Autor original: Marcelo Medeiros
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Ao invadir estúdios de rádios comunitárias sem mandatos judiciais e com aparato digno de operação de busca de traficantes de drogas, a Polícia Federal acaba cometendo ilegalidades dentro de uma legislação atrasada e mal interpretada, que deveria ser modificada já para que programadores não sejam tratados como traficantes. Quem defende isso não é nenhum participante de rádio comunitária ou universitária cansado de assistir a incursões bruscas da polícia em emissoras de comunidades, mas, sim, o delegado da Polícia Federal de São Paulo Armando Coelho Neto, que também é presidente da Associação dos Policiais Federais de São Paulo.
O polêmico posicionamento já custou ao policial - simpático ao movimento de democratização dos meios de comunicação e autor do livro “Rádio Comunitária Não é Crime” - representações contrárias às suas declarações. Suas opiniões proporcionaram também um discurso na Câmara dos Deputados em defesa das rádios comunitárias. Para ele, a legislação atual é “uma colcha de retalhos” e não garante direitos como deveria, pois a liberdade de expressão está sendo impedida.
Em entrevista à Rets, Coelho Neto critica o governo Lula por ter fechado proporcionalmente, mais rádios comunitárias do que o governo anterior no mesmo período, mostra inconsistências nas leis que regem as telecomunicações e radiodifusão e ainda diz o que um policial e um programador devem portar no momento de uma ação de fechamento de rádios comunitárias.
Rets - Como um delegado da Polícia Federal se tornou a favor das rádios comunitárias?
Armando Coelho Neto - A questão não é ficar a favor disso ou daquilo. Temos fatos, que são a busca pela liberdade de expressão e a radiodifusão comunitária. Defendo na minha carreira profissional um senso mínimo de discernimento para meus colegas separarem o joio do trigo. Crime é aquilo que está escrito em lei e a sociedade condena. Se a lei não está clara, é necessário mover o pensamento para outro plano.
Vejo a insatisfação de meus colegas, o público, o trabalho feito pelas rádios comunitárias e o direito de autonomia das universidades atingidos. As universidades em si são fonte de transformação. Se o conhecimento é estático, não funciona. Não se pode entrar e proibir atividades. Tudo precisa ser questionado, lá é a ponta da transformação. Temos que respeitar a irreverência estudantil nas rádios universitárias. Vejo a importância das rádios nas universidades e das rádios nas comunidades. Numa época de tanta tecnologia, não temos que discutir interferência de freqüência – tem é que ajustar.
O problema das rádios, na verdade, é político e econômico. Tenho 25 anos de profissão e pergunto se temos que engolir tudo. A freqüência de rádio é pública, mas o Estado dá a concessão para quem quer e chama a polícia para fiscalizar. A polícia não pode arbitrar e o tribunal tem que levar em consideração todo o lado político da questão. É preciso flexibilizar o tratamento absurdo dado às rádios. Há uma inversão de prioridades. Diante de um caos jurídico, com tantos problemas por aí, tantos recursos faltando, gasta-se fortunas para fechar rádios comunitárias.
Defendo essa idéia pois vejo a importância da liberdade de expressão. A lei que temos não é para as rádios comunitárias, mas para frear o processo de ganho de audiência delas. As grandes rádios, comerciais, veiculam enlatados, não sabem chegar no público, enfim, não sabem fazer rádio.
Na legislação, a radiodifusão e a telecomunicação são diferenciados. A lei de radiodifusão não prevê crime, logo eles enquadram em telecomunicações. Misturam alho com bugalho. Isso é resultado de tribunais conservadores e elites poderosas versus estudantes e comunidades.
Rets - O que seus colegas pensam de seu posicionamento?
Armando Coelho Neto - Alguns simpatizam, outros mostram desprezo. Mas uns procuram consolidar posição contrária, que também é mais cômoda. No Rio de Janeiro há um colega que de uma só vez quis fechar cem rádios comunitárias. Os policiais vêm com discursos de que há gente ganhando dinheiro com as rádios comunitárias. E numa sociedade miserável como a nossa, qual o mal nisso? O apoio cultural até hoje não foi bem definido.
Os sensatos concordam, outros ficam ofendidos quando descobrem que estão errados e procuram teses absurdas para se defenderem. A maioria dos policiais não quer fechar rádios comunitárias. É um serviço chato e constrangedor. Levam estudantes, moleques brincando de ser DJs, para prestar depoimento.
Minha história na PF é de discriminação, mas também de muito apoio. Pago um preço amargo pelas minhas posições. Já houve uma representação contra mim assinada por 33 delegados, mas em 25 de março deste ano falei oficialmente em nome da PF na Câmara dos Deputados e saí da “clandestinidade”. É um avanço a PF indicar alguém a favor das rádios para discutir o assunto. É um indicador de seriedade, mas a realidade está aí. O governo Lula, proporcionalmente, fechou mais rádios em três meses do que o governo Fernando Henrique em oito anos.
Rets - Isso não se deve ao fato da direção da Anatel continuar a mesma?
Armando Coelho Neto - Não sei dizer direito, mas esperávamos um mínimo de atitude. Ninguém tinha esperanças de mudar tudo de uma hora para outra. Falta, porém, um gesto político de deixar a rádio comunitária fora da prioridade de ação da PF. Sinceramente, ela tem mais o que fazer.
