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Um passo para trás

Autor original: Mariana Loiola

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Cinco mil ocorrências de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes – este é o número aproximado de denúncias registradas ao longo de seis anos, através do telefone 0800 99 0500, o disque-denúncia do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. O serviço nasceu da iniciativa da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) e é operado pela instituição. Agora, o serviço corre o risco de se extinguir. O Governo Federal, que dava o suporte, cancelou o convênio com a Abrapia (sob a alegação de corte de verbas na Secretaria Especial de Direitos Humanos e priorização dos recursos para outros projetos, entre outros motivos) e o serviço se desvinculou do Ministério da Justiça. Com recursos próprios, a Abrapia está mantendo o serviço e o encaminhamento das denúncias, porém com limitações técnicas. Em entrevista à Rets, Lauro Monteiro, presidente da instituição, fala sobre a importância do disque-denúncia para o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, os resultados obtidos ao longo dos seis anos de trabalho, os motivos e as conseqüências do cancelamento do convênio com o governo e o futuro do serviço.

Rets - Por que o Governo Federal deixou de dar suporte ao disque-denúncia?

Lauro Monteiro - O convênio entre o Governo Federal e a Abrapia, para implantação e desenvolvimento do Sistema Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, teve início em fevereiro de 1997 e terminou no dia 23 de fevereiro deste ano. O Governo não se interessou em renovar mais uma vez o convênio, alegando corte de verbas na Secretaria Especial de Direitos Humanos, priorização dos recursos para outros projetos e a intenção desta Secretaria de implantar um disque-denúncia centralizado no próprio governo, para receber denúncias de todo o Brasil, de todas as formas de violação dos direitos dos cidadãos.


Rets - O que chama mais atenção nos resultados quantitativos que o disque-denúncia obteve?


Lauro Monteiro - Em seis anos de programa recebemos 55.706 telefonemas, sendo que destas 5.070 foram denúncias bem caracterizadas de abuso e exploração sexual. Sessenta por cento das denúncias ocorreram entre 2000 e 2002, 36% em 2002 e 15% nos meses de janeiro e fevereiro 2003. Isso demonstra claramente a aceitação e o conhecimento crescente do telefone 0800 99 0500.


O enfoque prioritário, feito inclusive pelo governo, tem sido sobre o turismo sexual e o tráfico com objetivo sexual. Esses problemas são importantes mas não prevalentes, já que correspondem a apenas 3% e 1%, respectivamente. Em seis anos de funcionamento, houve apenas 100 denúncias de turismo sexual. O enfoque tem sido, portanto, equivocado.


Outro ponto importante é que o banco de dados demonstrou que o maior número de denúncias (63%) refere-se a abuso sexual e 37% a exploração sexual. Em 71% dos casos de abuso sexual, o agressor é o pai, o padrasto e o tio. As denúncias referentes à pornografia infantil também vêm crescendo intensamente, correspondendo hoje a 25% das denúncias de exploração sexual.


Outro dado importante é a classificação dos estados pelo número de denúncias. O Rio de Janeiro tem sido sempre o primeiro colocado. Acreditamos que os estados com maior número de denúncias estão refletindo mais informação, conscientização e mobilização da sociedade local, maior compromisso da mídia, e melhor distribuição de material de marketing.


Rets - Como esses resultados contribuíram para combater a violência sexual contra crianças e adolescentes?


Lauro Monteiro - A denúncia é o primeiro passo para a proteção da criança é a responsabilização do agressor. A criação do 0800 no Brasil constituiu-se em um grande avanço. Em todos os países do mundo, uma linha gratuita para denúncias é peça fundamental. Além disto, acreditamos que os resultados citados anteriormente ajudam no entendimento mais adequado da violência sexual contra crianças e adolescentes.


Rets - O governo implementou políticas públicas ou mudou sua estratégia de combate ao problema, como resultado desse serviço?


Lauro Monteiro - Há seis anos, o Governo Federal, junto com a sociedade civil, vem desenvolvendo ações para a prevenção e o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. Acredito que os resultados deste programa, apesar de pioneiro, não influenciaram novas estratégias de combate ao problema em razão da lentidão conhecida dos governos em implantar políticas públicas, especialmente quando elas traduzem conceitos novos. A mudança de governo também está levando a uma maior dificuldade e lentidão do processo.


Rets - O que representa a retirada do apoio do governo para o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes?


Lauro Monteiro - Em uma palavra só: retrocesso. Quantas crianças ficaram ou ficarão desprotegidas se houver a desativação deste programa mesmo por curto período?


Rets - O que o serviço perde e o que vai mudar daqui para frente? Para onde serão encaminhadas as denúncias?


Lauro Monteiro - Após a suspensão dos recursos, a Abrapia manteve o programa por mais um mês com recursos próprios, para não permitir que a população ficasse sem atendimento durante o período do carnaval. As reações de estranheza, perplexidade e indignação, quanto ao encerramento do convênio com o Governo Federal, vieram de vários setores: organizações não-governamentais, centros de defesa, ministérios públicos estaduais e até do Senado Federal. E a mídia deu ampla cobertura ao assunto. Diante desta situação, o Conselho Consultivo da Abrapia decidiu continuar com o atendimento nacional pelo telefone 0800 90 0500, com recursos de pequenos colaboradores do trabalho da Abrapia. Mas o serviço funciona agora com algumas limitações, pois fomos obrigados a demitir técnicos treinados. Restringimos o horário de atendimento: deixamos de operar 24 horas por dia, 7 dias por semana, para atender só no horário comercial. As denúncias continuam sendo encaminhadas como sempre para todo o Brasil, porém agora somente por e-mail. Ou seja, reduzimos o custo o máximo possível.


Muitos parceiros e a mídia fizeram uma divulgação em massa desse número durante seis anos. A população já gravou esse número. Não podemos deixar o povo esquecer essa marca. Cada denúncia que não chega é uma criança que continua a ser abusada. Não é o serviço que perde; é a sociedade e, principalmente, as crianças.


Rets - A Abrapia vai tentar resgatar esse apoio?


Lauro Monteiro - Já tentamos de toda forma. Buscamos apoio na Secretaria Nacional de Justiça, na Secretaria Nacional de Segurança Pública e na própria Secretaria Especial dos Direitos Humanos. No entanto, não fomos bem sucedidos. Acreditamos que projetos prioritários como este não podem ficar condicionados a recursos instáveis e decisões intempestivas de governos. Na maioria dos países, os telefones para denúncias são específicos para cada tema e a quase totalidade dos recursos financeiros vem do setor privado.


Assim, estamos buscando apoio com a iniciativa privada. Espero que o empresariado aposte nesse projeto que é desenvolvido há seis anos, conhecido no Brasil inteiro, e referência para a mídia nacional e a internacional.


Rets - Como estão os preparativos para o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18 de maio)? A Abrapia está organizando alguma atividade para essa data?


Lauro Monteiro - Como em todos os anos, vamos mobilizar a mídia nacional, repassando para ela os dados que temos, colocar-nos à disposição para entrevistas e divulgar bastante o 0800. Pelo menos no período de comemorações do 18 de maio deste ano, procuraremos fazer o atendimento 24 horas por dia, 7 dias por semana. Tradicionalmente, distribuímos milhares de cartazes pelo país, mas ainda não sabemos o que será possível fazer em relação à distribuição de cartazes nesse período.


 


Mariana Loiola

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