plenamente as suas competências – estabelecidas pela Constituição –, tentando legislar sobre o que não poderiam, uma vez que a Carta Magna já o faz, e emitindo julgamentos (principalmente na justificativa) sem embasamento ou função de fazê-lo. “Por fim, depois de insinuar ilegalidades (que não esclarece), imoralidades (que não aponta), termina a justificativa dizendo que é preciso criar instrumentos para que o poder público possa punir exemplarmente ilegalidades e quem trabalha contra o interesse público. Quem fala isso desconhece, obviamente, as funções do estado (estabelecidas na Constituição), as competências do legislador, os limites da lei e até a mesmo as leis que já existem e o poder constituído que já tem competência para punir. Ilegalidades e atentados contra o interesse público já são tipificados e já são passíveis de punição. Dar exemplo não é punir, e quem pune nem sempre dá exemplo. Contudo, se é isso que se pretende, que se faça não uma lei nova, mas que se faça cumprir as já existentes”, sentencia o advogado.


Maria Eduarda Mattar

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