Rets - Como deveria ser a legislação de radiodifusão comunitária?
Armando Coelho Neto - Deveriam separar telecomunicação e radiodifusão e fazer um texto mais claro. A legislação hoje é uma colcha de retalhos. As rádios comunitárias reportam, entre outras normas, a uma lei de 1962 (Lei 4.117/62, que estabelece o Código Brasileiro de Telecomunicações). A lei deve ser mais clara, objetiva e menos burocrática. Hoje há exigências impossíveis de cumprir e concessões duvidosas.
A legislação deveria garantir direitos e não colocar obstáculos. A Constituição fala que nenhuma lei pode criar embaraço para o direito de liberdade de expressão. O que existe hoje é uma negativa do direito. Vivemos num país que cria direitos e põe obstáculos ao seu exercício.
A questão é de mera regulamentação. Em primeiro lugar, devemos sepultar a lei de 1962. Segundo, deve ficar claro o que é telecomunicação e o que é radiodifusão. Terceiro, definir o que é rádio comercial e o que é rádio pequena (no sentido de baixa potência). É simples, basta querer. Mas o desejo esbarra em interesses políticos e econômicos.
O Decreto Presidencial 2.615/98, que regulamenta as penas para infração da lei de radiodifusão, não prevê apreensão de equipamentos no caso de intervenções policiais, mas isso acontece. Qual o motivo?
Essa é apenas uma ilegalidade cometida em ações policiais de fechamento de rádios. Um decreto é sempre inferior a uma lei, mas esse fala mais que a lei de radiodifusão comunitária. Isso não pode acontecer. Outro problema é que ninguém pode ser expropriado de seus bens sem ser submetido a processo legal. Feito o processo e decidida a apreensão, tudo bem, mas o quadro de ilegalidade é constante. É um sinal de envelhecimento da legislação.
Rets - Uma das propostas feitas para tentar diminuir os problemas com a Polícia é municipalizar a concessão de rádios comunitárias. Qual a sua opinião sobre isso?
Armando Coelho Neto - Acho legal, muito bom. Mas vai esbarrar na legislação federal. Se o município criar leis, não caberá ao policial julgar se as rádios são constitucionais ou não. Porém, não podemos confundir o cumprimento da Constituição com interpretação equivocada da lei. Se há lei municipal, as rádios terão amparo legal, mas surgirá um conflito de leis. Um ponto positivo da municipalização é que a pecha de criminoso cairá.
O tratamento dado a quem faz rádio comunitária é igual ao de traficantes. Não na pena, mas na força física das incursões policiais. A PF vai de metralhadora, helicóptero.
Acho que a lei federal deveria prever a concessão de baixa potência como responsabilidade municipal. A Câmara dos Deputados se reúne para saber de Quixaromobim pode ter rádio comunitária ou não. É um absurdo, não tem coerência. Um juiz, procurador, delegado que se recusa a autorizar o funcionamento das rádios está fora de seu tempo.
Rets - Você falou que o tratamento dado a radialistas comunitários é parecido com o recebido por traficantes. Uma das alegações para o fechamento de rádios é a sua associação com o tráfico de drogas. Isso é verdade? Qual a sua opinião?
Armando Coelho Neto - É falácia, uma campanha terrorista. Viram que não deu certo alegar interferência em aviões – aliás, há anos falam nisso mas até agora ninguém disse onde caiu a aeronave que foi prejudicada por transmissões radiofônicas.
A bola da vez é o tráfico. Nem deveríamos tocar no assunto para não alimentar essa mentira. Só quando a denúncia for objetiva deveríamos veicular esse tipo de notícia.
Rets - O que nas rádios comunitárias pode ser considerado ilegal?
Armando Coelho Neto - Não vejo ilegalidade alguma. A questão é do ponto de vista administrativo. Vejo ilegalidade por parte do poder público, que viola residências, expropria bens adquiridos honestamente e estipula fianças acima das posses. O criminoso é o Estado. Um fator que não é ofensivo e não atinge a sociedade não é ilegal.
Há vários absurdos. Já ouvi casos de policial que entra com vários papéis para o programador assinar e no meio há declaração de autorização de entrada da polícia no recinto. Isso é imoral, uma coação.
Rets - O que um policial deve apresentar no momento da ação? O que ele pode fazer?
Armando Coelho Neto - É necessário apresentar a documentação completa. A PF parte do princípio criminoso – se o crime está lá, não precisa de autorização para prender. Mas há nisso uma situação duvidosa. Portanto, é importante o policial estar munido de ordem judicial, pois ninguém pode entrar em um recinto sem ser convidado. Isso é bom até para dar lisura à ação.
Rets - E o que os programadores podem fazer nessa situação?
Armando Coelho Neto - Devem usar a força do argumento. O programador não pode deixar a polícia entrar sem mandato, mas caso isso aconteça, ela deve assumir a responsabilidade pelo arrombamento. No momento em que você quer dialogar e os policiais são truculentos, não há contra-argumento. Se você não pode impedir e eles são mais fortes, infelizmente manda quem pode e obedece quem tem juízo.
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